quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Sônia Barbosa Magalhães: "Em Belo Monte, quem pegar a boia se salva, quem não pegar morre afogado"


Populações obrigadas a abandonar seu lugar se sacrificam para beneficiar uma pequena parcela da sociedade, considera a professora da UFPA



            “Eu fui expulsa daqui. Eu nunca disse que queria sair, nunca tentei negociar. Eu fui expulsa do meu local”, explicou dona Raimunda Cavalcante Gomes à equipe interinstitucional liderada pelo Ministério Público Federal (MPF) que no ano passado percorreu algumas das ilhas do Xingu na área que será inundada pela represa da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Nas 446 ilhas, viviam milhares de famílias que ainda estão em processo de retirada e reassentamento em loteamentos construídos pelo consórcio Norte Energia, responsável pela usina, cuja primeira etapa já está em operação. Muitas ainda terão que brigar na Justiça por seus direitos, porque a empresa alega que vivem em áreas supostamente livres dos impactos da obra. Essas famílias não entraram nos cadastros para indenização e realocação.
            Como quase tudo que se refere a números nessa história, a quantidade de pessoas deslocadas é imprecisa. Podem ser mais de 50 mil, mesmo excluídas aquelas não cadastradas. Apenas em terras indígenas, serão atingidas três áreas, nas quais vivem aproximadamente dez mil pessoas de uma dezena de etnias.
            Ainda há muitas perguntas sem resposta quando o assunto é Belo Monte – por exemplo: quais os seus reais impactos no futuro? Qual o tamanho total da área a ser alagada? Quanto o empreendimento de fato vai custar? Certeza, diz a antropóloga Sônia Barbosa Magalhães, é que “a construção de grandes barragens é incompatível com a garantia de direitos sociais e a observância de legislação ambiental”. Entre as consequências de uma intervenção como essa, continua, estão a transformação de todas as relações sociais, políticas e econômicas de um lugar em pouco tempo; os processos descontrolados de desmatamento, ocupações de terras e atração de outros empreendimentos (a cidade de Altamira, por exemplo, saltou de 77 mil habitantes, de acordo com o Censo de 2000, para mais de 108 mil em 2015, um crescimento de 40%); e ainda efeitos socioambientais que nem a empresa, nem os deslocados podem prever. “Ou você faz a barragem e viola direitos, ou opta por não fazer”, completa.


Sônia Magalhães: não há como conduzir um processo desses sem violência

            Professora do Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural e de programas de pós-graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA), Sônia Magalhães integrou a equipe interinstitucional coordenada pelo MPF. Dela participaram também o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), o Ibama, a Funai, ONGs, representantes dos atingidos e outras entidades. O relatório assinado pela procuradora da República Thais Santi Cardoso da Silva aponta 55 constatações – que, traduzidas em bom português, podem ser consideradas violações.
            Uma das demandas judiciais que o consórcio enfrenta teve sentença proferida no dia 9 de junho pelo juiz Arthur Pinheiro Chaves, da 9ª Vara Federal de Belém. A Norte Energia foi condenada a pagar R$ 18 milhões de indenização por danos morais à população dos municípios paraenses de Altamira, Anapu e Vitória do Xingu pelo descumprimento do cronograma de obras de saneamento básico estabelecido no licenciamento ambiental. Ainda cabe recurso.
            Essa situação não representa novidade para Sônia Magalhães, estudiosa dos efeitos das barragens desde a década de 1980. Em seu doutorado, a professora debruçou-se sobre os efeitos da usina de Tucuruí, também no Pará. Nesse caso, lá se vão mais de trinta anos de promessas não cumpridas aos atingidos, diz a antropóloga nesta entrevista que concedeu numa recente passagem por São Paulo.
            A sombra das promessas não cumpridas já parece cobrir dona Raimunda, uma das removidas compulsoriamente por Belo Monte. Aos 71 anos, a moradora da ilha do Bacabal do Cotovelo recebeu apenas R$ 39 mil de indenização da empresa para deixar o lugar em que viveu por 36 anos. No vídeo gravado pela equipe interinstitucional e exibido pela professora numa palestra, a cidadã expulsa de sua casa lamenta: “Eu tenho fome de justiça. O sonho já foi. Eu tenho sede de justiça, só isso. Quando eu conseguir saciar essa sede de justiça, eu posso ter um sonho. Por enquanto não tenho nenhum. Só esperança”.

(Entrevista a Paulo Hebmüller – viajantedoinverso.blogspot.com.br)


– É inevitável que os processos de deslocamentos compulsórios, como o que está em curso no Pará com a construção de Belo Monte, sejam marcados pela violência?

