terça-feira, 3 de julho de 2012

Arquitetura para um mundo melhor

Em conferência do ciclo Fronteiras do Pensamento, o arquiteto inglês Cameron Sinclair conta as inovadoras experiências da Architecture for Humanity, ONG que fundou para ajudar a reconstruir áreas devastadas por guerras ou catástrofes naturais

PAULO HEBMÜLLER


(Reportagem publicada no Jornal da USP nº 963, de 18 a 24 de junho de 2012)

 
     Arquitetos e engenheiros gostam de beber e jogar conversa fora (bem, não apenas eles, na verdade), mas algumas vezes até o que se gasta com bebida, e que pode levar uma pessoa a ficar bamba, pode também ajudar a erguer construções sólidas e estáveis. Foi o que o arquiteto inglês Cameron Sinclair, de 39 anos, pensou quando criou o Drinking for humanity (algo como “bebendo para a humanidade”). Funciona assim: na primeira terça-feira do mês, seu grupo de amigos se reúne para conversar e beber. Cada nova garrafa ou dose pedida entra normalmente na conta, mas a mesma quantia vai também para o centro da mesa e no final da noite o total é recolhido por um tesoureiro eleito no grupo. “Depois de um ano, juntamos dinheiro suficiente para construir um projeto”, diz Sinclair. Foi pela via do modelo do Drinking for humanity que se criaram mundo afora muitos capítulos locais da Architecture for Humanity ou “Arquitetura para a Humanidade” (AFH), a ONG que Sinclair fundou há cerca de 15 anos e que atua especialmente em áreas atingidas por catástrofes naturais ou guerras – como Haiti, Afeganistão e Japão.

Cameron Sinclair: para trazer a paz, nada melhor do que inovações pacíficas

     A AFH é também a ponta de lança para que o inglês mostre na prática que as ideias inovadoras que prega não são apenas ideias. Algumas delas, Sinclair apresentou na conferência do Fronteiras do Pensamento, na Sala São Paulo, no dia 5 de junho. Por exemplo: “O papel da arquitetura, e isso não foi o que me ensinaram na escola, é como fazer com que arquitetos e designers de construções colaborem juntos para melhorar as comunidades”; “é preciso construir, mas também galvanizar as pessoas por meio do processo do design”; “se você não constrói, não pode se chamar de arquiteto”; “temos que promover mudança social e econômica, não apenas estética”; “há milhões de ideias para mudar o mundo, mas elas não interessam se você não as constrói”; “não se trata apenas de construir edificações dignas, mas de gerar empregos na comunidade, porque, a menos que possamos prover meios de sustentação econômica, estamos somente planejando favelas para o futuro”.
     A melhor forma de entender como esses conceitos se aplicam na prática é por meio dos exemplos, e Sinclair relatou vários deles. O Haiti é um dos locais onde a organização mais atua no momento, e é também a sede de um de seus cinco escritórios globais (os demais estão na África do Sul, no Japão, na Colômbia e nos Estados Unidos). Os arquitetos ligados à ONG que estavam em Porto Príncipe escaparam ilesos do grande terremoto de janeiro de 2010, mas muitos parceiros locais morreram numa cidade do sul do país porque estavam reunidos num encontro e o prédio desabou. “Terremotos não matam pessoas. Construções ruins matam pessoas”, diz Sinclair. “Ninguém foi processado por ter feito esses prédios, e as mesmas empresas foram premiadas com os contratos para a reconstrução.”

Quebrar regras – No Haiti, os arquitetos da ONG têm liderado diferentes iniciativas em várias cidades – desde reconstrução de escolas até gerenciamento de projetos em bairros e vizinhanças inteiras. Um dos objetivos é mostrar aos desabrigados que reerguer as edificações e reorganizar as rotinas não são coisas rápidas e podem levar vários anos. Aplicando a ideia de que é preciso criar empregos, os próprios moradores trabalham nas obras – já são 7 mil haitianos envolvidos. A AFH também está mapeando o país para levantar quais são as “âncoras” de cada comunidade. Elas não são necessariamente escolas ou hospitais, mas num determinado lugar a âncora pode ser a loja cujo proprietário esteja estabelecido há décadas e conheça toda a vizinhança. “A reconstrução leva isso em conta e não começa do zero. Buscamos também integrar escolas e outros serviços sociais nessas áreas, além de espaços para a agricultura familiar. Ou seja, é uma reconstrução holística”, define.

