terça-feira, 3 de julho de 2012

Arquitetura para um mundo melhor

Em conferência do ciclo Fronteiras do Pensamento, o arquiteto inglês Cameron Sinclair conta as inovadoras experiências da Architecture for Humanity, ONG que fundou para ajudar a reconstruir áreas devastadas por guerras ou catástrofes naturais

PAULO HEBMÜLLER


(Reportagem publicada no Jornal da USP nº 963, de 18 a 24 de junho de 2012)

 
     Arquitetos e engenheiros gostam de beber e jogar conversa fora (bem, não apenas eles, na verdade), mas algumas vezes até o que se gasta com bebida, e que pode levar uma pessoa a ficar bamba, pode também ajudar a erguer construções sólidas e estáveis. Foi o que o arquiteto inglês Cameron Sinclair, de 39 anos, pensou quando criou o Drinking for humanity (algo como “bebendo para a humanidade”). Funciona assim: na primeira terça-feira do mês, seu grupo de amigos se reúne para conversar e beber. Cada nova garrafa ou dose pedida entra normalmente na conta, mas a mesma quantia vai também para o centro da mesa e no final da noite o total é recolhido por um tesoureiro eleito no grupo. “Depois de um ano, juntamos dinheiro suficiente para construir um projeto”, diz Sinclair. Foi pela via do modelo do Drinking for humanity que se criaram mundo afora muitos capítulos locais da Architecture for Humanity ou “Arquitetura para a Humanidade” (AFH), a ONG que Sinclair fundou há cerca de 15 anos e que atua especialmente em áreas atingidas por catástrofes naturais ou guerras – como Haiti, Afeganistão e Japão.

Cameron Sinclair: para trazer a paz, nada melhor do que inovações pacíficas

     A AFH é também a ponta de lança para que o inglês mostre na prática que as ideias inovadoras que prega não são apenas ideias. Algumas delas, Sinclair apresentou na conferência do Fronteiras do Pensamento, na Sala São Paulo, no dia 5 de junho. Por exemplo: “O papel da arquitetura, e isso não foi o que me ensinaram na escola, é como fazer com que arquitetos e designers de construções colaborem juntos para melhorar as comunidades”; “é preciso construir, mas também galvanizar as pessoas por meio do processo do design”; “se você não constrói, não pode se chamar de arquiteto”; “temos que promover mudança social e econômica, não apenas estética”; “há milhões de ideias para mudar o mundo, mas elas não interessam se você não as constrói”; “não se trata apenas de construir edificações dignas, mas de gerar empregos na comunidade, porque, a menos que possamos prover meios de sustentação econômica, estamos somente planejando favelas para o futuro”.
     A melhor forma de entender como esses conceitos se aplicam na prática é por meio dos exemplos, e Sinclair relatou vários deles. O Haiti é um dos locais onde a organização mais atua no momento, e é também a sede de um de seus cinco escritórios globais (os demais estão na África do Sul, no Japão, na Colômbia e nos Estados Unidos). Os arquitetos ligados à ONG que estavam em Porto Príncipe escaparam ilesos do grande terremoto de janeiro de 2010, mas muitos parceiros locais morreram numa cidade do sul do país porque estavam reunidos num encontro e o prédio desabou. “Terremotos não matam pessoas. Construções ruins matam pessoas”, diz Sinclair. “Ninguém foi processado por ter feito esses prédios, e as mesmas empresas foram premiadas com os contratos para a reconstrução.”

Quebrar regras – No Haiti, os arquitetos da ONG têm liderado diferentes iniciativas em várias cidades – desde reconstrução de escolas até gerenciamento de projetos em bairros e vizinhanças inteiras. Um dos objetivos é mostrar aos desabrigados que reerguer as edificações e reorganizar as rotinas não são coisas rápidas e podem levar vários anos. Aplicando a ideia de que é preciso criar empregos, os próprios moradores trabalham nas obras – já são 7 mil haitianos envolvidos. A AFH também está mapeando o país para levantar quais são as “âncoras” de cada comunidade. Elas não são necessariamente escolas ou hospitais, mas num determinado lugar a âncora pode ser a loja cujo proprietário esteja estabelecido há décadas e conheça toda a vizinhança. “A reconstrução leva isso em conta e não começa do zero. Buscamos também integrar escolas e outros serviços sociais nessas áreas, além de espaços para a agricultura familiar. Ou seja, é uma reconstrução holística”, define.

