domingo, 22 de março de 2020

Mia Couto: “Temos que saber criar um espaço nosso, soberano, onde apesar de tudo podemos ser felizes”


Paulo Hebmüller
viajantedoinverso.blogspot.com


Mia Couto: "Não podemos corresponder a esse convite que nos é feito para odiar o Outro"
Foto: Fronteiras do Pensamento


Literatura, memória, fronteiras, política e liberdade foram alguns dos temas abordados pelo escritor moçambicano Mia Couto numa conversa com o público no VI Colóquio Internacional Áfricas, Literatura e Contemporaneidade, em São Paulo.
A conversa, no dia 17 de setembro de 2019, lotou dois auditórios da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP: num deles o escritor ocupou a mesa, ao lado da professora Rita Chaves, docente de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na FFLCH; no outro, o público acompanhou o encontro por um telão.
Depois de uma breve introdução na qual falou de como, ainda menino, ajudava o pai a “contrabandear” livros para dentro de casa, driblando a vigilância da mãe, Mia respondeu a perguntas da plateia.
O texto a seguir traz uma edição dessa conversa. O vídeo com a íntegra do encontro está disponível aqui.

***

Eu tinha combinado com a professora Rita que isto seria uma conversa, e há dois ou três dias ela perguntou – “e qual é o título?” Eu não sabia que as conversas tinham título [risos]. Ela disse que essa conversa tinha que ter uma justificação, qualquer coisa que era preciso fazer… Então inventei uma coisa que já nem sei o que é [O que os livros me deram], e vou conversar convosco.
Quero fazer uma homenagem à professora Rita Chaves: ela é o exemplo mais vivo que eu conheço de como é que as coisas acontecem não porque haja instituições – para além das instituições, há pessoas que fazem coisas. Quando ninguém pensava em África do ponto de vista literário aqui no Brasil, a Rita fez isso com um grupo muito pequeno.
Nós tínhamos uma inveja enorme, porque tanto a Rita quanto a professora Tânia Macedo estavam mais interessadas em Angola, enquanto nós congeminávamos como podíamos raptar essas senhoras para dar atenção àquele outro lado do Índico.
Mas é realmente graças ao trabalho sistemático, trabalho feito com paixão, que possivelmente estou aqui. Estou aqui por causa da Rita Chaves, em grande parte.
Acho que devemos fazer uma salva de palmas para ela [palmas].

Eu sou filho de um escritor, filho de um poeta, então digamos que os livros habitavam a minha casa, forravam as paredes, às vezes as janelas mesmo. Aquilo era um problema para a minha mãe, porque nós não éramos ricos. Houve um tempo em que meu pai foi despedido por razão de uma ditadura fascista e colonial, e esses dois lados se alimentavam reciprocamente.
Houve uma altura em que o meu pai estava proibido de trazer mais livros para casa, e ele combinou comigo que eu era quem fazia o contrabando: ele aparecia em casa, me chamava cá fora e eu metia o livro dentro da camisa e passava. Aquilo me dava um enorme prazer: antes de saber exatamente o que era o valor de um livro, eu sabia que aquilo valia muito, porque era cúmplice desse jogo, dessa malícia organizada com o meu pai e que convertia o meu pai num menino como eu. De repente estávamos os dois conspirando contra a minha mãe, que era uma coisa que nos dava um duplo prazer também. Então os livros aconteciam dessa maneira.
Devo dizer que o meu pai nunca nos mandou ler – somos três filhos. Ao contrário, às vezes nos dizia: “vão brincar, vão viver, e depois vão encontrar no livro aquilo que encontraram na vida”.
Meu pai não era exatamente só um poeta; meu pai vivia em estado poético, o que era outra tragédia para minha mãe, que rezava todos os dias que não aparecesse mais nenhum filho com essa doença… Ela não rezou bem, não sei… [risos]

Houve esse tempo em que meu pai ficou desempregado e que tinha que responder a interrogatórios da polícia fascista, e a gente ficava em casa à espera que ele voltasse. Meu pai não tinha história para contar se não das aves que ele tinha visto no caminho quando voltava para casa: falava das garças, dos pelicanos, dos flamingos – e nunca aquele homem se queixou; uma lamúria, um ressentimento qualquer que nos entregasse. Como se ele estivesse a dizer a todo momento que há coisas que têm uma importância que a gente não vê, que há coisas que são eternas e que a gente tem que ter essa sensibilidade para as descobrir.
Também com ele aprendi algo que depois Manoel de Barros me confirmou, tantos anos mais tarde, que era o valor de descobrir coisas no meio da poeira, no meio do lixo; as coisas desvalidas, que são recolhidas como se fossem o brilho maior do mundo. Isso eu encontrei nos livros porque encontrei na vida. Tive essa felicidade de que os livros foram vividos antes de eu os ler.
Sou um mau leitor. Ainda há alguns dias assisti a alguém que dizia: “com 12 anos lia Proust, Stendhal...” Nada disso. Eu fui tardio. Fui muito ligado à poesia desde o princípio. É, digamos, a minha grande fonte. Acho que o predomínio da oralidade, daquilo que é sentido, que é vivido, que é sonhado por via da palavra, por via do verbo, é tão presente que é preciso perceber que isso não é qualquer coisa menor.