No Haiti, uma escola multicolorida planejada e construída pela AFH
     Em outro caso de terremoto, desta vez no Peru, 60% das escolas afetadas permaneciam intocadas três anos depois da tragédia. Para Sinclair, o desastre natural é um “grande equalizador” que atinge ricos e pobres da mesma forma – mas a reconstrução não é igual, porque alguns são beneficiados muito antes de outros. “Reunimos algumas companhias e indivíduos e começamos um projeto para reconstruir algumas dessas escolas. Conseguimos reerguê-las num prazo de nove meses, com orçamento baixo e antes do início do ano letivo”, contou.
     Orçamentos podem apresentar surpresas quando são aplicadas soluções inovadoras e que levem em conta as questões locais, defende o arquiteto. Representantes da AFH foram procurados pela Organização das Nações Unidas (ONU) para reconstruir três vilarejos com tendas de inverno após uma inundação no Paquistão. “Uma tenda da ONU custa US$ 1.200 e dura cerca de um ano. Em vez disso, contratamos arquitetos e carpinteiros do próprio lugar para usar bambu, disponível na região, e fazer casas permanentes, ao custo de US$ 800 cada. Voltamos ao doador e dissemos: desculpe, construímos casas permanentes, e não tendas, e mais baratas. Tudo bem?” Para Sinclair, parte do trabalho é quebrar as regras, porque é isso que permite criar a inovação que realmente muda o status quo.

Culturalmente correto – Outras demonstrações práticas do modo de trabalho da AFH foram dadas após o tsunami na Ásia, no final de 2004. Parte dos projetos da ONG em Sri Lanka, Índia e Indonésia foi financiada por crianças de vários lugares do mundo, que venderam chocolate quente para destinar a renda à reconstrução. Numa comunidade em Sri Lanka, a arquiteta Susi Platt apresentou um projeto de um centro comunitário com capacidade para mil pessoas, escola, biblioteca, clínica, um campo de críquete e espaço para horta. Para Susi, era uma ideia bonita, que usava material local e tinha custo baixo. “Os moradores odiaram. Disseram que não se parecia com nada do que eles mesmos construiriam”, contou Sinclair. “Ela havia esquecido que o projeto era correto tecnicamente, mas não culturalmente. Eles não poderiam chamar o projeto de ‘seu’.”
     Susi então passou a se reunir com os moradores e discutiu como cada membro da comunidade poderia ser parte da proposta e ter papel ativo na construção. Material inovador foi usado, o novo desenho fez referências a arquitetos conhecidos do país, todas as famílias tinham trabalhadores envolvidos na construção. Quando a obra foi concluída, a comunidade realmente abraçou o prédio, que se tornou o coração da vida do local.
     Essas experiências trazem conhecimentos que a AFH aplica e espalha em todas as suas ações. “O que funciona é casar a expertise internacional com o conhecimento cultural local”, acredita Sinclair. Para o inglês, faz toda a diferença envolver os moradores numa construção, mesmo os mais jovens. As adolescentes, por exemplo, em poucos anos serão mães, e, se sabem que seus filhos estudarão na escola que elas mesmas ajudaram a projetar e construir, ensinarão as crianças a preservá-la e defenderão aguerridamente não só a qualidade da edificação, mas também a do ensino que será dado ali. “Não somos um poder colonial que chega e se instala para sempre. Nosso papel é fortalecer a comunidade, trazer possibilidades para que ela possa promover seu próprio desenvolvimento e então encontrar a melhor maneira de sair”, diz o arquiteto.
     A AFH não trabalha com arquitetos voluntários (“a pior coisa do mundo é demitir um voluntário”, afirma Sinclair) ou “jovens idealistas”. “São profissionais extremamente dedicados, apaixonados e leais às comunidades em que trabalham”, define. Eles passam a viver nos locais onde atuam, e como regra geral ouvem e conversam muito com os moradores antes de apresentar projetos. Após o tsunami na Ásia, a arquiteta Purnima McCutcheon, nascida no Havaí, sentiu que tinha o dever moral de trabalhar no país de onde sua família era originária, a Índia, e se mudou para lá com o marido e dois filhos. Ela ficou lá por cerca de dois anos, ao longo dos quais seus filhos cresceram literalmente em meio à reconstrução. Purnima mudou-se depois para a Mongólia e continua engajada na AFH.

