(Entrevista a Paulo
Hebmüller, jornal RS, Porto Alegre, edição 322, 14/15 de novembro de 1992)
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Nascido na cearense
Sobral em 1946, Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes apresentava-se
regularmente em Porto Alegre desde os trinta anos de idade, como conta nesta entrevista.
Assisti a alguns de
seus shows na cidade – especialmente no saudoso Teatro da OSPA, na
Independência. Numa dessas passagens, em 1992, entrevistei-o para o RS,
semanário criado por Sergio Jockymann, à época já desligado do jornal.
Ao saber da morte
de Belchior, no domingo 30 de abril, lembrei de procurar esse registro. Para trazê-lo à luz no mundo
virtual, foi preciso redigitar o texto, porque o original pertencia àquela era
remota das laudas e da máquina de escrever (era uma tecnologia em que se
“imprimia” ao mesmo tempo em que se digitava, crianças – procurem na internet).
A entrevista é
aberta com questões sobre o cenário político brasileiro (que Belchior define
como “situação política e socialmente caótica”), naquele ano das manifestações
que pediam a cabeça do presidente Fernando Collor – então já derrubado e
substituído pelo seu vice, Itamar Franco. Todo esse processo, acreditava, fazia com que nos defrontássemos com “o Brasil real, um país pobre,
violento, de Terceiro Mundo, faminto, analfabeto e que precisa definitivamente
optar pela cultura e pela civilização”.
Para situar questões específicas da época, adicionei alguns comentários no final (as referências estão indicadas por números). Excluí o texto de
abertura, bastante datado, limpei uma ou outra gralha de revisão e fiz umas
poucas atualizações de acordo com a última reforma ortográfica.
A conversa não
trata apenas de política, claro. Belchior fala também de música, de poesia, de
sua formação, de suas utopias. Estava com 46 anos, e ainda distante da ruptura
da última década de vida, quando abandonou carreira, projetos, família, a
pintura, os palcos, a cena pública. “Tenho fé no presente e esperança no
futuro”, me disse.
A seguir, a entrevista:
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Parte da primeira página da entrevista no RS |
A juventude e as questões ligadas a ela sempre foram temas
constantes na tua música. Como tu vês a juventude brasileira que voltou a sair
à rua e ter experiências políticas?
Belchior – A mocidade, a rapaziada brasileira estar na rua de novo é um
fenômeno importantíssimo, de alcance político da maior importância. E isso não
só porque é a primeira manifestação de massa depois de tanto tempo, como também
porque ela foi feita em boa hora e por uma causa justa. Mais uma vez ficou
provado que a juventude brasileira não é alienada – talvez estivesse só à
espera de uma boa oportunidade para se manifestar. Agora, é bom dizer também
que o Brasil dos caras pintadas ao mesmo tempo é o Brasil dos meninos de rua
assassinados, da revolta da Febem em São Paulo, da infância abandonada, que
também são manifestações da juventude brasileira. Isso tudo prova a situação
política e socialmente caótica que o Brasil está vivendo. (1)
Uma das músicas mais cantadas nas ruas foi “Como nossos
pais”.
Belchior – Pois é. Claro que o meu trabalho, por ser um trabalho geracional,
sempre esteve ocupado desses fenômenos, tentando transformá-lo em linguagem, em
poesia, Neste momento acho importantíssimo dizer que o Brasil precisa perder
qualquer ufanismo. Precisamos perder qualquer resto de ufanismo: esta ideia
barata de que o Brasil é o maior país do mundo, o melhor futebol do mundo, que
não temos vulcões, não temos terremotos. Estamos passando por um processo de
degradação das instituições e da sociedade como nunca visto. Este momento está
sendo bastante medicinal, porque estamos nos defrontando com o Brasil real, um
país pobre, violento, de Terceiro Mundo, faminto, analfabeto e que precisa
definitivamente optar pela cultura e pela civilização. Não podemos mais
continuar vivendo dentro de estereótipos sem sentido histórico e sem enfrentar
os problemas com realismo. A solução, depois de tudo isso, passa
definitivamente pela democracia – é preciso abandonar qualquer ideia
autoritária.
Falando de música: onde estão os novos intérpretes da MPB?