É muito curioso, em Moçambique, que os livros instalam de uma maneira muito clara essa fronteira entre o pensamento escrito, a lógica da escrita, e a lógica da oralidade. As pessoas funcionam de maneira diferente. A pergunta que faço a mim próprio é quanto disso existe vivo dentro de mim, porque a certa altura esse pensamento que nos conduz, que nasce na escrita e se consolida na relação com a escrita, se torna absolutamente hegemônico, e digamos que empurra para o lado da oralidade, das “pequenas histórias”, aquilo que é menor. Como se contar histórias fosse uma sobra, um resquício da infância, e a poesia fosse uma linguagem, vamos dizer, dos vagabundos…
As pessoas valorizam a escrita em Moçambique como sendo um universo a que não têm acesso, mas que é onde acontece o poder – e por isso o escritor é parado na rua muitas vezes como um mensageiro, como alguém que passa essa linha de fronteira. Muitas vezes me param na rua não para tirar uma fotografia ou para pedir um autógrafo, mas para dizer: “olha, diga isto, transmita isto” – e não sei nem exatamente o que ou a quem, mas as pessoas sabem. Esse papel de mensageiro para mim é fundamental.
Uma das coisas que eu gosto é que as pessoas pensam através de histórias e contam histórias todo o tempo. É impossível não ser escritor – portanto eu não tenho nenhum mérito nisso – num país onde as pessoas têm essa capacidade de sonhar e de perceber o mundo através de histórias.
Muitas vezes, quando eu peço uma explicação de alguma coisa muito complexa, do ponto de vista por exemplo da ciência que eu abracei – mas já não sei se ela me abraça a mim também –, a explicação é dada por via de uma história. Só o que é convertido em história ganha a dimensão da realidade. Isso mostra que há uma outra maneira de medir e de pesar o que é o real, o que é o fantástico, e como não se aplica realmente essa categoria do realismo fantástico a quem vive numa situação dessas – e não é que sejam os africanos que vivem nessa situação; todos vivem. Os europeus vivem na mesma situação e eles próprios produzem literatura que nós, fora da Europa, vamos etiquetar como sendo realismo fantástico etc.

Vivo num país que tem essa felicidade de ainda não ser completamente um país, que não está formatado, sedimentado. Há nações diversas que estão convivendo e disputando para ter mais presença, e a língua portuguesa é, digamos, um palco em que essas brigas e esses namoros ocorrem. Isso significa que essa língua está aceitando, está rejeitando, está viva, tem uma dinâmica enorme, e esse é um lugar fantástico para estar como escritor. Eu dou graças à vida por viver nesse lugar, por ser parte desse lugar e por ser parte desses processos históricos que levam a que se crie uma língua que está em movimento e que possa dizer Moçambique.
Como isso se opera na escrita? Como um livro abre espaço para que essas vozes, que pensam de outra maneira, que realizam a língua portuguesa de outra maneira, caibam dentro de uma página de livro?
Essa experimentação é feita não só por um escritor solitário, que está em casa pensando como criar alguma coisa nova, mas é feita pelas pessoas no seu cotidiano. Todos os dias há uma surpresa, todos os dias há um espanto de uma palavra nova que se encontra, de uma construção nova que se revela muito poética ou produtiva mesmo. 
Isso é o que posso dizer da minha relação com a escrita e da minha relação com os livros, sobretudo no momento em que eles ainda não são livros e em que ainda não foram escritos.
Um jovem que me encontrou na rua disse: “Eu tenho muitas histórias. Quer ouvir?”, e me contou várias histórias. Dizia ele: “Eu quero ser escritor” – muitos querem ser escritores. Ele começou a me contar histórias e eu disse: “Bom, agora só falta transportar isso para o papel”. E ele perguntou assim: “E eu vou ter que escrever mesmo por escrito?”
O escritor funciona como um tradutor – no fundo um tradutor de mundos, um tradutor de lógicas. Não só porque há várias línguas em Moçambique – mas um tradutor é no sentido mais clássico alguém que intervém transportando o universo de uma língua para outra, de uma nação para outra, e também na fronteira entre o oral e o escrito.
Como fazer com que a literatura, a palavra escrita, tenha essa vitalidade, essa cor, esse cheiro que carrega a palavra oral? Esse é o grande desafio que nós temos como escritores numa realidade como a de Moçambique.
Acho que isso já chega como pontapé de saída para que a gente fale de todo o resto. Não fiquemos amarrados a isso: eu só tive que dizer essa coisa porque tinha que justificar o tal título. Então partamos para uma conversa livre e improvisada como são as conversas. E no Brasil não é difícil conversar; o difícil é parar a conversa.

