A entrevista, uma das grandes alegrias que a profissão me proporcionou, foi publicada pela revista Brasileiros em novembro daquele ano.
A seguir, a íntegra da entrevista:
As escutas de Mia
Couto
Trabalhando em um novo
romance, o autor premiado de Terra
sonâmbula, entre outros, fala de uma África plural e revela que faz pare “da
pequena tribo dos contadores de histórias”
Por Paulo Hebmüller
Revista Brasileiros nº 88 – Novembro de 2014
É das coisas humanas,
demasiadamente humanas, que fala Mia Couto. Da importância, por exemplo, de os
pais contarem histórias a seus filhos, gerando um espaço “produtor de nossa
própria humanidade”, que “cria uma relação interpessoal e uma capacidade de estarmos
juntos e de sermos outros”. Ou do alerta para o fato de que, na cacofonia de
vozes da atualidade, estamos deixando de ouvir uns aos outros. Ou ainda de
postular que escutar árvores e animais, aprendendo também sobre a relação
simbiótica que temos com bactérias e micro-organismos em nosso corpo, são
práticas que nos fariam menos presunçosos em relação aos semelhantes e ao papel
de nossa espécie no planeta. O alarmante talvez seja constatar que, ditas
assim, com a simplicidade que de fato possuem, essas coisas já pareçam tão
inusitadas e sem lugar em nosso cotidiano.
Foto: Renato Parada |
Brasileiros – Antes de falar do
processo de escrita, gostaria de perguntar sobre o seu processo de escuta. De
que forma o senhor começou a escutar essa oralidade, que depois transpôs para a
palavra escrita?
Mia Couto – Começou em casa, quando começa tudo. Havia ali essa tentação de escutar
e vivia-se em um ambiente de histórias. Meus pais, sendo imigrantes
portugueses, eram contadores de histórias e sofriam daquele mal da saudade,
então tinham de reinventar o país que deixaram. As primeiras grandes viagens
que fiz foi por meio da escuta dessa narração. Também havia outra coisa: eu era
o que ficava calado, os meus irmãos falavam. Digamos que percebi que havia
quase uma repartição de funções. Cabia a mim escutar, e isso foi uma grande escola.
E quando o senhor começou a achar que era hora de transpor essas vozes – também aquelas para além da sua casa – para a escrita?
Essa África onde eu
vivo é uma sociedade que escuta. As pessoas escutam os outros e na conversa há
uma distribuição de tempos: o tempo da fala e o tempo da escuta, como se por
turnos as pessoas soubessem o que têm de fazer. Acho que houve um momento em
que eu, já jornalista, fui tentado a escrever as histórias que escutava. Essas
histórias estavam tão vivas, tinham tanta força, que pediam que fossem
transportadas dessa oralidade para a escrita. Mas aí percebi que a própria
escrita tinha de mudar. Aquela que eu sabia e reconhecia não acomodava essa
riqueza, essa coloração e, sobretudo, a música, a prosódia. Comecei a procura de
uma escrita que fosse plástica e permitisse essa inundação da oralidade. Fiz um
primeiro livro (Vozes Anoitecidas,
1987) já muito influenciado por um angolano chamado Luandino Vieira, que abriu
portas à oralidade da sua cidade, Luanda, e li uma entrevista em que ele fazia
referência à influência de João Guimarães Rosa em seu trabalho. Então, fui à
procura de Guimarães Rosa. Nos meus livros seguintes, como Estórias Abensonhadas (1994), já tive esse encontro, que realmente
foi importante porque havia ali uma legitimação: é possível fazer isso, é
possível deixar entrar essas vozes.
Em um texto de E se Obama fosse Africano? (ensaios, 2011), o senhor conta de um
ancião que lhe diz: “A diferença entre nós não está no que falamos. A diferença
está em que eu sei ficar calado em português e o senhor não sabe ficar calado
em nenhuma língua”. A sua escuta é também desse silêncio?
Sim, sobretudo é isso.
Há uma aprendizagem que essa sociedade mais rural nos confere porque na cidade
ficamos atrapalhados quando há um silêncio, e é preciso recobri-lo. Esse
incômodo, em contraste, não é vivido nessas sociedades. As pessoas têm no
silêncio uma espécie não de ausência, mas de uma presença. Alguma coisa está a
ser falada naquele momento. Isso tem a ver com uma forte crença no mundo
invisível e de espiritualidade que rodeia os viventes.
Alguns dos seus livros anteriores,
especialmente de contos, têm sido publicados recentemente no Brasil. O senhor
relê esses textos? E o que reconhece de si mesmo neles?
Essa é uma boa pergunta…
Em princípio, não releio. Eu reescrevo tanto que aquilo fica quase saturado.
