Conversei
algumas vezes por telefone com Moacyr Scliar quando trabalhava em Porto Alegre,
mas só o encontrei pessoalmente para uma entrevista no final de 2003, em São
Paulo. Ele daria uma palestra no Centro da Cultura Judaica (hoje Unibes Cultural),
na rua Oscar Freire, onde marcamos a conversa. Por coincidência, chegamos
juntos e me apresentei enquanto passávamos pelos complicados procedimentos de
segurança na entrada.
Scliar completaria
80 anos neste 2017. O escritor morreu em fevereiro de 2011, às vésperas do 74º
aniversário. Vários eventos têm celebrado as suas oito décadas de nascimento.
Em São Paulo, será lançado o livro A
nossa frágil condição humana, reunião de crônicas do autor, com debate e
leitura de textos pela atriz Ilana Kaplan: nesta quinta, 11 de maio, às 19h30
na Livraria da Vila dos Jardins (Alameda Lorena, 1731).
Para marcar
a data e lembrar esse encontro, republico a entrevista que saiu no Jornal da USP no começo de 2004:
As vivências de Moacyr Scliar
Entrevista
a Paulo Hebmüller
Jornal da USP,
edição 671, 12
a 18 de janeiro de 2004
Moacyr Scliar está entre os escritores
mais prolíficos e conhecidos da literatura nacional. Sua trajetória começou
ainda nos tempos de estudante de medicina, no início dos anos 60, quando
publicou Histórias de médico em formação,
que depois consideraria apenas um arroubo de principiante. Com O carnaval dos animais, de 1968, ganhou
um prêmio e o reconhecimento da crítica. De lá para cá, tem publicado dezenas
de títulos de ficção, ensaios, história (principalmente da medicina) e
literatura infanto-juvenil. Nascido em Porto Alegre , filho de imigrantes judeus que
vieram da Rússia praticamente sem nada, Scliar criou-se ouvindo muitas
histórias e convivendo intensamente com outras famílias da mesma origem. Como
médico, trabalhou na Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul e ainda hoje dá
aulas de Saúde Pública na Faculdade Federal de Ciências Médicas, em Porto Alegre. Seu
romance O centauro no jardim (de
1980) foi incluído na lista dos cem melhores livros de temática judaica dos
últimos duzentos anos, preparada por um júri constituído pelo National Yidish
Book Center, dos Estados Unidos. O escritor, de 66 anos, que em outubro assumiu a cadeira número 31 da Academia
Brasileira de Letras, concedeu com exclusividade a seguinte entrevista ao Jornal
da USP, em recente passagem por São Paulo.
Moacyr Scliar em foto de Adriana Franciosi |
O senhor afirmou certa vez: “Até hoje
suspeito que escrevo apenas para merecer o sorriso de aprovação da minha gente,
da gente do bairro, da minha cidade, do meu país”. A eleição para a Academia
Brasileira de Letras é uma espécie de coroamento disso?
Moacyr
Scliar – É, aí é o sorriso de aprovação do Rio
Grande do Sul também. A minha candidatura não nasceu de uma aspiração pessoal,
nem era uma coisa que eu viesse cultivando. Ela nasceu de instituições do Rio
Grande do Sul, começando pela Associação Rio-grandense de Imprensa e
continuando com a Assembleia Legislativa, universidades, colégios e
principalmente gente que se engajou naquilo que acabou se configurando como uma
campanha, o que, pelo que sei, é uma raridade na história da Academia. Isso se
deve em primeiro lugar a essa conjuntura emocional tão própria do Rio Grande do
Sul, que é um estado de paixões, um estado que tem causas. Anos atrás, os
gaúchos receberam com desgosto a não eleição de Mario Quintana em duas
ocasiões. Na minha eleição houve um júbilo e uma celebração muito grandes e eu
fiquei muito contente com isso. As pessoas têm direito a festa, e essa eleição
foi basicamente uma festa gaúcha.
Qual é a influência do humor judaico na
sua literatura?
Scliar –
Sou fascinado pelo humor judaico, e não como uma aproximação intelectual. Isso
faz parte da minha biografia, porque era um componente da nossa vida no Bom Fim
(bairro que concentra os imigrantes
judeus em Porto Alegre ),
e meus pais eram grandes contadores de histórias. Esse humor nunca é
escrachado, não é para provocar gargalhadas, mas é basicamente melancólico. É
muito claro o mecanismo psicológico que está por trás dele: funciona como uma
forma de defesa, uma maneira de evitar o desespero que foi uma característica
de um grupo humano muito perseguido. O humor judaico é um fenômeno de uma
determinada época e está associado basicamente a uma fase da história do
judaísmo na Europa Oriental, em países como Rússia, Polônia e Lituânia. Quando
comecei a ler os autores judaicos, que escreviam em iídiche – um idioma que se
presta muito a isso –, me surpreendia exatamente esse humor fascinante.