[Perguntas da plateia] 

Acho que a gente vive um momento no mundo de entrar em contato com as várias fronteiras. Eu queria uma reflexão sua sobre as fronteiras: como a gente eleva a ideia do escritor em língua portuguesa e tenta ao mesmo tempo diluir as fronteiras?

Não sei se compreendi bem a pergunta, mas vou fazer de conta que entendi e tentar falar sobre como ela me tocou.
Eu defino a mim próprio – ou fazia isso antes, agora já não sei o que é – como uma criatura de fronteira, porque sou um africano que é filho de europeus; um africano que é branco; um ateu no meio de um universo profundamente religioso; um cientista num mundo que acredita em coisas invisíveis e mágicas; um escritor num mundo da oralidade etc. Por mim passam mil fronteiras. Me apetece ser contrabandista dessas realidades e também o modo como Moçambique neste momento vive essas fronteiras duma maneira desdramatizada – isto é, a pessoa ao mesmo tempo poder ser várias coisas, pode ser algo que provavelmente não existe em outros lugares do mundo, pode ter várias religiões ao mesmo tempo. De manhã é uma coisa e à noite é outra, sem que isso seja um drama e sem que seja esse mundo da dualidade bem definida: eu tenho que ser isto ou aquilo – as pessoas são isto e aquilo.
Para mim me apetece poder ser esse atravessador de fronteiras desvalorizando-as, num momento em que essas fronteiras hoje também têm um serviço político bem claro: elas estão sendo construídas de maneira que se possa, digamos, fundamentar o medo. Elas já resultam disso, de uma criação do Outro como desconhecido, como inimigo potencial.
Portanto, mais do que nunca é preciso saber que uma coisa é a busca da identidade, que é permanentemente necessária – mas que essa identidade seja sempre fluida, volátil, e que a gente não perceba como um drama: eu tenho que ser uma coisa. Não há problema nenhum em que eu deixe de ser no momento a seguir.


"Não saber fazer bem o capitalismo pode ser uma grande virtude"
Foto: Fronteiras do Pensamento

Antes de escrever Sagarana, Guimarães Rosa falava que os personagens rondavam o imaginário dele e pediam pouso em papel. Você é capaz de transformar qualquer pensamento em poesia. Como você consegue colocar essa magia toda em personagens como o Kindzu (de Terra sonâmbula), por exemplo? Você viveu essa mágica dentro da sua vida?

Não sei explicar [risos]. No processo que eu uso – é um caos absoluto, mas vamos chamar de processo –, tenho que me apaixonar por uma personagem, por um momento, por uma situação, por uma fala, por qualquer coisa que me convoca absolutamente e que me coloca num estado quase de embriaguez. Eu vivo isso, digamos, como um ébrio convive com a garrafa. Essa personagem, essa situação ou essa fala estrutura o resto: tem que ter vida, tem que ter sedução suficiente para que viva dentro de mim, e isso depois é que convoca a história.
Eu não começo nunca pela história, não sei fazer assim. A história não está estruturada, não existe uma arquitetura. Essas personagens, se estão vivas, se me habitam, se são eu próprio, então sim elas me levam.

Quem são os escritores da literatura brasileira contemporânea que você tem lido e por quê?

Tenho lido pouco. Estou muito preso a uma pessoa que eu conheci, o Julián Fuks, que conviveu comigo porque participamos de um mesmo programa de tutoria – não gosto dessa palavra… Gosto muito do que ele faz e ele vai publicar agora um livro do qual eu vou participar [A ocupação]. A minha parte, felizmente para ele e para os leitores, é só um pedacinho.
Não tenho nenhuma grande relação com uma literatura mais moderna, mais desligada das histórias, uma literatura mais pós-moderna, que vive naquele sofrimento e que acha que a ausência da história valoriza a própria literatura.
No caso dele, é alguém que atravessa isso dizendo: “Eu estou, eu moro nisso, mas quero fazer outra coisa, portanto quero viajar para alguma outra coisa”.

Você se recorda de alguns dos livros que você contrabandeava? E o que é memória para você? Qual é a obra que habita esse imaginário da memória?