Depois, preciso fazer uma ruptura e, se regresso a esses personagens, eles vão
me convocar e nunca mais sair. Só faço isso quando compelido – por exemplo, por
causa de reuniões em escolas que estão a estudar algum texto. Reencontro, às
vezes, coisas que me parecem um bocado ingênuas, adolescentes. Havia aquela
tentação inicial de querer dizer tudo num livro… Acho que houve depois um
caminho de contenção. Percebo como um período em que quis dizer certa coisa,
quis me confrontar com um certo mundo, e agora apetece-me fazer outras coisas.
Acontece também que, às vezes, as pessoas querem me dizer algo imaginando que
eu sou alguém que elas construíram na sua cabeça. A relação com a escrita faz
projetar essa imagem do autor. Não quero usurpar esse território de respeito
que tenho, e as pessoas têm de entender que fiz aquilo quando, digamos, era
outro.
O senhor disse recentemente que estão
nos contando narrativas do mundo que nos ensinam a ter medo do outro. As
manifestações racistas, como as que ocorrem nos estádios de futebol, são parte
dessa dificuldade de ir ao outro e entendê-lo?
Acho que sim. O
racismo é um fenômeno difícil de entender porque tem vários componentes. Há
vários racismos e várias maneiras de ser racista. Uma das coisas que complicam
a luta contra o racismo é que a própria proposta de saída está viciada, porque
se fala em raça como se fosse algo que legitimasse esse conceito e essa ideia
e, portanto, se tenta provar que uma raça não é inferior e merece tanto
respeito como qualquer outra. É necessário fazer esse discurso, mas ele
consolida certa ideia de raça. Não é a raça que criou o racismo. É o racismo
que inventa a raça. Quando jogamos todas as nossas cartas nessa lógica, fica
complicado. E depois há um medo: hoje as pessoas precisam ter uma tribo, uma
ideia de coletividade, de refúgio e de fortaleza. Então, é muito fácil a pessoa
aderir a um discurso em que se cria outro, que é um fantasma, uma ameaça
responsável pelo seu mal-estar. Se não for o racismo, é outra coisa qualquer.
Paradoxalmente, a invenção desse inimigo torna a pessoa mais segura, porque não
é tanto o inimigo que ela quer inventar, mas o seu grupo e aquilo que é o seu
parentesco com outros.
Quando fez sua conferência no
Fronteiras do Pensamento, Edgar Morin disse que a poesia da vida é mais
importante que a felicidade. O senhor concorda? Acha que falta poesia no mundo?
Provavelmente a
felicidade implica sempre uma poesia do mundo. Não sei o contexto dessa frase,
mas dita assim parece que há uma dicotomia entre felicidade e poesia. Não vejo
outra maneira de reconquistarmos um sentido de felicidade que seja pleno, que
não vá por esse caminho de nos restituir um olhar poético. O olhar poético não
é alguma coisa que tenha a ver com a poesia escrita ou como gênero literário,
mas tem a ver com aceitarmos que essa linguagem dos sonhos é uma linguagem
válida, que nos ajuda a ler o mundo.
O senhor também falou nesse encontro em
memória e, em muitos livros, ela é a base para levar o leitor a diferentes
caminhos. Em Quase Memória, por
exemplo, Carlos Heitor Cony diz que a memória é cúmplice, não testemunha.
Julian Barnes, em O Sentido de um Fim,
escreve sobre como “editamos espertamente” nossas memórias, embelezando-as e
ajustando-as ao longo do tempo. “Nossa vida não é a nossa vida, mas apenas a
história que nós contamos da nossa vida”, ele escreve. O senhor concorda com
essas visões?
É uma maneira muito
feliz de dizer aquilo que tentei dizer. De fato, temos essa visão ilusória de
que a memória é alguma coisa que faz parte da natureza e, portanto, tem a
capacidade de reconstituir uma relação objetiva com o passado. Na verdade,
sempre reescrevemos, selecionamos e reelaboramos esse tempo. Nesse sentido, o
passado é a coisa mais recente que existe, porque está sendo sempre
reatualizado. A veneração por uma memória que fosse capaz de trazer de volta um
passado fixo e definitivo tem a ver com a ideia linear do tempo e de que temos
de ter certezas do passado, como se, ao não ter essas certezas, não tivéssemos
chão para construir o presente nem o futuro – o que é um conforto muito
desconfortável.
E que não dá chão nenhum…
Não dá… Uma coisa de
que já fujo são esses reencontros de colegas da escola secundária, etc. Aquilo
é algo tristíssimo, quase uma espécie de velório antecipado de nós próprios.
Cada um esquece de maneira díspar e, quando se lembra, também se percebe que
cada um produziu a sua própria mentira. É melhor não ir nunca (risos).