Otimista-chefe – Alguns projetos em que a AFH está mais envolvida agora têm a ver com esporte. Em 2002, Sinclair trabalhava num projeto de clínicas móveis voltadas para detecção e prevenção de HIV/Aids na África. Num vilarejo sul-africano chamado Somkhele, ele conversava com uma enfermeira que gostava muito de futebol sobre como engajar as jovens nos programas – 54% delas estavam infectadas. A ideia então foi formar uma liga de futebol feminino, tendo os médicos como técnicos dos times, juntando assim esporte e educação.
     Sinclair lançou um concurso para projeto de um campo de futebol, com todas as instalações (vestiários e pequenas arquibancadas, por exemplo), e um grupo de arquitetos fez o design. O custo seria de US$ 30 mil, que o inglês tentava arrecadar com pequenas doações dos amigos (“ninguém me convidava mais para nada, porque todos sabiam que eu ia pedir dinheiro”, contou). “Então recebi uma ligação da Dinamarca dizendo que eu tinha ganho o Index Award (conceituado prêmio internacional de design) pelo projeto do campo.” O prêmio era de exatamente US$ 30 mil, que Sinclair aplicou na construção do campo e da escola com banheiros limpos e água corrente, sem os quais as meninas não vão às aulas.

No Quênia, um exemplo do projeto "Futebol para a mudança": a estrutura do telhado 
é aproveitada para captar água da chuva, que abastece o povoado

     Pouco tempo depois, uma ligação de Zurique ofereceu ao arquiteto uma parceria simplesmente com a Fifa para replicar o modelo em outros 15 países pelos quatro anos seguintes – era uma iniciativa ligada à organização da Copa do Mundo de 2010, na África do Sul. Sinclair também foi procurado pela Nike para implantar projetos de mudança social com foco no esporte. “No espaço de um mês saímos da situação de procurar desesperadamente uns dólares aqui e outros ali para gerenciar 40 projetos financiados no mundo inteiro”, relata. Cada projeto respeita as especificidades locais e tem foco em aspectos diferentes, dependendo da realidade encontrada: pode ser em saúde, educação, formação profissional, prevenção à violência etc. Um deles foi implantado no bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro.
     Em São Paulo, a AFH tem o design pronto para a construção de um centro esportivo em parceria com a Associação de Moradores da Cohab Adventista 1, em Capão Redondo. O projeto está parado desde outubro do ano passado por impedimentos legais – a construção estaria fora dos padrões do zoneamento da área. Para Sinclair, que visitou o bairro em sua passagem por São Paulo, cria-se um clima de desconfiança entre poder público e moradores quando as leis não acompanham o esforço da população em melhorar sua própria vida. O arquiteto diz que a ONG ainda está pouco presente no Brasil, não por falta de necessidade, mas por falta de apoio e recursos.
     A AFH já atuou em 48 países, tendo erguido cerca de 4 mil construções que impactaram a vida de aproximadamente dois milhões de pessoas. Todos os projetos, inclusive os da parceria com a Fifa, são compartilhados pela Creative Commons (http://creativecommons.org). Fundações, empresas e doadores particulares são seus principais financiadores. Como crianças são envolvidas em campanhas do tipo venda de chocolate quente e muitos jovens também fazem doações, a média de idade dos colaboradores é de 20 anos, diz Sinclair.
     O arquiteto incentiva cada um a se engajar em iniciativas nas quais acredite. “Não deixe para doar sua herança quando morrer ou só depois de se aposentar e achar que já juntou todo o dinheiro de que precisava. Ajude as pessoas que você pode ver e tocar agora”, diz. Quem quiser pode contatá-lo diretamente. Sinclair, que vive na Califórnia, nos Estados Unidos, distribuiu aos interessados no final da conferência o seu cartão, no qual se apresenta como chief eternal optimist (algo como “eterno otimista-chefe”). O e-mail é cameron@architectureforhumanity.org, e o celular: 1 646 765-0906. O site da AFH na internet é http://architectureforhumanity.org.