Como aqueles condenados que estão perante o julgamento, eu diria que não me lembro dos livros que contrabandeei. Mas imagino que seriam coisas de poesia, alguns brasileiros mesmo. Meu pai era muito ligado à poesia da França, da Espanha, de Portugal… Acho que seria basicamente isso.
A memória é um assunto que me ocupa, até porque eu sofro da falta dela imensamente; sou quase um caso clínico. Ocupa-me porque, instituída do ponto de vista individual ou coletivo, qualquer que seja o coletivo – uma nação, um grupo etc. –, ela é quase sempre uma construção feita de esquecimento. É como se fossem os dois lados de uma mesma moeda.
No caso de Moçambique, é muito claro esse percurso que percorremos para se fazer uma nação e o quanto se teve que esquecer: o quanto que se teve que lembrar, mas é mais o que se tem que se esquecer. E o quanto uma nação é feita do modo como esquecemos juntos.
Da mesma maneira que o que somos é feito como uma espécie de acordo conosco, com as várias dimensões interiores que temos: aceitamos que há coisas que não aconteceram; qualquer coisa que se apagou dentro de nós.
Eu tenho essa relação com a memória como tenho com as fronteiras: o melhor é não pensar nela, é não questioná-la tanto assim.
Vou usar uma coisa que é do meu cotidiano: eu percebi que sofria muito quando as minhas filhas – as duas filhas, meu filho já não vive em minha casa – e a Patrícia, minha mulher, no café da manhã, começavam a contar os sonhos, e eu não tinha sonho nenhum para contar. Eu sentia-me desvalido e pensava: olha, tenho que inventar um sonho rapidamente… Comecei a inventar sonhos, e fazia o relato com toda a convicção.
Depois eu percebi que não mentia tanto assim, porque o que elas contavam como sonho era uma reelaboração, era alguma coisa que, para ser completamente “verdade” – se é que a gente pode pôr verdade nisso –, pedia uma linguagem que não existe, que é a linguagem dos sonhos. Um sonho só pode ser relatado numa linguagem dos sonhos. Então eu agora já invento. Os meus irmãos dizem, quando estou a contar: “nunca estiveste lá, não foi assim”.
No livro que estou a fazer – o primeiro que faço de memórias da minha própria adolescência e infância –, eu vou por aí. Não me interrogo sobre quanta verdade tem o que estou a fazer lá.
Sobre a obra literária… Eu não sei. Há um livro que está na minha cabeceira permanentemente, que é o Livro do Desassossego, do Fernando Pessoa, que não fala exatamente disso, mas que pensa o modo como nós construímos esse tipo de coisas que são os grandes qualificativos humanos: da memória, do pensamento, do sentimento. Ele me ajudou a resolver algumas coisas que pareciam que tinham necessidade de um psicanalista ou de um psiquiatra mesmo.


Sobre o último livro da trilogia das Areias do Imperador: por que retomar essa história do fim do Império de Gaza por meio de duas personagens, a Imani e o Germano?

Não me interessa falar no passado, interessa-me falar no presente, e usei esse passado simplesmente como pretexto para questionar o presente, que tem muito a ver com algumas situações de conflito, de poder. O que está naquela história são essas condições históricas que nunca foram resolvidas, como a situação da mulher.
Interessam-me a Imani e a família da Imani como um palco onde acontece esse tipo de conflito dentro de uma família e no seio de uma pequena aldeia. Para mim, a Imani que atravessa aquele livro é toda mulher moçambicana no seu percurso.
O Germano interessa-me como um Outro que nos ajuda a ter um retrato próprio, digamos assim. Realmente Moçambique tem uma condição muito curiosa porque quem desenhou as fronteiras e deu o nome ao lugar era um tal Mussa Bin Bique. É muito curioso isso, porque os portugueses, quando chegaram àquele território, que não tinha nome para eles – e dar o nome, isso está no livro também, já é uma atitude de poder –, o chamaram de terras de Mussa Bin Bique, que era um sultão que respondia perante o sultanato de Zanzibar. Isto é, essa pessoa que dá o nome a Moçambique, se hoje voltasse para lá, teria que pedir um visto.
O Germano está ali como alguém que ajuda a definir esse contorno: o Outro e nós, o dentro e o fora. Eu usei-o nessa perspectiva, e sobretudo porque me apetecia mostrar que isso, que era tido como Portugal ou os portugueses, não era uma coisa tão simples, era uma coisa fraturada. Era uma coisa que tinha os seus próprios conflitos, e isso me parece uma coisa importante a ser dita dentro de Moçambique também.

Qual é o desafio de um escritor, sobretudo africano, pensando em novos tempos em que há esse confronto entre o tradicional e uma modernização transformando até a produção de memórias e de narrativas?