Não existe um vácuo entre a tua geração e a de hoje, depois que a explosão do
rock parece já ter dado o que tinha pra dar? (2)
Belchior – A música popular brasileira não está em crise de
criatividade; o que existe é uma crise na comunicação. A MPB continua sendo
extremamente representativa da nossa brasilidade, da nossa criatividade. Há
todo um esforço para que a poesia popular cantada continue alcançando níveis
elevados, mantendo a qualidade competitiva com qualquer música do mundo. Mas o
que existe é uma falta de comunicação, ou uma falta de valorização pela
comunicação daquilo que está se fazendo em música popular. É grave dizer isso
porque o Brasil é um país que não tem orgulho da sua cultura, e não o tendo
permite que uma lei que reserve 50% do espaço para música estrangeira possa
vigorar. Não há país no mundo que ofereça 50% de sua reserva de mercado em música,
de graça, para outros países. Será que os Estados Unidos ofereceriam esse
espaço para a música popular brasileira? Será que a Inglaterra ou a França
ofereceriam isso?
A qualidade do teu trabalho é indiscutível, mas o que explica
o fato de Belchior e tantos outros aparecerem tão pouco na TV, tocarem tão
pouco em rádio, terem tão pouco espaço?
Belchior – Existem os interesses dos meios de comunicação e das grandes
companhias de discos. Isso, até antes de ser uma crítica, é uma singela
observação. Acontece comigo o que acontece com a maioria do pessoal da minha
geração. A MPB tem pouquíssimo espaço na comunicação. Música como a de Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Jorge Benjor, Paulinho da Viola, João
Bosco, Alceu Valença, a minha mesmo, e de tantos outros que continuam o
trabalho criativo dessa geração, é ou relegada pelos meios de comunicação ou
não tem o seu real valor pesado, medido e contatado como deve ser.
E o que determina isso?
Belchior – É claro que há uma influência dos modismos que surgem a cada
momento e dos quais a comunicação se aproxima de forma tão avassaladora a ponto
de exaurir e esgotar não só a criação dos gêneros como as linguagens e o gosto
do público.
O que tu tens ouvido ultimamente?
Belchior – Eu tenho dois tipos de audição. Uma eu chamo de
profissional, ou seja, procuro ouvir o máximo que possa para saber do que se
trata e orientar minha produção. Aí entra tudo, desde música brega, “neossertaneja”,
música nordestina, jazz, blues, metal, enfim. Agora, a minha preferência
pessoal fica para aqueles cantores, compositores, intérpretes e instrumentistas
que exercem seu ofício com preocupação nitidamente artística. Continuo gostando
de Bob Dylan, John Lennon, Ray Charles, Otis Redding, Joe Cocker, Rod Stewart,
Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Benjor, Cartola, Nelson
Cavaquinho... E gosto muitíssimo do pessoal do rock brasileiro, que dá
continuidade à tradição de rebeldia do rock e à tradição de linguagem urbana e
metropolitana, de revolta juvenil, como Titãs e Lobão. Mas há dois que
continuam no meu coração: Rita Lee e Raul Seixas.
Chegaste a trabalhar com o Arnaldo Antunes, dos Titãs, não é?
Belchior – Produzi o primeiro disco da banda Performática, de onde
saíram os Titãs. Sou o primeiro intérprete brasileiro que gravou músicas do
Arnaldo.
O diferencial da tua música é realmente a qualidade e a
preocupação com as letras, o aspecto poético. Fala dessa tua relação com a
palavra.
Belchior – Eu fui para a música popular por causa da poesia. A música
popular restaura toda a importância da poesia, inclusive o seu espaço
primitivo, quando ela era dramática e cantada. O rádio e a televisão permitem
que esse espaço tão importante da poesia possa ser recuperado pela poesia
cantada. A minha preocupação no meu ofício continua sendo criativa, ligada com
o que você pode viver através da palavra cantada. Vem daí o meu gosto pelos
autores, aqueles que fazem música e letra.
Na música de hoje, a palavra não fica ofuscada ou diluída
pelas imagens, como no clássico exemplo dos videoclipes?
Belchior – O videoclipe é uma linguagem televisiva marcante e
interessante. O grande problema é a exaustão dos meios. Quando aparece uma
opção como a dos clipes, surgem logo trezentos milhões de vídeos e a linguagem
acaba esgotada antes de manifestar o efeito criativo que poderia ter. A
voracidade com que a comunicação se aproxima dos fenômenos artísticos,
transformando mesmo os objetos artísticos em meras mercadorias de consumo,
impede que as linguagens se tornem eficazes e demonstrem seu potencial
criativo. O videoclipe é uma linguagem contemporânea, moderna, que eu acho
importantíssima. Depende do uso que é feito dela. (3)
Lançaste agora um CD com músicas tuas para o mercado
uruguaio. Belchior está “invadindo” o Mercosul?