Inevitavelmente sofri essa influência e não consigo pensar num texto literário
que não tenha humor. Isso é uma coisa pela qual até se pode pagar um certo
preço porque, quando se diz que um escritor tem humor, as pessoas frequentemente
o interpretam como um escritor não sério. O rótulo de humorista não combina com
o de escritor, e o exemplo mais flagrante é Luis Fernando Verissimo, que
durante anos foi rotulado como humorista, quando na verdade é um dos mais
notáveis escritores da nossa literatura.
A religião sempre desempenhou um papel
central para o povo judeu. Como o senhor, que não é religioso, se relaciona com
a dimensão do sagrado?
Scliar – A
esta altura da minha vida – que é o período da maturidade, para usar um termo
benigno –, a minha relação para com as pessoas religiosas é uma atitude de
compreensão e de tolerância. Não sou crente, não pratico os rituais da
religião, é uma experiência humana da qual não participo, mas entendo que para
muitas pessoas ela seja um amparo emocional importante. Como médico, sei que as
pessoas que têm crença religiosa se saem melhor de uma doença ou de uma
situação traumática do que as pessoas não religiosas. A religião também ajuda
muito quando da morte de uma pessoa querida, por exemplo. Trabalhei na Santa
Casa de Porto Alegre e sei que chega um momento em que o médico não tem mais o
que fazer. É o momento de o padre ajudar a pessoa nos seus instantes finais, e
isso é uma coisa que qualquer médico reconhece. Agora, faço uma restrição ao
seguinte: há um grande problema quando alguém quer fazer os outros praticarem a
mesma coisa, obrigando-os a acreditar naquilo em que não acreditam. Essa é a
raiz do fundamentalismo, do qual o judaísmo não está isento.
O senhor chegou a ter alguma experiência
religiosa marcante?
Scliar –
Tive uma experiência interessante, do ponto de vista emocional, quando estive
pela primeira vez em
Israel. Fui fazer um curso de medicina comunitária numa
pequena cidade e num final de semana aproveitamos para visitar Jerusalém. Foi
em 1970, logo depois da Guerra dos Seis Dias. Nós chegamos no final da tarde,
com aquela luz do crepúsculo, e o clima ali, junto ao Muro das Lamentações, era
uma coisa mágica, mística. De repente eu me senti parte de uma história. Essa
foi uma experiência que me emocionou, mas não consigo ser tocado por aquilo que
os crentes chamam de graça divina.
O escritor retratado pelo filho, Beto Scliar |
O senhor escreve sobre temas que vão da
história das “prostitutas polacas” à vida de Oswaldo Cruz ou à história da
melancolia. Como eles surgem?
Scliar –
Os meus temas vão surgindo dependendo das vivências. O das polacas (tema do romance O ciclo das águas, de 1975) surgiu porque eu era médico
no Lar dos Velhos da Comunidade Israelita e lá atendi uma dessas mulheres.
Fiquei fascinado com essa história de jovens que eram trazidas da Europa
Oriental para serem prostitutas na América, e fui pesquisá-la. A origem de Saturno nos trópicos (de 2003) é outra. Sou um apaixonado
pela história da medicina e lá pelas tantas comecei a ler sobre a melancolia,
que é um conceito que surge na antiguidade grega. Sempre me intrigou o fato de que
o conceito então desaparece e vai reaparecer no começo da modernidade. A
pergunta que me fiz é: por que se fala tanto em melancolia quando começa esta
fase que estamos vivendo? A minha tese é que a modernidade nasce bipolar: ela
nasce maníaca – uma mania de riqueza, de luxo, de grandeza – e alternadamente
cai em surtos melancólicos. Uma coisa tende a neutralizar a outra.
E os temas da ficção?
Scliar –
Brotam da inspiração: é quando uma ideia te galvaniza e provoca uma reação até
visceral. Hemingway costumava dizer que sabia que a ideia era boa quando ele
ficava arrepiado. Quando o teu corpo diz que a ideia é boa, é porque ela é boa.
Como o senhor analisa a questão do
Oriente Médio hoje?
Scliar –
Vejo com extrema preocupação. Acho que só a paz vai ser a solução, mas há dois
obstáculos violentos para ela. O primeiro é o terrorismo, que resulta na
matança de pessoas inocentes. O segundo é a ocupação de territórios. Parece que
chegamos hoje a um impasse e não se sabe para onde isso vai evoluir. O que reforça
a confiança é que sempre há pessoas de ambos os lados se associando pela causa
da paz.
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