Acho que a condição de um escritor africano pode ser como a de um brasileiro – não sei por que não é comum a todos os outros escritores do mundo, não é? –, de como lidar com esse apagamento da memória, que é uma tentação política da parte de certas elites que querem reconstruir a sua própria legitimidade a partir de uma história que foi silenciada.
Aqui no Brasil isso é muito claro. Em Moçambique existe um pouco essa tentação de haver uma única voz que dá sentido à “grande História”, e isso está sendo questionado. É um assunto que passa para muito além da literatura. Essa manipulação do tempo é tão clara como alguma coisa que, para dominar os outros, é preciso que esses outros não existam e não tenham sustentação histórica.
Não sei quanto o Brasil recorda a ditadura militar ou quantos querem que isso não seja recordado, ou quantos querem que isso seja recordado de uma certa maneira. Um fato histórico pode ser manipulado de diversas maneiras. 

O que significa a presença da água na sua obra?

Significa para mim, antes de mais nada, uma presença que inundou literalmente a minha própria infância. Eu sou de uma cidade [Beira] que nasceu de um engano geográfico: disseram para construir do lado direito e a pessoa construiu do lado esquerdo. É ótimo ser de uma cidade que nasce dessa desobediência. E a cidade nasceu sobre um pântano, onde seria impossível haver uma habitação humana. Mas está lá, com grande resistência.
E a cidade é inundada periodicamente – mesmo diariamente. Eu vivi em bairros em que lembro da minha mãe dizer: “volta antes da maré”, porque o mar era o grande relógio. Às vezes digo que os outros têm uma terra natal e eu tenho uma água natal. Como uma referência para a minha escrita, posso dizer que há essa explicação mais terra a terra.
Do ponto de vista simbólico para as culturas de Moçambique, há sobretudo na chuva uma relação divina com o invisível. É sobretudo a chuva, não o mar; alguns lagos sim são sagrados porque ali estão espíritos – e há aquele símbolo da água que é universal, da vida, do renascer…

A sua vida atravessa o contexto colonial e o contexto pós-colonial em Moçambique. Como esses dois momentos históricos impactaram na sua vida como escritor? E da sua obra, qual é aquele livro pelo qual você tem um carinho especial?

Começando pelo fim: se me perguntarem isso amanhã, digo diferente, mas acho que o livro que me ajudou a resistir contra um momento de desumanização que era profundíssimo – depois de 16 anos de guerra civil, eu pensava que não era capaz de escrever sobre aquilo que vivi – foi Terra sonâmbula.
Terra sonâmbula permitiu que eu fizesse paz com uma série de fantasmas que me assaltavam. Houve colegas meus que foram mortos na guerra, houve amigos meus que desapareceram, sonhos meus que se anularam. A guerra nos faz anular, nos faz pensar que não há alternativa nenhuma. Ser capaz de ter começado esse livro, esse livro ter acontecido dentro de mim… Acabei o livro e logo a seguir foi o acordo de paz. Não é o que eu mais gosto, mas é o filho que me deu mais trabalho.
As minhas vidas em dois tempos diferentes, no tempo colonial e no tempo pós-independência, são vidas completamente distintas, principalmente do ponto de vista humano, do ponto de vista racial. A sociedade colonial não tinha preocupação nenhuma em esconder essa violência do racismo, e depois da independência isso se converteu numa outra coisa. Não quer dizer que a situação do racismo em Moçambique esteja resolvida, mas não tem absolutamente nada a ver com aquilo que era ter uma raça no tempo colonial.
Isso era tão gritante que o que me fez mobilizar para a luta pela independência foi sobretudo o que eu via no cotidiano da minha cidade. A maneira como as pessoas negras eram discriminadas, maltratadas, passavam da inexistência até a existência do ser culpado, do ser maléfico: isso era muito doloroso.
Eu acho que vivi isso – foi um privilégio, toda a minha geração viveu situações de contraste que não foram só essas. Tivemos situações de guerra e situações de paz que nunca foram completamente uma coisa ou outra.
Agora, a situação pós-colonial tem muito do colonialismo que continua vivo. Nós importamos uma ideia de “desenvolvimento” – e esse já é um termo que tem que ser questionado – que assenta sobre os pressupostos coloniais de maneira clara. Continuamos a ser exploradores de matérias-primas, continuamos a ter uma relação com o mundo que é bastante colonial. Mas também do ponto de vista dos universos que são políticos – por exemplo, nós vivemos um período de socialismo marxista-leninista etc., e vivemos intensamente como se fosse uma ferramenta para nos libertar. E agora vivemos sob um capitalismo e sempre acontece a mesma coisa – não era o socialismo que a gente pensava que era, não é o capitalismo que a gente pensa que é. Não sabemos fazer bem nem uma coisa nem outra. Pode ser uma virtude. Sobretudo não saber fazer bem o capitalismo pode ser uma grande virtude.


