Paulo Hebmüller, viajantedoinverso.blogspot.com
Duas Marias, duas
escritoras brasileiras, duas mulheres na casa dos 70 anos de idade. Por
coincidência, são delas os primeiros livros que terminei de ler nos dias
iniciais de 2020 e deste segundo ano da peste.
Em O voo da guará vermelha (2005) – que me acompanhou na viagem à comunidade ribeirinha do Amazonas em que passei a virada de ano e ingressei naquele 2020 que jamais pensaríamos viver 2021 adentro –, Maria Valéria Rezende narra a história de Rosálio da Conceição, homem com fome da alma, “fome de palavras, de sentimentos e de gentes, fome que é assim uma sozinhez inteira, um escuro no oco do peito, uma cegueira de olhos abertos”.
Filho de um chão que só
lhe deu miséria e abandono, depois de sobreviver a uma infância sem criancice e
de passar por todo tipo de exploração, do garimpo ao trabalho análogo à
escravidão, Rosálio conhece numa periferia de cidade a prostituta Irene, que
vai tocando seus dias enquanto um vírus, então o da Aids, trata de abreviá-los.
O agora pedreiro carrega
em suas andanças uma caixa de livros que ganhou de um antigo companheiro, mas
não sabe decifrá-los, e é Irene que lhe dará a chave e o iniciará no
desvendamento das letras e na apropriação dos novos mundos que elas
proporcionam – é como se então embarcasse na “grande e gloriosa descoberta da
literatura, uma aventura que me acompanhou a vida toda”, na definição da Prêmio
Nobel Doris Lessing.
O homem, por sua vez, a
acolhe num colo de histórias, numa bela celebração que Maria Valéria – a quem
só descobri tardiamente, em 2015, com o premiado Quarenta dias, que se passa
em Porto Alegre, virando leitor cativo desde então – faz do poder curativo da palavra: “Rosálio atende, contente,
o pedido da mulher, porque relembrar sua vida lhe permite reviver, agora sem
dor, de longe, as coisas que aconteceram e descobrir seus sentidos, cada vez
vendo mais fundo o mundo como é que é”.
Maria Altamira (2020),
de Maria José Silveira, começa com o soterramento da cidade peruana de Yungay
pela avalanche do monte Huascarán, em 1970, e narra a saga de uma das
sobreviventes, Alelí, que tenta exorcizar seu luto e a maldição que acredita
carregar vagando pela América do Sul. Seu caminho cruza fronteiras, sotaques e
falares e se entrelaça ao das populações indígenas e ribeirinhas do Norte do
Brasil que viram sua história também ser soterrada – paradoxalmente, pela água –
por outra espécie de avalanche, com a chegada da usina de Belo Monte e o
desaparecimento de suas vilas, aldeias e modos de vida, engolidas pelo lago
gigante da usina:
“A água é imensa. A água tem poder.
Engoliu as prainhas
douradas, engoliu as matas, engoliu quinhentos quilômetros quadrados com as
terras do seu Zé, do Onofre, dos pais da Nice, do Gilmar, de dona Imaculada, do
Tião, da Gildete e de tantos e tantos e tantos. Milhares. Os olhos de
desconsolo, de indignação, de profundo desespero das famílias despejadas – uns
dizem mais de cinco mil, outros dizem sete mil, outros quase dez mil, se contar
direito – observaram aquela água e não a reconheceram. Não era a mesma.
Tampouco reconheceram a si mesmos. Não eram os mesmos. A água engolira também a
identidade, o mundo, a história de vida de todos eles.”
O voo da guará vermelha e Maria Altamira são dois exemplos do que nos proporciona a literatura, particularmente a brasileira: são livros que falam de nós para nós mesmos e nos narram para nos dizer quem somos. Ao fazer isso, nos ajudam “a questionar o mundo e as escolhas feitas pela nossa sociedade, porque nos fazem ver realidades que são invisibilizadas por essas escolhas, pessoas que são excluídas a partir delas”, como diz a professora Regina Dalcastagnè, da UnB, numa entrevista recente. “As artes e a literatura são importantes e precisam ser incentivadas porque oferecem beleza e, também, espaço de reflexão sobre as desigualdades sociais e as injustiças que nos cerceiam. São ferramentas para sonhar um mundo melhor.”
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