No Haiti, uma escola multicolorida planejada e construída pela AFH
     Em outro caso de terremoto, desta vez no Peru, 60% das escolas afetadas permaneciam intocadas três anos depois da tragédia. Para Sinclair, o desastre natural é um “grande equalizador” que atinge ricos e pobres da mesma forma – mas a reconstrução não é igual, porque alguns são beneficiados muito antes de outros. “Reunimos algumas companhias e indivíduos e começamos um projeto para reconstruir algumas dessas escolas. Conseguimos reerguê-las num prazo de nove meses, com orçamento baixo e antes do início do ano letivo”, contou.
     Orçamentos podem apresentar surpresas quando são aplicadas soluções inovadoras e que levem em conta as questões locais, defende o arquiteto. Representantes da AFH foram procurados pela Organização das Nações Unidas (ONU) para reconstruir três vilarejos com tendas de inverno após uma inundação no Paquistão. “Uma tenda da ONU custa US$ 1.200 e dura cerca de um ano. Em vez disso, contratamos arquitetos e carpinteiros do próprio lugar para usar bambu, disponível na região, e fazer casas permanentes, ao custo de US$ 800 cada. Voltamos ao doador e dissemos: desculpe, construímos casas permanentes, e não tendas, e mais baratas. Tudo bem?” Para Sinclair, parte do trabalho é quebrar as regras, porque é isso que permite criar a inovação que realmente muda o status quo.

Culturalmente correto – Outras demonstrações práticas do modo de trabalho da AFH foram dadas após o tsunami na Ásia, no final de 2004. Parte dos projetos da ONG em Sri Lanka, Índia e Indonésia foi financiada por crianças de vários lugares do mundo, que venderam chocolate quente para destinar a renda à reconstrução. Numa comunidade em Sri Lanka, a arquiteta Susi Platt apresentou um projeto de um centro comunitário com capacidade para mil pessoas, escola, biblioteca, clínica, um campo de críquete e espaço para horta. Para Susi, era uma ideia bonita, que usava material local e tinha custo baixo. “Os moradores odiaram. Disseram que não se parecia com nada do que eles mesmos construiriam”, contou Sinclair. “Ela havia esquecido que o projeto era correto tecnicamente, mas não culturalmente. Eles não poderiam chamar o projeto de ‘seu’.”
     Susi então passou a se reunir com os moradores e discutiu como cada membro da comunidade poderia ser parte da proposta e ter papel ativo na construção. Material inovador foi usado, o novo desenho fez referências a arquitetos conhecidos do país, todas as famílias tinham trabalhadores envolvidos na construção. Quando a obra foi concluída, a comunidade realmente abraçou o prédio, que se tornou o coração da vida do local.
     Essas experiências trazem conhecimentos que a AFH aplica e espalha em todas as suas ações. “O que funciona é casar a expertise internacional com o conhecimento cultural local”, acredita Sinclair. Para o inglês, faz toda a diferença envolver os moradores numa construção, mesmo os mais jovens. As adolescentes, por exemplo, em poucos anos serão mães, e, se sabem que seus filhos estudarão na escola que elas mesmas ajudaram a projetar e construir, ensinarão as crianças a preservá-la e defenderão aguerridamente não só a qualidade da edificação, mas também a do ensino que será dado ali. “Não somos um poder colonial que chega e se instala para sempre. Nosso papel é fortalecer a comunidade, trazer possibilidades para que ela possa promover seu próprio desenvolvimento e então encontrar a melhor maneira de sair”, diz o arquiteto.
     A AFH não trabalha com arquitetos voluntários (“a pior coisa do mundo é demitir um voluntário”, afirma Sinclair) ou “jovens idealistas”. “São profissionais extremamente dedicados, apaixonados e leais às comunidades em que trabalham”, define. Eles passam a viver nos locais onde atuam, e como regra geral ouvem e conversam muito com os moradores antes de apresentar projetos. Após o tsunami na Ásia, a arquiteta Purnima McCutcheon, nascida no Havaí, sentiu que tinha o dever moral de trabalhar no país de onde sua família era originária, a Índia, e se mudou para lá com o marido e dois filhos. Ela ficou lá por cerca de dois anos, ao longo dos quais seus filhos cresceram literalmente em meio à reconstrução. Purnima mudou-se depois para a Mongólia e continua engajada na AFH.

Otimista-chefe – Alguns projetos em que a AFH está mais envolvida agora têm a ver com esporte. Em 2002, Sinclair trabalhava num projeto de clínicas móveis voltadas para detecção e prevenção de HIV/Aids na África. Num vilarejo sul-africano chamado Somkhele, ele conversava com uma enfermeira que gostava muito de futebol sobre como engajar as jovens nos programas – 54% delas estavam infectadas. A ideia então foi formar uma liga de futebol feminino, tendo os médicos como técnicos dos times, juntando assim esporte e educação.
     Sinclair lançou um concurso para projeto de um campo de futebol, com todas as instalações (vestiários e pequenas arquibancadas, por exemplo), e um grupo de arquitetos fez o design. O custo seria de US$ 30 mil, que o inglês tentava arrecadar com pequenas doações dos amigos (“ninguém me convidava mais para nada, porque todos sabiam que eu ia pedir dinheiro”, contou). “Então recebi uma ligação da Dinamarca dizendo que eu tinha ganho o Index Award (conceituado prêmio internacional de design) pelo projeto do campo.” O prêmio era de exatamente US$ 30 mil, que Sinclair aplicou na construção do campo e da escola com banheiros limpos e água corrente, sem os quais as meninas não vão às aulas.