"Neste contexto talvez a palavra 
mais importante seja liberdade – porque 
ela está sendo ameaçada todos os dias. 
Parece que há um passo dado que pode 
destruir a liberdade que ainda existe no Brasil"


Como você vê o fazer literatura – a literatura sob a ótica do trabalho, não só do ponto de vista do retorno financeiro? Você tem uma ética de trabalho?

Eu acho que sim. Tenho uma ética que é anterior à escrita: a minha ética como pessoa, meu posicionamento perante o mundo, e isso tem que se refletir no trabalho que faço como escritor. Financeiramente é um logro, porque quem enriquece – está aqui a representante da editora: não digas isso lá na editora [risos] –, mas normalmente não é o escritor que fica rico, porque ele recebe uma parcela… É muito injusto. Sempre se pensa que os explorados são os trabalhadores manuais etc. Mas não são só. Não posso queixar-me muito, mas a margem que vai ficando entre editor, distribuidor, livreiro e o resto... O que é menor fica para o escritor. Quem quiser ficar rico pela via da escrita precisa pensar duas vezes.
Eu tenho que explicar à minha família, sempre que abrem a porta e eu estou lá sentado em frente ao computador, que eu estou fazendo alguma coisa. É um pouco a ideia de que o escritor está sempre ocupado, mas nunca faz nada.
Não abdico de ter coisas várias que eu faço. Eu continuo a ser biólogo e a exercer a profissão porque quero ter essa relação múltipla com o mundo, ter várias janelas por onde eu possa espreitar e também trabalhar com uma equipe. A escrita pode ter uma tentação muito fechada, muito solitária.

A Festa Literomusical de São José dos Campos (FLIM) [cuja sexta edição foi realizada em setembro de 2019] foi muito especial para as três mil pessoas que estavam lá. No final do evento, fizeram uma pergunta sobre qual palavra você escolheria para fechar a FLIM e você escolheu liberdade. Acho que para todo mundo que estava lá isso foi muito significativo porque houve várias manifestações e tudo conduziu para aquele momento. Seria muito importante para a gente também entender o porquê da escolha dessa palavra e como essa palavra se ressignifica hoje na sua obra, em Moçambique e sobretudo aqui no Brasil, em que estamos vivendo dias tão difíceis.

São José dos Campos foi um momento para mim, porque aquilo era o encerramento de uma festa literária que acontecia num lugar bonito, num lugar com história, e a história é que a comunidade em volta do parque [Vicentina Aranha] se apropriou do parque e resistiu contra a ocupação que a gente conhece qual é – tornar aquilo “rentável”. Eu já me sentia bem porque era um lugar que eu podia adotar como casa – e depois vieram dizendo que tinha que se mudar o palco, porque havia mais gente do que se pensava.
O que me pediram no fim é que eu escolhesse uma palavra, e é sempre difícil esse jogo de escolher uma palavra, e ocorreu-me que neste contexto do Brasil talvez a palavra mais importante seja liberdade – porque ela está sendo ameaçada todos os dias. Parece que há um passo dado que pode destruir a liberdade que ainda existe no Brasil.
Eu sempre me ponho essa questão de que sou estrangeiro. Eu tenho que ter respeito, tenho que saber conter-me, não quero ter essa arrogância de chegar aqui ao Brasil e dizer coisas para os brasileiros. Os brasileiros sabem muito bem o que querem e não precisam de um escritor que venha do outro lado do mundo para dizer coisas.
Por outro lado, acho que atraiçoaria o sentimento que tenho para com o Brasil se eu não dissesse certas coisas e como nos preocupa, aos escritores de Moçambique, e acho que aos moçambicanos também, este assunto que não é só partidário, que não é só a escolha política entre direita e esquerda: é um assunto entre a democracia e a ditadura. Isso me parece que tem que ser dito.
E me parece que essa ditadura é como se fosse um programa que está lá: quem foi eleito não se sente no regime que ele quer, e de uma maneira clara, porque foi dito antes, foi dito depois, que a democracia é um estorvo, uma chatice, que é preciso eliminar para se poder governar no território exclusivo dessa ditadura.
A maneira como as instituições democráticas e o Estado de Direito são atacados, como se ofende aquilo que é a independência dos poderes… Todos os dias há uma notícia que fala sobre isso, mesmo quando essa notícia é secundarizada por uma coisa mais escandalosa que é dita e que parece uma poeira que se faz para conduzir a uma certa distração.
Acho que isso tem que ser dito, de uma maneira humilde. A única coisa que podemos dizer é que estamos solidários com essa luta, com essa resistência. O fato de que os livros continuam a existir, continuam a convocar pessoas para conversar – as três mil pessoas que estavam em São José, numa festa; isso não tem nada a ver comigo: tem a ver com o fato de que as pessoas estão ali porque querem falar sobre cultura, sobre literatura, e isso será muito difícil qualquer um no Brasil anular como pensam que podem fazer.
É uma declaração mais de solidariedade: dizer que estamos convosco nessa briga. [palmas]

A primeira obra sua que li é Vozes anoitecidas, e provavelmente é o meu livro preferido na vida. Em vários contos aparece a figura do pássaro. Qual a simbologia desse pássaro, seja pessoalmente ou em Moçambique?