Belchior – Na verdade, muito antes do Mercosul eu já havia não só me
identificado como uma figura latino-americana como havia lançado em diversos
trabalhos a possibilidade de se pensar a América Latina contemporânea. Sempre
fui partidário da ideia de que se deve expandir a noção e o conhecimento do que
é a América Latina. Devemos transitar daquilo que é mais folclórico,
estereotipado, para uma visão atualizada do significado humano, cultural,
político e social do continente. Esse trabalho de integração das culturas já vem
sendo feito pelos artistas, que sonharam com isso muito antes que os políticos,
Eu espero que os políticos possam, de alguma forma, concretizar o sonho dos
artistas – e eu me coloco entre eles – que cantaram e pensaram a América Latina
contemporânea. (4)
E o CD?
Belchior – Nesta semana está saindo esse CD latino-americano, chamado
“Eldorado”. São sete músicas cantadas em espanhol por Larbanois & Carrero e
Laura Canoura, de Montevidéu, e sete músicas que eu canto em português. O nome
do disco já se refere ao sonho e à utopia a que a palavra remete, e o ato de
ser cantado nas duas línguas também quer ser simbólico de duas coisas.
Primeiro, de que o Brasil deve atender ao apelo das outras nações do continente
para que se integre nesta comunidade de pensamento, cultura e humanismo. A
segunda coisa é que a língua portuguesa faz parte do universo latino-americano
e deve ser, pelo menos através da palavra cantada, “recuperada” para esse
universo ao qual ela natural e espontaneamente pertence.
Continuas pintando?
Belchior – Bom, eu sou desenhista, e a pintura para mim não é um hobby.
Continuo fazendo as capas dos meus discos e o trabalho de caligrafia e
ilustração da “Divina Comédia” (de Dante), que já está bastante avançado. Tenho um amor
especial pela pintura, sobretudo.
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Autorretrato de Belchior para a capa do disco "Divina comédia humana" |
O que é mais uma parte da tua formação bastante heterogênea,
que inclui desde os cantadores do Nordeste, corais de igreja, aulas de línguas,
canto gregoriano, filosofia, rock, medicina etc. Com funcionou tanta
diversidade junta?
Belchior – Eu tenho uma formação típica de menino do Nordeste, que
estudou em colégio de padre e ouviu serviço de alto-falante. Comecei a fazer
música no período universitário, em função do meu interesse pela poesia,
sobretudo os poetas românticos e simbolistas. Depois, os nomes da linhagem de
Walt Whitman, que posteriormente vim a saber que era fonte também do Bob Dylan.
Tento fazer um tipo de música popular contemporânea que utilize todos esses
recursos. Faço parte de uma geração para quem fazer música é produzir um objeto
artístico explosivo. Os meus modelos para fazer essa música que seja uma versão
contemporânea da poesia popular cantada continuam sendo Bob Dylan – um
menestrel dos nossos tempos –, John Lennon e a música nova do Brasil.
Porto Alegre sempre te recebeu bem. Quais as tuas ligações
com a cidade?
Belchior – As minhas relações com o povo gaúcho são as melhores
possíveis já de longo tempo. A partir do Araújo Viana, fiz meu primeiro grande
contrato e tive meu trabalho lançado pela Elis Regina. Venho ininterruptamente
ao Rio Grande do Sul desde 1976, e isso criou uma emoção especial no exercício
do meu ofício, porque tenho aproveitado para trocar muita coisa com o público.
Além daqui, Santa Catarina, Paraná e Minas Gerais são seguramente os estados
onde mais cantei. (5)
Quais os livros novos que vão na bagagem depois da Feira do
Livro?
Belchior – Olha, estou indo na Feira justamente depois desta
entrevista. Vou comprar o livro do Bob Dylan, o livro do Noel Rosa, “O anjo
pornográfico”, do Ruy Castro... Livros que falam da vida do Paul Klee, do Miró,
do Picasso, do Matisse... (6)
Nada dos autores que anunciam o fim da História, o fim das
utopias? (7)
Belchior – Eu vejo esse autores como aqueles profetas que estão há
muito tempo anunciando o fim do mundo. É difícil analisar o que quer dizer o
fim da História. Não sei se se pode chegar a essa conclusão filosófica ou
sociologicamente. Longe de qualquer pensamento mais profundo ou elaborado sobre
o tema, acho que o fim da História só viria com o fim da humanidade, como
aconteceu com os dinossauros. Naturalmente, mesmo dizendo isso, esses
historiadores não esquecem de colocar seu dinheiro nas contas que têm.