Vegetais em Chicago, skate no Afeganistão

     Cameron Sinclair diz que os capítulos locais de AFH se espalham rapidamente e criam parcerias com ONGs e outras entidades em cidades universitárias porque os estudantes também são adeptos da prática de Drinking for humanity. Essas iniciativas rendem várias histórias e exemplos inovadores. Em Chicago, nos Estados Unidos, a prefeitura cortou muitos programas sociais por causa da crise econômica, e alguns ônibus que eram utilizados neles ficaram ociosos. Organizações locais então os solicitaram e os adaptaram para transformá-los em mercados orgânicos móveis nos bairros pobres da cidade.
     É difícil encontrar frutas e vegetais frescos nessas áreas, onde as opções onipresentes são de lojas que oferecem coquetéis de calorias, como fast food ou refrigerantes. Os ônibus têm circulado há três anos e vendem o estoque inteiro todos os dias. As rotas serão aumentadas e o projeto será estendido a cidades como Nova York e San Francisco.
     Na China, foram construídas escolas móveis para acompanhar os migrantes pobres que são o grosso da força de trabalho na construção dos gigantescos prédios novos do país. Enquanto pais e mães trabalham, as crianças ficavam sem ir às aulas, gerando vários problemas sociais. Na cidade da Guatemala, foram mapeadas quase 12 ruas que estavam sendo subutilizadas pelo tráfego. O zoneamento delas foi alterado e o trânsito foi proibido. Durante a noite, quadras de esporte foram pintadas no asfalto e os arquitetos construíram instalações como abrigos e coberturas. De manhã, as crianças e jovens já podiam jogar nelas.
     Em Cabul, no Afeganistão, o projeto Skateistan instalou rampas e pistas em galpões e prédios semidestruídos e abandonados com a guerra entre o Talibã e o exército americano. Agora, os jovens, inclusive muitas meninas, estão “retomando sua cidade quarteirão a quarteirão com a prática do skate”, descreve Sinclair. “Faz-se o projeto e cria-se a mudança por meio de soluções positivas. A melhor maneira de criar a paz é por meio de inovações pacíficas”, ensina.


Em Cabul, as meninas também participam do Skateistan

(P.S.: Sinclair fez conferência no dia 4 de junho no Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre, mas este repórter só tem o privilégio de acompanhar o ciclo em São Paulo.)

