terça-feira, 9 de maio de 2017

Moacyr Scliar, 80

Conversei algumas vezes por telefone com Moacyr Scliar quando trabalhava em Porto Alegre, mas só o encontrei pessoalmente para uma entrevista no final de 2003, em São Paulo. Ele daria uma palestra no Centro da Cultura Judaica (hoje Unibes Cultural), na rua Oscar Freire, onde marcamos a conversa. Por coincidência, chegamos juntos e me apresentei enquanto passávamos pelos complicados procedimentos de segurança na entrada.
Scliar completaria 80 anos neste 2017. O escritor morreu em fevereiro de 2011, às vésperas do 74º aniversário. Vários eventos têm celebrado as suas oito décadas de nascimento. Em São Paulo, será lançado o livro A nossa frágil condição humana, reunião de crônicas do autor, com debate e leitura de textos pela atriz Ilana Kaplan: nesta quinta, 11 de maio, às 19h30 na Livraria da Vila dos Jardins (Alameda Lorena, 1731).



Para marcar a data e lembrar esse encontro, republico a entrevista que saiu no Jornal da USP no começo de 2004:


As vivências de Moacyr Scliar



Entrevista a Paulo Hebmüller 
Jornal da USP, edição 671, 12 a 18 de janeiro de 2004


Moacyr Scliar está entre os escritores mais prolíficos e conhecidos da literatura nacional. Sua trajetória começou ainda nos tempos de estudante de medicina, no início dos anos 60, quando publicou Histórias de médico em formação, que depois consideraria apenas um arroubo de principiante. Com O carnaval dos animais, de 1968, ganhou um prêmio e o reconhecimento da crítica. De lá para cá, tem publicado dezenas de títulos de ficção, ensaios, história (principalmente da medicina) e literatura infanto-juvenil. Nascido em Porto Alegre, filho de imigrantes judeus que vieram da Rússia praticamente sem nada, Scliar criou-se ouvindo muitas histórias e convivendo intensamente com outras famílias da mesma origem. Como médico, trabalhou na Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul e ainda hoje dá aulas de Saúde Pública na Faculdade Federal de Ciências Médicas, em Porto Alegre. Seu romance O centauro no jardim (de 1980) foi incluído na lista dos cem melhores livros de temática judaica dos últimos duzentos anos, preparada por um júri constituído pelo National Yidish Book Center, dos Estados Unidos. O escritor, de 66 anos, que em outubro assumiu a cadeira número 31 da Academia Brasileira de Letras, concedeu com exclusividade a seguinte entrevista ao Jornal da USP, em recente passagem por São Paulo.


Moacyr Scliar em foto de Adriana Franciosi
O senhor afirmou certa vez: “Até hoje suspeito que escrevo apenas para merecer o sorriso de aprovação da minha gente, da gente do bairro, da minha cidade, do meu país”. A eleição para a Academia Brasileira de Letras é uma espécie de coroamento disso?
Moacyr Scliar – É, aí é o sorriso de aprovação do Rio Grande do Sul também. A minha candidatura não nasceu de uma aspiração pessoal, nem era uma coisa que eu viesse cultivando. Ela nasceu de instituições do Rio Grande do Sul, começando pela Associação Rio-grandense de Imprensa e continuando com a Assembleia Legislativa, universidades, colégios e principalmente gente que se engajou naquilo que acabou se configurando como uma campanha, o que, pelo que sei, é uma raridade na história da Academia. Isso se deve em primeiro lugar a essa conjuntura emocional tão própria do Rio Grande do Sul, que é um estado de paixões, um estado que tem causas. Anos atrás, os gaúchos receberam com desgosto a não eleição de Mario Quintana em duas ocasiões. Na minha eleição houve um júbilo e uma celebração muito grandes e eu fiquei muito contente com isso. As pessoas têm direito a festa, e essa eleição foi basicamente uma festa gaúcha.

Qual é a influência do humor judaico na sua literatura?
Scliar – Sou fascinado pelo humor judaico, e não como uma aproximação intelectual. Isso faz parte da minha biografia, porque era um componente da nossa vida no Bom Fim (bairro que concentra os imigrantes judeus em Porto Alegre), e meus pais eram grandes contadores de histórias. Esse humor nunca é escrachado, não é para provocar gargalhadas, mas é basicamente melancólico. É muito claro o mecanismo psicológico que está por trás dele: funciona como uma forma de defesa, uma maneira de evitar o desespero que foi uma característica de um grupo humano muito perseguido. O humor judaico é um fenômeno de uma determinada época e está associado basicamente a uma fase da história do judaísmo na Europa Oriental, em países como Rússia, Polônia e Lituânia. Quando comecei a ler os autores judaicos, que escreviam em iídiche – um idioma que se presta muito a isso –, me surpreendia exatamente esse humor fascinante. Inevitavelmente sofri essa influência e não consigo pensar num texto literário que não tenha humor. Isso é uma coisa pela qual até se pode pagar um certo preço porque, quando se diz que um escritor tem humor, as pessoas frequentemente o interpretam como um escritor não sério. O rótulo de humorista não combina com o de escritor, e o exemplo mais flagrante é Luis Fernando Verissimo, que durante anos foi rotulado como humorista, quando na verdade é um dos mais notáveis escritores da nossa literatura.