No Quênia, um exemplo do projeto "Futebol para a mudança": a estrutura do telhado 
é aproveitada para captar água da chuva, que abastece o povoado

     Pouco tempo depois, uma ligação de Zurique ofereceu ao arquiteto uma parceria simplesmente com a Fifa para replicar o modelo em outros 15 países pelos quatro anos seguintes – era uma iniciativa ligada à organização da Copa do Mundo de 2010, na África do Sul. Sinclair também foi procurado pela Nike para implantar projetos de mudança social com foco no esporte. “No espaço de um mês saímos da situação de procurar desesperadamente uns dólares aqui e outros ali para gerenciar 40 projetos financiados no mundo inteiro”, relata. Cada projeto respeita as especificidades locais e tem foco em aspectos diferentes, dependendo da realidade encontrada: pode ser em saúde, educação, formação profissional, prevenção à violência etc. Um deles foi implantado no bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro.
     Em São Paulo, a AFH tem o design pronto para a construção de um centro esportivo em parceria com a Associação de Moradores da Cohab Adventista 1, em Capão Redondo. O projeto está parado desde outubro do ano passado por impedimentos legais – a construção estaria fora dos padrões do zoneamento da área. Para Sinclair, que visitou o bairro em sua passagem por São Paulo, cria-se um clima de desconfiança entre poder público e moradores quando as leis não acompanham o esforço da população em melhorar sua própria vida. O arquiteto diz que a ONG ainda está pouco presente no Brasil, não por falta de necessidade, mas por falta de apoio e recursos.
     A AFH já atuou em 48 países, tendo erguido cerca de 4 mil construções que impactaram a vida de aproximadamente dois milhões de pessoas. Todos os projetos, inclusive os da parceria com a Fifa, são compartilhados pela Creative Commons (http://creativecommons.org). Fundações, empresas e doadores particulares são seus principais financiadores. Como crianças são envolvidas em campanhas do tipo venda de chocolate quente e muitos jovens também fazem doações, a média de idade dos colaboradores é de 20 anos, diz Sinclair.
     O arquiteto incentiva cada um a se engajar em iniciativas nas quais acredite. “Não deixe para doar sua herança quando morrer ou só depois de se aposentar e achar que já juntou todo o dinheiro de que precisava. Ajude as pessoas que você pode ver e tocar agora”, diz. Quem quiser pode contatá-lo diretamente. Sinclair, que vive na Califórnia, nos Estados Unidos, distribuiu aos interessados no final da conferência o seu cartão, no qual se apresenta como chief eternal optimist (algo como “eterno otimista-chefe”). O e-mail é cameron@architectureforhumanity.org, e o celular: 1 646 765-0906. O site da AFH na internet é http://architectureforhumanity.org.

Vegetais em Chicago, skate no Afeganistão

     Cameron Sinclair diz que os capítulos locais de AFH se espalham rapidamente e criam parcerias com ONGs e outras entidades em cidades universitárias porque os estudantes também são adeptos da prática de Drinking for humanity. Essas iniciativas rendem várias histórias e exemplos inovadores. Em Chicago, nos Estados Unidos, a prefeitura cortou muitos programas sociais por causa da crise econômica, e alguns ônibus que eram utilizados neles ficaram ociosos. Organizações locais então os solicitaram e os adaptaram para transformá-los em mercados orgânicos móveis nos bairros pobres da cidade.
     É difícil encontrar frutas e vegetais frescos nessas áreas, onde as opções onipresentes são de lojas que oferecem coquetéis de calorias, como fast food ou refrigerantes. Os ônibus têm circulado há três anos e vendem o estoque inteiro todos os dias. As rotas serão aumentadas e o projeto será estendido a cidades como Nova York e San Francisco.
     Na China, foram construídas escolas móveis para acompanhar os migrantes pobres que são o grosso da força de trabalho na construção dos gigantescos prédios novos do país. Enquanto pais e mães trabalham, as crianças ficavam sem ir às aulas, gerando vários problemas sociais. Na cidade da Guatemala, foram mapeadas quase 12 ruas que estavam sendo subutilizadas pelo tráfego. O zoneamento delas foi alterado e o trânsito foi proibido. Durante a noite, quadras de esporte foram pintadas no asfalto e os arquitetos construíram instalações como abrigos e coberturas. De manhã, as crianças e jovens já podiam jogar nelas.
     Em Cabul, no Afeganistão, o projeto Skateistan instalou rampas e pistas em galpões e prédios semidestruídos e abandonados com a guerra entre o Talibã e o exército americano. Agora, os jovens, inclusive muitas meninas, estão “retomando sua cidade quarteirão a quarteirão com a prática do skate”, descreve Sinclair. “Faz-se o projeto e cria-se a mudança por meio de soluções positivas. A melhor maneira de criar a paz é por meio de inovações pacíficas”, ensina.


Em Cabul, as meninas também participam do Skateistan

(P.S.: Sinclair fez conferência no dia 4 de junho no Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre, mas este repórter só tem o privilégio de acompanhar o ciclo em São Paulo.)