Não sei que simbologia isso tem para mim, mas provavelmente a minha relação com os pássaros é uma relação nunca resolvida. Quando eles entram nas minhas histórias, é porque literalmente entraram na minha vida.
Vivem comigo três corujas que caíram do ninho. Eu cuidei delas e já não posso libertá-las, porque já não sabem viver de outra maneira. Nunca pensei que iria ter pássaros, mas eu não tenho pássaros: de uma certa maneira eles é que me têm a mim; eu sou quase posse deles.
Escrevi um conto que se chama “Pássaros de Deus”, em que há um pescador e cai uma garça em sua canoa. Ele pensa que essa garça é um teste: Deus está tentando provar a sua bondade. E contra tudo e contra todos ele quer proteger aquele pássaro. 
Eu trabalhava na estação de biologia de uma ilha e um dia caiu uma garça exatamente como aquela – pequena ainda, muito jovem. E eu trouxe aquela garça para o meu quarto, e lhe dava de comer, e a garça adotou-me como tio ou como tia, e eu entrava e ela saltava… Um mês depois, eu voltei para Maputo e pensei – não posso deixá-la. Perguntei aos meus colegas, pelo amor de Deus, alguém fique com esse pássaro, e ninguém queria ficar. Atravessei de barco para a capital com o pássaro amarrado e, quando cheguei ao outro lado, o homem do táxi disse – “não, não entra pássaro aqui no meu carro”.
Então percorri a cidade com aquele pássaro que só olhava para mim e pedia comida, porque estava cheio de fome. Quando cheguei em casa, a Patrícia abriu e porta e perguntou exatamente aquilo que tinha perguntado essa senhor no centro: “estás maluco? Vais trazer um pássaro para casa?” Ela não disse “vamos comer o pássaro”, como disse a senhora do conto. Mas quase era isso…
Então caem-me pássaros na minha vida, tombam pássaros na minha vida.
Do ponto de vista científico, eu sou ecologista da área vegetal e não tinha nada a ver com pássaros.
Vou contar só esta história, porque tem a ver com Moçambique. Fui mandado para uma floresta no norte do país, no Niassa. Como não havia ornitólogo, meus colegas disseram – “ah, mas tu és poeta, tratas de pássaros e não sei o que, vais classificar os pássaros”. E eu fui com um velho de uma aldeia próxima que teria que identificar na sua língua o nome dos pássaros, que era mais um elemento para depois eu chegar na classificação final. Eu estava morto de cansaço, quatro horas da manhã, andava entre as pedras de um rio com um calhamaço, um volume com a identificação dos pássaros que só me atrapalhava.
Então, rapidamente escutei o primeiro pássaro e perguntei ao homem: “olha, esse pássaro que está a cantar aqui, como é que vocês chamam?” E ele: “qual pássaro?” “Este que está a cantar aqui atrás desse arbusto.” E ele disse assim: “bom, esse pássaro nós aqui em Niassa não chamamos bem, bem pássaro, nós chamamos sapo”. (risos)
Então era só uma questão linguística… Eu fiquei com uma raiva enorme e decidi: vou estudar pássaros, e hoje sei de pássaros.

Qual é a sua relação com as ciências mais duras, como a física, a matemática, e como você traz isso para os seus livros? E qual a sua relação com a ficção científica?

Com a ficção científica, não tenho relação literária. Praticamente, quando faço ciência, estou a fazer ficção científica (risos).
Eu não tenho boa relação nem com ciências duras nem com ciências menos duras. Eu estou lá como visitante – não deveria dizer isso num lugar em que há uma faculdade de Geografia… Eu sou biólogo, mas na verdade só me interessa a biologia como uma ponte, como uma possibilidade de conhecer outras lógicas, outras línguas. É como se eu quisesse perceber que a árvore tem alguma coisa para dizer e eu quero aprender isso. Desse ponto de vista em que eu possa reconquistar uma relação de parentesco e intimidade com as criaturas: é isso que me interessa. De resto, não sei se serei um bom cientista, porque acho que a ciência só dá uma resposta. Essa resposta é importante, mas é preciso compor outras respostas com outras sabedorias, outras linguagens.