A religião sempre desempenhou um papel central para o povo judeu. Como o senhor, que não é religioso, se relaciona com a dimensão do sagrado?
Scliar – A esta altura da minha vida – que é o período da maturidade, para usar um termo benigno –, a minha relação para com as pessoas religiosas é uma atitude de compreensão e de tolerância. Não sou crente, não pratico os rituais da religião, é uma experiência humana da qual não participo, mas entendo que para muitas pessoas ela seja um amparo emocional importante. Como médico, sei que as pessoas que têm crença religiosa se saem melhor de uma doença ou de uma situação traumática do que as pessoas não religiosas. A religião também ajuda muito quando da morte de uma pessoa querida, por exemplo. Trabalhei na Santa Casa de Porto Alegre e sei que chega um momento em que o médico não tem mais o que fazer. É o momento de o padre ajudar a pessoa nos seus instantes finais, e isso é uma coisa que qualquer médico reconhece. Agora, faço uma restrição ao seguinte: há um grande problema quando alguém quer fazer os outros praticarem a mesma coisa, obrigando-os a acreditar naquilo em que não acreditam. Essa é a raiz do fundamentalismo, do qual o judaísmo não está isento.

O senhor chegou a ter alguma experiência religiosa marcante?

Scliar – Tive uma experiência interessante, do ponto de vista emocional, quando estive pela primeira vez em Israel. Fui fazer um curso de medicina comunitária numa pequena cidade e num final de semana aproveitamos para visitar Jerusalém. Foi em 1970, logo depois da Guerra dos Seis Dias. Nós chegamos no final da tarde, com aquela luz do crepúsculo, e o clima ali, junto ao Muro das Lamentações, era uma coisa mágica, mística. De repente eu me senti parte de uma história. Essa foi uma experiência que me emocionou, mas não consigo ser tocado por aquilo que os crentes chamam de graça divina. 

O escritor retratado pelo filho, Beto Scliar


O senhor escreve sobre temas que vão da história das “prostitutas polacas” à vida de Oswaldo Cruz ou à história da melancolia. Como eles surgem?
Scliar – Os meus temas vão surgindo dependendo das vivências. O das polacas (tema do romance O ciclo das águas, de 1975) surgiu porque eu era médico no Lar dos Velhos da Comunidade Israelita e lá atendi uma dessas mulheres. Fiquei fascinado com essa história de jovens que eram trazidas da Europa Oriental para serem prostitutas na América, e fui pesquisá-la. A origem de Saturno nos trópicos (de 2003) é outra. Sou um apaixonado pela história da medicina e lá pelas tantas comecei a ler sobre a melancolia, que é um conceito que surge na antiguidade grega. Sempre me intrigou o fato de que o conceito então desaparece e vai reaparecer no começo da modernidade. A pergunta que me fiz é: por que se fala tanto em melancolia quando começa esta fase que estamos vivendo? A minha tese é que a modernidade nasce bipolar: ela nasce maníaca – uma mania de riqueza, de luxo, de grandeza – e alternadamente cai em surtos melancólicos. Uma coisa tende a neutralizar a outra.

E os temas da ficção?
Scliar – Brotam da inspiração: é quando uma ideia te galvaniza e provoca uma reação até visceral. Hemingway costumava dizer que sabia que a ideia era boa quando ele ficava arrepiado. Quando o teu corpo diz que a ideia é boa, é porque ela é boa.

Como o senhor analisa a questão do Oriente Médio hoje?
Scliar – Vejo com extrema preocupação. Acho que só a paz vai ser a solução, mas há dois obstáculos violentos para ela. O primeiro é o terrorismo, que resulta na matança de pessoas inocentes. O segundo é a ocupação de territórios. Parece que chegamos hoje a um impasse e não se sabe para onde isso vai evoluir. O que reforça a confiança é que sempre há pessoas de ambos os lados se associando pela causa da paz. 
  

Nenhum comentário:

Postar um comentário