terça-feira, 15 de março de 2022

O ucraniano, a guerra e a palavra

Paulo Hebmüller, viajantedoinverso.blogspot.com


Boris Schnaiderman nasceu em 1917 perto de Odessa, na Ucrânia. Sua família migrou para o Brasil quando ele tinha oito anos de idade. Formou-se engenheiro agrônomo, exercendo a profissão por alguns anos antes de enveredar para o jornalismo, a tradução e o mundo editorial. Schnaiderman foi um dos primeiros a traduzir a literatura russa diretamente para o português. Até então, nas décadas de 1930-40, os textos que chegavam por aqui geralmente eram versões produzidas a partir das edições francesas.


O professor e tradutor Boris Schnaiderman
(Foto: Cecília Bastos/Jornal da USP)

Doutorou-se em Letras pela USP, em 1971, sob orientação de Antonio Candido, e como docente no curso de Letras Russas da universidade formou muitos tradutores e professores. Por considerar a tradução um trabalho sempre inconcluso, seguiu revisando os textos que havia vertido ao português até praticamente o final de sua longa vida. Morreu em maio de 2016, um dia depois de completar 99 anos.

Schnaiderman naturalizou-se brasileiro no início da década de 1940. Tinha a certeza de que o Brasil acabaria por aderir aos Aliados na Segunda Guerra Mundial e queria se alistar para combater o nazifascismo na Europa. “Pode parecer estranho que um pacifista convicto como eu tivesse essa preocupação. No entanto, estava convencido de que este era o caminho certo, o único em vista”, escreveu em Caderno Italiano, livro que reúne vários textos sobre sua experiência na guerra, onde lutou na Força Expedicionária Brasileira (FEB) entre 1944-45.

Em 1964, publicou Guerra em Surdina, ficção baseada nas suas vivências de soldado, do treinamento até o retorno ao Brasil, cuja quarta e última edição saiu em 2004. No livro, relata como os scugnizzi de Nápoles – garotos de sete a 14 anos, “com olhos de adulto, de quem já conhece todas as misérias” – abordavam os soldados aliados de várias nacionalidades para levá-los aos becos e ladeiras em que encontrariam mulheres.

Schnaiderman com o uniforme da FEB,
em foto tirada na Itália
dois dias após o fim da guerra

Em outra passagem, narra: “Por ocasião das refeições, quando nos agrupamos em torno da cozinha fumegante, uma verdadeira multidão esquálida e murcha vem assistir ao nosso repasto. Velhos, moças, crianças, todos têm um olhar de cão faminto para as nossas marmitas. Não é possível comer com tanto sofrimento em volta. Geralmente, belisca-se um pouco e vai-se entregar a marmita a alguém na multidão. Vi companheiros chorando depois de uma cena dessas. Mas não há dúvida: temos que nos calejar e aceitar tudo”.

Num texto chamado “No limiar da palavra”, no Caderno Italiano, este ucraniano que quis ser brasileiro e dedicou a vida a polir a palavra reflete exatamente sobre os limites dessa criação humana. Schnaiderman registra sua perplexidade com uma foto, encontrada por um companheiro nos escombros de uma cidadezinha que o exército invasor havia abandonado às pressas, na qual algumas dezenas de soldados alemães posam para a câmera, vários deles sorridentes.

Até hoje, a alegria no rosto daqueles jovens só me causa mal-estar. Era a alegria dos que estavam pisando territórios invadidos. Como verbalizar aquilo? Como encontrar uma tradução? Pois esta exige, certamente, um mínimo de linguagem comum. E não estaria aí o limite do traduzível, o limar da palavra?”, pergunta. “Como não lembrar, por trás destes sorrisos, os fornos crematórios, a abjeção e a ignomínia daqueles anos? Realmente, a palavra humana tem o seu limite intransponível, sua barreira final.”

"Como encontrar uma tradução"?
(Fotos: reproduções do livro
Caderno Italiano)