O senhor também mencionou o perigo de
entregar a máquinas, como televisão, computadores e tablets, a tarefa de contar
histórias às crianças. Por que isso é perigoso e como reencontrar o tempo para
contar histórias?
Acho que é perigoso
porque esse contar de histórias não é simplesmente uma transmissão de alguma
coisa que já está feita. No momento em que se conta a história a alguém, não há
ali uma escuta mecânica, mas sim qualquer coisa que cria, sobretudo, a
construção de uma relação entre pessoas e, obviamente, a máquina não pode fazer
isso. A construção dessa relação interpessoal e do apetite por ela marca: é
como se a história existisse só para criar essa rede, essa capacidade de
estarmos juntos, de escutarmos, de sermos outros. Claro, há um momento em que a
máquina pode estar ligada e cumpre a função de “anestesiar” a criança, mas falo
é da ausência do resto. A máquina passa a ser a exclusiva ligação com a
fantasia, e a criança é colocada desde o princípio só como consumidora de uma
imagem que já está feita em definitivo e ela pode voltar e ver da mesma maneira
mil vezes. Mas quando ela pede ao pai, à mãe ou a alguém que lhe conte a
história, ela nunca é repetida completamente. Há ali uma recriação, e a criança
percebe que esse momento a torna também criadora.
Outra característica da sua obra é a presença dos mortos em meio aos
vivos – para citar apenas um caso, há a comunicação entre Marianinho e seu avô
em Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada
Terra, no qual o senhor fala, entre outras coisas, em “falecido com
dificuldade de transitação, encravado na fronteira entre os mundos” e em
“fantasmas mal morridos”. Como é essa relação entre vivos e mortos nesse mundo
que descreve?
É uma relação marcada
pela ideia de um tempo circular, em que os mortos não chegam nunca a morrer.
Mas acho que em nenhuma cultura e em nenhuma religião os mortos morrem
completamente, portanto isso não é uma coisa exclusiva da África.
Provavelmente, a diferença da cosmogonia africana é que esses mortos não só não
morrem como estão presentes no comando da vida e no comando do mundo. Essa
relação nem sequer é mediada por uma força divina ou outra, porque esses mortos
são os próprios deuses. Então, não temos de usar um discurso codificado ou uma
reza para enviar uma mensagem para um rosto ou uma entidade que não conhecemos.
Conversa-se com os mortos, ou seja, conversa-se com os deuses. Quando se fala
do lugar da escrita dos africanos e se compara automaticamente com os
latino-americanos nos termos do “realismo mágico” – não gosto muito dessa
classificação –, a diferença é referida sobretudo em relação ao lugar dos
mortos. Na América Latina, o discurso é muito católico – revisitado,
reconstruído, etc. –, mas na África não é tanto isso.
Em relação à dimensão do sagrado, do
divino e do religioso, também muito presente na sua obra, o senhor se define
como “ateu não praticante”. Como se aproxima dessa dimensão?
É um percurso que
estou a fazer interiormente. Meu pai era ateu e minha mãe, católica muito pouco
praticante. Eu militei na causa marxista, portanto com fundamento no materialismo
histórico e dialético – uma filosofia que não dava espaço a esse tipo de
crença. Mas percebi que teria de estar disponível e aberto a fazer essa viagem
e não ter uma relação de arrogância em que na partida já saberia o que estava
ou não do lado do não visível. Portanto, me defino um ateu não praticante do
ponto de vista de que não parto com o juízo feito para as coisas. Estou
disponível e gosto de fazer essa viagem, mas não é que tenha crença num ou
noutro lado. Apetece-me ter crenças que são imediatas e que me ajudam a cumprir
certo momento.
É uma espécie de ponte para o
entendimento daquele contexto?
É uma espécie de
nomadismo religioso em que monto uma tenda, seja no deserto, seja no meio do
oceano.
Religiosidade e outros traços culturais
e históricos aproximam nossos países, mas a relação entre Brasil e África
tradicionalmente não é de proximidade. Essa distância, especialmente em relação
aos países africanos de língua portuguesa, está diminuindo?
Do setor que mais
conheço, o das trocas literárias, o Brasil hoje está muito mais aberto a
receber e publicar autores africanos. Recordo-me que há uns 20 anos nem sequer
se pensava em publicar aqui um livro moçambicano. Portanto, isso mudou. Mas a
recíproca não é verdadeira. Os países africanos não conhecem quase nada do que
está a acontecer na escrita literária do Brasil, e Portugal desconhece também
quase completamente. Acho que a razão para isso tem a ver com a dinâmica das
editoras. Esse assunto foi entregue ao mercado, e os governos praticamente
desistiram de ter algum papel. Como a dinâmica do mercado no Brasil é muito
maior do que em qualquer país de língua portuguesa, obviamente os brasileiros
conhecem mais o que se faz do outro lado.