SÔNIA MAGALHÃES – A violência é intrínseca. Ela começa desde a tomada de decisão até os efeitos que a tomada de decisão gera, repercutindo em transformações intensas na vida das pessoas. Não há como conduzir um processo desses sem violência porque o primeiro direito violado é o direto de ficar. Há também a ideia de futuro do lugar: a sociedade não escolhe o seu futuro – e não me refiro apenas aos deslocados, mas à sociedade que recebe o grande projeto. Ela perde o controle de sua própria história e passa a ficar à mercê de outra história que não necessariamente é a sua. A partir dessas duas características intrínsecas, geram-se outras violências atreladas à gestão. Por exemplo, a chegada de trabalhadores e trabalhadoras, de pessoas de todos os lugares. Há então uma inadequação dos serviços públicos – educação, saúde, saneamento etc. –, uma violência banalizada na sociedade brasileira. Em termos de gestão, é um processo econômico, e evidentemente o objetivo é reduzir custos. Os custos sociais e humanos são sempre minimizados, seja por razões financeiras, seja para a construção retórica do próprio empreendimento.

– Muitas famílias da região de Belo Monte vêm passando pela etapa do deslocamento. A senhora usa a expressão “as famílias estão perambulando” para se referir a essa realidade. Como elas estão vivendo?

SÔNIA – É muito difícil traduzir isso. As pessoas de fato estão, mas não no lugar delas. Estão num “não lugar”, que para mim é a expressão que melhor traduz essa realidade. É um momento de provisoriedade absoluta, em que elas não sabem que rumo vai ser tomado e quanto tempo isso vai durar. Estão procurando uma forma de se encontrar novamente e de construir um novo lugar, porque a ideia de reconstrução não se aplica. Em geral este é o momento da indignação por excelência, porque é a hora em que as famílias se encontram com sua própria história e em que têm que tomar a decisão em relação ao futuro. Ao longo de todo o deslocamento, talvez seja o momento no qual elas mais duramente sintam o processo que estão vivendo. É como a dona Raimunda falou: acabou o sonho.

– Em seu doutorado, a senhora abordou a questão do sofrimento social dos atingidos por deslocamentos compulsórios e da importância desse sofrimento ser legitimado e reconhecido. No entanto, muitas vezes isso não acontece. Qual é o impacto que essa desestruturação tem na vida dessas pessoas e, em segundo lugar, que o não reconhecimento desse sofrimento social gera?

SÔNIA – São dois momentos. A desestruturação em si já é vivida como sofrimento. Alguns autores, dos quais discordo absolutamente, vêm tratando da noção de resiliência, que me parece muito perigosa. É uma noção importada da Física que, grosso modo, admite a existência de um problema, mas postula que as populações e as sociedades encontram um jeito de sobreviver a ele e se recompor. É um perigo pensar nesse conceito e aplicá-lo para esses casos, e o maior exemplo que temos é o Holocausto. Situações de intenso trauma, como o Holocausto e as guerras de modo geral, não são sofridas apenas durante o momento em que são vividas, mas particularmente sofridas quando revividas em momentos sociais. É como se o sofrimento e a dor ganhassem um novo estatuto: eles saem de si e são compartilhados com e pelo outro. Ali o sofrimento se torna aberto e pleno. Ficou muito claro para mim em Tucuruí, e vejo agora em Altamira, o que chamo de lamento: aquela repetição das histórias que vemos em todas as reuniões, todas as falas. Embora as coisas tenham sido vividas individualmente, a narrativa é repetida como se fosse uma só.

– É o lamento de uma perda coletiva?

SÔNIA – O mais impressionante é como as pessoas reconhecem que o sofrimento não tem lugar na arena pública – então elas próprias absorvem a retórica e transformam esse sofrimento em perdas. É como se fossem perdas pequenas: dois pés de banana, um pé de mamão, a dona Raimunda falando da portinha do quarto dela... O que elas usam para expressar o sofrimento que vivem é aquilo que não tem valor na nossa sociedade. Por isso falo num descompasso epistemológico: elas são vítimas desse descompasso na medida em que são levadas a assumir a mesma lógica e tendem a minimizar aquilo mesmo que estão sentindo. Insisto na diferença de cosmovisão, e não apenas por uma diferença cultural: são formas diferentes de pensar a vida. Embora haja uma cultura ou um código linguístico similar, as formas de traduzir e viver isso são completamente diferentes para os ribeirinhos. Um dos momentos em que senti segurança na minha interpretação é quando a dona Raimunda apanha a esteira que era a porta do quarto para mostrar a sua importância. É evidente que não é a esteira que tem importância, mas ela minimiza para nos fazer entender. E nós não temos a mesma capacidade de alteridade que elas têm ao nos querer fazer entender. Para mim, ali está a violência explícita da cosmovisão: não reconhecer o outro, nem como o outro sente.