A referência seria o fim das utopias. É possível acreditar
nisso?
Belchior – Eu não acredito que haja o fim das utopias, o fim do
pensamento, o fim do sonho. A imaginação faz parte do ser histórico do homem, e
desse ponto de vista é ela que move o mundo e o pensamento. Não é sem razão que
eu fiz recentemente um disco chamado “Elogio da loucura”, que é um disco
utópico, sobre a aventura e o sonho jovem do nosso tempo.
Para encerrar: nós ainda somos os mesmos e vivemos como
nossos pais?
Belchior – Essa frase retrata um certo conformismo que, no meu ponto de
vista, é característico da nossa cultura – infelizmente. Esse conformismo, a
crença demasiada na força e na obrigação do passado, a confiança inesgotável na
tradição e o fato de o Brasil ser um país atrasado sempre me ocuparam e sempre
me preocuparam. Vem daí a razão dessas ideias tantas vezes aparecerem nas
minhas músicas. O Brasil é um país atrasado nos dois sentidos, ou seja, está
atrás de muitos comparsas da História e sempre chega depois da hora marcada.
Nós já estamos na era do automóvel, mas não sabemos lidar com o automóvel.
Matamos no trânsito mais gente do que em muitas guerras encarniçadas. Matamos
num ano quase o mesmo número de soldados americanos mortos em dez anos no
Vietnam. Quer dizer, dispomos de algumas tecnologias, mas não sabemos lidar com
aqueles objetos para os quais já chegamos atrasados.
Mas mesmo assim dá para acreditar no futuro?
Belchior – É claro! Na verdade eu acredito no presente. Tenho fé no
presente e esperança no futuro.
***
Comentários a respeito de John – ou melhor, de Belchior:
1) Pergunta e resposta se referem às manifestações pelo
impeachment de Fernando Collor. Era comum que os jovens saíssem às ruas com as
cores da bandeira do Brasil no rosto, daí a expressão “caras pintadas”.
2) Àquela altura, tomando como marco o lançamento do disco
“As aventuras da Blitz” – da banda Blitz, obviamente –, a explosão da nova
geração do rock brasileiro completava dez anos. É a turma de Legião Urbana,
Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Titãs, Kid Abelha, Ira!, Engenheiros do
Hawaii, Capital Inicial, Lulu Santos, Marina Lima, do pessoal mais ligado ao
punk, como Plebe Rude e Inocentes, e muitos outros – inclusive Lobão, citado por Belchior na entrevista.
3) A relação música-imagem-mercado mudou definitivamente com
a criação da MTV nos Estados Unidos, em 1981. A primeira versão brasileira, da
Abril, é de 1990; tinha só dois aninhos de vida na época da entrevista. Parece
surpreendente que Belchior fale em “voracidade” e “exaustão” antes da era da
internet e dos milhares de canais de TV por assinatura à disposição? Lembremos
Guy Debord: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições
de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação. (...)
Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade
ou consumo direto de divertimentos –, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. É a
afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha”. Está nas primeiras
páginas de “A sociedade do espetáculo”. De 1967.
4) O Mercado Comum do Sul (Mercosul), envolvendo Brasil,
Argentina, Uruguai e Paraguai, teve seu início oficial com a assinatura do
Tratado de Assunção, em 1991.
5) O Auditório Araújo Viana é uma tradicional casa de
espetáculos de Porto Alegre. Foi inaugurado em 1964 e hoje tem capacidade para
cerca de 3.500 pessoas. Entre outras músicas de Belchior, Elis Regina gravou
“Mucuripe” e, claro, “Como nossos pais”.
6) A Feira do Livro de Porto Alegre ocorre anualmente
durante quinze dias, começando na última sexta-feira de outubro. Ao contrário de
outras feiras do gênero, é realizada numa praça na região central da cidade, e
não em espaços fechados. Sobre Bob Dylan, é difícil saber se se trata de um livro do próprio músico ou de uma biografia.
7) A referência aqui é especialmente a Francis Fukuyama,
economista nipo-americano que ficou famoso com o artigo “O fim da história”, de
1989, origem de seu livro “O fim da história e o último homem”, de 1992.
Fukuyama é hoje professor da Universidade de Stanford. E, sim, aparentemente
fez fortuna a partir do livro.