Mia Couto autografa seus livros depois da conversa com o público na FFLCH
Foto: Paulo Hebmüller

Tenho pensado nas suas obras a partir de um martinicano chamado Édouard Glissant. Ele diz que as nações atravessadas por processos violentos, especialmente o colonialismo, precisam de narrativas para se reafirmar: essas sociedades precisam de um épico, e a literatura contemporânea tem esse papel de formá-lo. Porém, é um novo épico baseado em sujeitos que não têm voz e que precisam da literatura para ter essa voz, que se dá de forma multilíngue nas narrativas. Eu percebo isso nas suas obras quando você dá voz para crianças, idosos, mulheres... Vale dizer então que você está a fabular esse épico moçambicano?

Essa pergunta é extraordinária, mas eu não sei. Para dizer a verdade, não é uma coisa que nasça como projeto. Essa ideia de que o Glissant falava – mais do rizoma do que da raiz, daquilo que se pode juntar secretamente e unir numa só entidade –, seria mentira se eu dissesse que tenho sim isso como ambição e que portanto penso os meus livros dessa maneira. Não acontece assim. É uma coisa tão ao acaso, tão caótica, tão ausente de um eixo ou de uma bússola…
Quanto às vozes… Ajudou-me a perceber, isso sim, quando fui jornalista. O jornalismo foi importante para mim, porque entrei em contato mais íntimo com essa multiplicidade de vozes que queriam contar histórias, e isso tornou a relação com a escrita muito menos solitária. Portanto, tenho o dever de saudar esse meu tempo de jornalismo como uma escola que foi importante para ter essa relação com os outros que não têm voz.

Eu queria saber como você consegue, em meio a tantas situações difíceis que aborda nas suas obras – a questão do silenciamento, o embate de identidade do eu e do Outro, a guerra –, manter uma narrativa tão bonita? Como você trabalha com essa linguagem mantendo a beleza, a magia, e deixando tudo tão leve? Acho que é importante para a gente, no momento que estamos vivendo, algo tão obscuro, tão difícil, entender como manter essa beleza nas palavras mesmo narrando coisas que são tão difíceis, tão dolorosas.

Acho que fui conduzido por uma entrevista em que vi o ex-presidente do Vietnã, que era um poeta, Ho Chi Minh. Ele esteve preso numa prisão cruel, escura e em condição solitária, e escreveu versos de amor que depois foram publicados em livro. A pergunta que lhe fizeram foi esta: como você, naquela condição, escreveu versos que eram tão etéreos, tão ausentes de sofrimento? Ele respondeu uma coisa que ficou o lema da minha vida – ele disse: “eu desvalorizei a parede”.
Acho que isso é absolutamente necessário, porque – e agora há pouco estávamos a falar da ameaça de ditadura que pode pesar sobre o Brasil – vejo o quanto isso antecipadamente nos ocupa, o quanto essas paredes já estão lá. Nós temos que saber criar um espaço nosso, soberano, onde as coisas acontecem, onde apesar de tudo podemos ser felizes, e essa felicidade é uma arma contra a ditadura.
Eu vivi em condição de ditadura e posso vos dizer – minha família era de alguma maneira privilegiada, mas a luta contra a ditadura me trouxe talvez a parte mais importante da minha vida. Foi o momento em que, apesar de tudo, fui capaz de, juntamente com outros, construir laços solidários. É quase um pecado dizer disso, mas até fui feliz lutando contra isso.
Me parece que o discurso de quem transporta esse projeto é um projeto que se alimenta do medo, do ódio, se alimenta da incapacidade de reconhecer o outro como alguém com quem a gente possa conversar, possa trocar ideias.
Seria uma grande arrogância estar a dizer isso como se fosse um sermão, mas a experiência em Moçambique tornou bem claro: de um lado e de outro, nós diabolizamos o Outro. Parecia-nos tão legítimo fazer isso porque era uma resposta ao ódio dos outros e nós construímos, como uma defesa, uma resposta de igual dimensão. Anos depois, há uma guerra civil. Estou usando o termo guerra civil porque li uma declaração feita pelo presidente do Brasil em que ele dizia que, se um dia chegasse a ser presidente, partiria direto para uma ditadura e terminava o trabalho que o regime militar não tinha terminado – e optaria por fazer uma guerra civil em que se matariam “uns trinta mil”.
A guerra civil em Moçambique demorou dezesseis anos, morreram um milhão de pessoas, chegamos ao fim e tivemos que nos sentar à mesma mesa com os inimigos que nos matavam. E a pergunta é: valeu a pena tudo isso?
Talvez nós tivéssemos que ter uma resposta mais diferente, mais de apreciação de que não podemos corresponder a esse convite que nos é feito para que nós também passemos a odiar o Outro.