– No momento em que chega o representante da empresa e comunica a um ribeirinho, a um indígena, a alguém que vive na região há muitos anos, que ele está diante dessa realidade de ter que sair de seu lugar – como se dá esse confronto? Como se chocam essas cosmovisões nesse anúncio de uma remoção inevitável?

SÔNIA – O interessante é que não há esse confronto, porque isso é precedido de um discurso de desenvolvimento e de melhoria da qualidade de vida, o que por sua vez é ancorado na crença muito grande que essas populações têm no Estado. A empresa não vai sozinha, mas vai sempre com algum mediador no qual aquela população confia – não necessariamente um representante estatal: pode ser um vereador, um religioso, um político da região, um sindicalista, uma liderança... A empresa chega acompanhada de alguém que lhe atribua confiabilidade. E também não chega dizendo que a pessoa vai sair, mas que a sua vida vai melhorar. A maioria dos depoimentos dos atingidos por barragens, não apenas na Amazônia, se refere a algo que eles chamam de “as promessas não cumpridas”. O que são elas? Exatamente esse conteúdo do primeiro encontro, que cria uma expectativa.

– E como o processo segue?

SÔNIA – É como ocorreu com os indígenas: o primeiro encontro é sempre de miçangas e germes. Mas há um tempo entre esse primeiro encontro e o primeiro levantamento, em geral feito pelos pesquisadores responsáveis pelo EIA-RIMA (Estudo de Impacto Ambiental-Relatório de Impacto Ambiental). Eles já levam uma mensagem que não é sobre a catástrofe que as pessoas vão viver, mas sobre a bonança que virá. Isso cria um intervalo entre a notícia, a interiorização da informação e a expropriação propriamente dita. No caso de algumas barragens, há uma mediação política nesse meio tempo que vai tornando a situação mais clara. Em Altamira, se deu algo absolutamente inesperado: as lideranças constituídas, sobretudo aquelas que estavam mais próximas dos agricultores – sindicatos, fundações etc. –, encarnaram a boa notícia e passaram a difundir a mensagem da empresa. O Movimento Xingu Vivo, de uma atuação excepcional, teve dois trabalhos: além daquele normal de denúncia e de esclarecer a população, teve que recompor a organização política local, que foi cindida em relação à barragem. O que o Xingu Vivo conseguiu do ponto de vista político é excepcional, porque houve um racha enorme no movimento social, especialmente entre as lideranças mais próximas dos agricultores. São lideranças que não estavam tão próximas dos ribeirinhos, porque deles nunca ninguém esteve. Os ribeirinhos são invisibilizados nesse processo, e vêm sendo invisibilizados historicamente pela colonização da Transamazônica. A mediação precisa ser construída; não vem por geração espontânea. A ausência dessa mediação e o fato político da sua perda tornam mais grave ainda o que aconteceu com essas populações.


Em Belo Monte não se vive o
Estado de Direito, diz a professora

– No caso de Tucuruí, já se vão mais de trinta anos de promessas não cumpridas...

SÔNIA – Tucuruí está numa terceira fase de promessas. Todo aquele processo de reassentamento e de criação de novos núcleos saiu da mão dos deslocados. Por uma série de circunstâncias, foi apropriado por outros atores, muitos até de fora da região. Estudei profundamente o Loteamento Rural Rio Moju, que em 1983, quatro anos depois do início das transferências, já tinha sido abandonado por 70% das famílias. Há aqui outra questão que diz respeito à violência: cria-se um nexo entre a intervenção, o efeito e a população. Tudo passa a ser atribuído à empresa, e em Tucuruí isso foi muito claro. Em Altamira o que está acontecendo agora é um pouco diferente, porque há uma construção social de desvincular da empresa certos fenômenos e certos efeitos. Tudo está sendo tratado e discutido como se fosse um contexto diverso daquele da barragem.

– Quais seriam algumas dessas promessas não cumpridas?

SÔNIA – O último plano de atendimento para os atingidos é uma história de piscicultura, de tanque-rede, dentro do reservatório, que seria uma maneira de fomentar o que chamam de “retomada da atividade produtiva” – ainda não conseguida, 35 anos depois. E já fracassou.