Entre as suas identidades está a de
biólogo, e o senhor já classificou a biologia como uma “indisciplina
científica”. Como essa identidade entra em sua literatura?
De uma forma que é
absolutamente vital. Está onipresente aquilo que a biologia me entrega como uma
linguagem e uma maneira de escutar. A biologia prolongou esse apetite que tenho
de escutar o mundo e de perceber que há ali vozes que tinham sido anuladas por
certa visão antropocêntrica de que somos nós os únicos que temos alguma coisa a
dizer. A maneira como abracei a biologia foi nessa procura de perceber
linguagens e aprender códigos. Hoje, sem ser de uma maneira metafórica, escuto
a árvore, a planta, o bicho, porque de fato todas essas entidades querem dizer
qualquer coisa além, não é? E por isso assumem cores e cheiros e diferenças de
forma que me agrada muito escutar.
Tudo isso tem uma presença fortíssima
no seu romance A Confissão da Leoa.
Sim, até o ponto
limite de se perceber que a diferença de identidade entre nós e essas outras
criaturas é mais tênue do que se pode pensar.
A literatura pode ser uma ponte para
nos ajudar a refazer esses encontros também do ponto de vista da natureza?
Sem dúvida. Assim como
a biologia, porque é também uma narrativa que tem feito descobertas que deviam
ser mais conhecidas nessa educação para nos ajudar a descentrar-nos de nós
próprios. Por exemplo, as recentes descobertas genéticas que mostram o quanto
temos de não humano, o quanto de nosso material genético não é exatamente
humano, o quanto da nossa composição celular e da constituição física devemos a
outros que estão dentro de nós, e que não são tão outros assim, porque, se os
tirássemos, morreríamos em segundos… Dizemos que essas bactérias e esse mundo
de micro-organismos são meros hospedeiros que estão dentro de nós. Mas
percebermos que eles não são simplesmente hospedeiros, são de tal maneira
simbióticos que nós somos eles, é uma espécie de cambalhota e de reviravolta do
ponto de vista quase filosófico na maneira que apreendemos o mundo. Isso é
alguma coisa que faz muito bem a qualquer racista (risos).
Nos ajudaria a ser mais humildes, pelo
menos…
Sim, é uma
aprendizagem de humildade. O discurso mais verde e mais ecologista aponta para
a responsabilidade do homem como grande espécie condutora de tudo isso. Porém,
há qualquer coisa que é mais radical que isso: perceber que só reencontraremos
esse papel se vermos que somos apenas uma parte.
Por que a escolha por esse caminho
chamado literatura?
Não escolhi a literatura, escolhi a escrita, que é provavelmente outra coisa. A construção que fizeram da escrita me parece que a complicou muito, a intelectualizou e construiu um edifício com vários andares e hierarquias. Quando começamos a escrever e a querer usar a escrita do ponto de vista criativo, estamos muito longe da escolha dessa grande construção e dessa grande estrutura que é a literatura. Eu sou salvo por ser várias coisas, e sempre que tenho de enfrentar “a” literatura, que depois se manifesta nessas coisas muito solenes dos congressos e das conferências, puxo logo o chapéu de biólogo… Esse universo me apraz, mas na maior parte das vezes é uma grande chatice. Estão ali os grandes estudiosos, os filósofos, os próprios escritores que, algumas vezes, dão demasiada importância a si mesmos e àquilo que fazem, e estou sempre a pensar qual o momento que tenho para escapar (risos). Esse discurso parece uma arrogância disfarçada de humildade, mas na verdade não sinto que pertenço a essa construção. Sou mais de uma pequena tribo que é a dos contadores de histórias, e podem fazer isso mesmo sem usarem da escrita.
Não escolhi a literatura, escolhi a escrita, que é provavelmente outra coisa. A construção que fizeram da escrita me parece que a complicou muito, a intelectualizou e construiu um edifício com vários andares e hierarquias. Quando começamos a escrever e a querer usar a escrita do ponto de vista criativo, estamos muito longe da escolha dessa grande construção e dessa grande estrutura que é a literatura. Eu sou salvo por ser várias coisas, e sempre que tenho de enfrentar “a” literatura, que depois se manifesta nessas coisas muito solenes dos congressos e das conferências, puxo logo o chapéu de biólogo… Esse universo me apraz, mas na maior parte das vezes é uma grande chatice. Estão ali os grandes estudiosos, os filósofos, os próprios escritores que, algumas vezes, dão demasiada importância a si mesmos e àquilo que fazem, e estou sempre a pensar qual o momento que tenho para escapar (risos). Esse discurso parece uma arrogância disfarçada de humildade, mas na verdade não sinto que pertenço a essa construção. Sou mais de uma pequena tribo que é a dos contadores de histórias, e podem fazer isso mesmo sem usarem da escrita.
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