– Quais seriam as principais irregularidades constatadas na inspeção insterinstitucional da qual a senhora participou?

SÔNIA – No relatório do MPF são apontadas 55 irregularidades, como: famílias não cadastradas; famílias que tinham uma casa no rio e outra na cidade e só tiveram uma delas considerada; pessoas analfabetas colocando impressão digital em termo de aceite da indenização sem testemunhas e sem saber o que estava escrito etc. Uma das equipes de inspeção presenciou uma emissão de posse – ou seja, a expulsão da família da casa – sem apresentação de nenhum documento. As redes de vizinhança e de parentesco no lugar original não são levadas em consideração no reassentamento; a maioria das pessoas é obrigada a aceitar indenizações irrisórias, na faixa dos R$ 20 mil. Uma moradora, por exemplo, tinha casa na ilha e foi avisada que tinha que buscar o resto das coisas dela num certo dia. Mas, alguns dias antes, o pessoal da empresa tocou fogo nas coisas, e quando ela chegou já não tinha mais o que pegar. Há também os cemitérios, que ainda não foram transportados. “Os mortos continuam abandonados”, como eles dizem. São violências e arbitrariedades de todo tipo.


"Ao se fazer uma intervenção dessa magnitude e 
nesse espaço de tempo, não há como respeitar direitos, 
e todos os envolvidos sabem disso. Não dá para acreditar 
nessa história de mitigar efeitos. A ideia de mitigar 
está ligada à ideia de impacto como uma causa e uma reação. 
Mas o que vemos nesses empreendimentos? Que uma causa 
não é uma reação: uma causa são reações 

em cascatas, em espirais, em cubos, 

de todas as formas – e cheias de efeitos não previstos."




– Muitas pessoas também ficaram sem alternativas de trabalho, não é?

SÔNIA – Sim, e algumas profissões serão extintas. Os oleiros, por exemplo, enfrentam esse problema em todas as barragens. Eles trabalham nas minas que ficam na beira do rio. Com a inundação, a jazida desaparece e a profissão também. Eles vão viver como? Em Altamira, há os barqueiros que faziam o deslocamento das pessoas para as ilhas ou para a beira do rio. Agora eles não têm quem transportar. Esse é um dos efeitos não previstos. A Norte Energia responde que não tem nada a ver com o fato de que as pessoas deixaram de viajar... É claro que tem! Essa controvérsia é exemplar: os barqueiros reclamam, a Norte Energia faz uma pesquisa para verificar se houve ou não redução de passageiros – e chega a conclusões estapafúrdias para dizer que, se houve alguma mudança, a culpa não é dela.

– No caso de Tucuruí, fica um pouco mais “fácil” entender a ocorrência dessas arbitrariedades, uma vez que é um projeto cuja execução começa durante a ditadura, num momento em que todo o arcabouço institucional e jurídico do país está conformado na lógica do autoritarismo. É mais difícil entender isso ocorrendo num contexto em que há outro arcabouço institucional, legislação ambiental que não existia antes, movimentos sociais atuantes etc. Porém, as pessoas têm o seu destino colocado unicamente na mão de um consórcio privado que passa por cima dos direitos das populações. É possível comparar esses dois momentos?

SÔNIA – A ditadura nunca poderá ser melhor – nunca. Na verdade, em Belo Monte foi o governo que deixou de lado esse arcabouço institucional, que não está sendo usado com base no efeito de Suspensão de Segurança. Como ali não estamos vivendo o Estado Democrático de Direito, há situações muito semelhantes às de Tucuruí. O que tento expor é que, ao se fazer uma intervenção dessa magnitude e nesse espaço de tempo, não há como respeitar direitos, e todos os envolvidos sabem disso. Não dá para acreditar nessa história de mitigar efeitos. Nós, sociólogos e antropólogos, sabemos que esses são muito mais procedimentos administrativos, que talvez aplaquem as consciências, do que algo realmente sério. A ideia de mitigar está ligada à ideia de impacto como uma causa e uma reação. Mas o que vemos nesses empreendimentos? Que uma causa não é uma reação: uma causa são reações em cascatas, em espirais, em cubos, de todas as formas – e cheias de efeitos não previstos.


"Deslocados deveriam ser vistos como heróis por abrir mão de sua vida
em prol de um pequeno grupo da sociedade brasileira"

– Entre esses atingidos há colonos que se fixaram ali por causa da Transamazônica. Ou seja, foram incentivados por um projeto governamental a ir para lá – e agora são deslocados por conta de outro grande projeto.

SÔNIA – Esses colonos têm discursos monumentais sobre isso. Em alguns lotes, você encontrava até a terceira geração da família, muito bem estabelecida naquilo que poderia ser o sonho deles – e, para os que conseguiram sobreviver à Transamazônica, foi esse sonho, com o gado, o igarapé, o cacau, árvores frutíferas enormes... É de uma beleza incrível! Uma vez o Lucimar da Silva, que é um colono poeta, me disse: “essa terra foi o meu pai que me deu quando casei”. O pai era um migrante da Transamazônica. O investimento da vida inteira dele estava lá. Saíram o Lucimar, um irmão e o pai. Eles compraram outras terras e estão no município de Placas, distante de Altamira. Eles receberam mais de R$ 1 milhão de indenização. Ora, para receber esse nível de indenização, é preciso ter muita coisa na terra, muito trabalho e muita produção. Eram três grupos domésticos trabalhando e estavam sedimentados. Era o seu lugar. Até hoje eles dizem: “nós tínhamos tudo. Só não tínhamos estrada, saúde e educação”. Ou seja, só não tinham Estado.

– O discurso ideológico que sustenta isso tudo é o discurso do desenvolvimento, comprado inclusive por boa parte da sociedade. Esse desenvolvimento é real e chega às pessoas nos lugares das grandes obras?

SÔNIA – No local, não. A energia não é para a área rural de lá. O desenvolvimento, como ideologia e como fato, não é pensado para todos; é pensado para poucos. Quem pensa em desenvolvimento não está pensando no que se poderia chamar de maioria, mas sim num determinado grupo social. Costumo usar a metáfora de que esses contextos de barragens são contextos de inundação: joga-se a boia e quem a pega se salva. Quem não pega morre afogado. Há determinadas famílias e determinados grupos sociais que estão prontos, pegam a boia e conseguem nadar, mas isso não quer dizer que é a maioria da população que passa a ter serviços melhores. Os indicadores sociais dos municípios que formam a região de Tucuruí não são melhores do que no resto do estado. Levanto isso não porque acredite nesse tipo de indicador, mas apenas para usar os elementos do discurso do desenvolvimento. A mesma coisa ocorre hoje em Carajás, onde está a mineração, que consome a maior parte da energia de Tucuruí. Nos municípios mineradores, os indicadores também não avançaram. E as compensações ambientais até agora não demonstraram que são capazes de interromper os processos desastrosos desencadeados pelos empreendimentos.

– É possível desconstruir esse discurso?

SÔNIA – Um estudo recente que engloba outras barragens no mundo mostra que, no contexto dos empreendimentos, esses indicadores não melhoraram. Talvez esse fosse um argumento mais próximo do nível de gestão. Mas creio que a desconstrução efetivamente só vai ocorrer quando a sociedade tiver outros valores hegemônicos. Enquanto se pensar que vale a pena quebrar os ovos para fazer a omelete, não há como desconstruir. É preciso mostrar evidências como essas da violação de direitos e da situação das populações, dialogar sobre as perdas de diversidade e sobre os ecocídios, a morte dos rios... Mas se, apesar disso, ainda se achar que o desenvolvimento vale a pena, não sei o que responder.

– A senhora diz que esses atingidos pelas barragens deveriam ser vistos pela sociedade com a solidariedade com que são vistas as vítimas de acidentes naturais como as enchentes. Por quê?

SÔNIA – Porque a experiência de desastre ambiental e de perda de seu lugar inundado é muito similar. Mas a formação do lago não é vista como uma inundação, e a construção de uma hidrelétrica não é vista como um desastre – e ela é um desastre socioambiental extremamente grave. Todos os dados demonstram isso. Por isso pergunto: por que as pessoas não se sensibilizam diante de uma situação tão similar? Evidentemente eu sei por quê: exatamente por causa dessa construção ideológica. Mas creio que o meu dever é fazer a pergunta para que as pessoas se interroguem. A desconstrução cada vez mais depende do reconhecimento do desastre ambiental. Mas não basta apenas se sensibilizar: nós, sociedade, temos que reconhecer essas populações como heróis, pois elas abriram mão forçosamente de sua vida e de suas histórias em prol de um pequeno grupo da sociedade brasileira. O mínimo que teríamos a fazer é reconhecê-las como pessoas diferenciadas. Elas passaram por situações que muitos não foram forçados a passar. Em primeiro lugar, elas não merecem passar por isso. E, se passaram, merecem mais, muito mais do que o que se tem atribuído a elas.



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