sexta-feira, 30 de março de 2012

A dura batalha por memória e justiça

     No final de 2011, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) entregou à Justiça da Argentina um relatório até então mantido em sigilo contendo 130 fotos de cadáveres encontrados no litoral uruguaio na década de 1970. De acordo com a comissão, as fotos são a prova cabal dos chamados voos da morte, nos quais os militares argentinos jogavam ao mar presos políticos com as mãos amarradas – em geral sedados, mas ainda vivos. Como as águas não respeitam os traçados dos mapas, muitos cadáveres acabaram aparecendo nas praias do vizinho Uruguai, cujo governo passou a investigar a “invasão” dos mortos.
     O caso foi abafado quando a ditadura da Banda Oriental do Rio da Prata concluiu que os carrascos eram seus colegas fardados da ditadura da outra margem. Os documentos agora serão usados nos processos sobre crimes cometidos por militares da Escola de Mecânica da Marinha – a trágica ESMA, sigla em espanhol para Escuela de Mecánica de la Armada, o mais conhecido centro de horrores do regime nascido do último golpe argentino, que durou de 1976 a 1983.
     “A imprensa deu destaque, com razão, para a entrega desses arquivos”, comenta Jair Krischke, fundador e coordenador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), com sede em Porto Alegre. De sua escrivaninha, na antessala do pequeno conjunto que o MJDH ocupa num prédio comercial do centro da cidade, o coordenador aponta para a sala maior, isolada apenas por divisórias simples, e observa: “Eu tenho aqui o mesmíssimo material”. É um acervo que poderia alimentar processos em todo o cone sul.
     Enquanto ações contra agentes da ditadura não prosperam no Brasil, a Krischke resta admitir que inveja a Justiça da Argentina. Lá, torturadores, executores e até ex-presidentes não mais conseguem viver à sombra de uma anistia autoconcedida. No país vizinho, o militante gaúcho inclusive já testemunhou em processos que investigam o desaparecimento de dois cidadãos ítalo-argentinos alcançados no Brasil em 1980 pela Operação Condor – “a transnacional do terror que unia os generais do cone sul no desrespeito às fronteiras dos países e do direito internacional”, como a define o jornalista Luiz Cláudio Cunha, profundo conhecedor do tema. Os órgãos repressivos das diferentes ditaduras atuavam em colaboração para capturar ilegalmente os militantes que atuavam ou haviam se refugiado em outros países.
     A Justiça dos hermanos tem levado aos tribunais os responsáveis pelo terrorismo de Estado desde que, em 2005, a Suprema Corte do país declarou inconstitucionais as leis de “Obediência Devida” e “Ponto Final”, promulgadas por pressão dos militares – para garantir a própria impunidade – já no governo civil de Raúl Alfonsín (1983-1989). Os documentos entregues pela OEA vão reforçar esse trabalho. O Uruguai, como se verá adiante, tem seguido o mesmo caminho. No Brasil, a decisão de 2010 do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a Lei da Anistia vale para os crimes cometidos por agentes do Estado ajuda a barrar iniciativas como a do Ministério Público Federal de tentar abrir ação contra o coronel da reserva Sebastião Curió pelo sequestro de cinco integrantes da guerrilha do Araguaia.
Jair Krischke: "Comissão da Verdade vai ter que pendurar o bilhete no pescoço do tigre"

Ferida que não fecha
    
     Vários dos militantes que têm patrocinado – ou tentado patrocinar – ações do gênero no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai e Bolívia estarão reunidos neste final de semana (da sexta-feira 30 de março ao domingo 1º de abril) na capital gaúcha para o 5º Encontro Latino-Americano por Memória, Verdade e Justiça, cujo tema é “Cumprir com a verdade”. Que o encontro ocorra no aniversário de um dos pioneiros golpes militares a varrer o cone sul nas décadas de 1960 e 70 – o brasileiro – não é coincidência. As quatro edições anteriores, realizadas nos países vizinhos, também “celebraram” datas semelhantes.
     Parlamentares, como os brasileiros Chico Alencar e Luiza Erundina; procuradores, como o argentino Miguel Angel Osorio e a uruguaia Ana Maria Telechea Reck; historiadores, jornalistas e ativistas como Victória Grabois Olímpio, do Grupo Tortura Nunca Mais, participarão dos debates na Assembleia Legislativa gaúcha. Entre eles também estará a bioquímica Macarena Gelman, filha de Marcelo Gelman e María Claudia García, sequestrados em Buenos Aires em agosto de 1976. Marcelo foi assassinado em outubro, mas María Claudia, às vésperas de completar vinte anos de idade e grávida de sete meses quando sequestrada, foi levada para o Uruguai num dos voos da Condor poucos dias antes de dar à luz.
     A praxe dos algozes era manter vivas as prisioneiras grávidas até que tivessem os bebês para entregá-los a casais sem filhos ou que quisessem mais uma criança – casais em que, geralmente, os maridos eram militares ou civis de alta classe simpatizantes das ditaduras. Havia até listas de espera de potenciais pais adotivos. Nascida provavelmente no início de novembro, Macarena sabe que há registros de que foi vista com sua mãe pela última vez no dia 22 de dezembro. Em 14 de janeiro de 1977 foi entregue a um policial uruguaio e sua esposa em Montevidéu. Depois de ter a filha arrancada de seus braços, María Claudia foi assassinada. Seus restos, ao contrário dos de Marcelo, jamais foram localizados.
     Macarena só soube de sua verdadeira história no início de 2000, quando a mãe adotiva resolveu contá-la, poucos meses após a morte do marido. Aos 23 anos, nasceu para uma segunda vida, na qual tomou conhecimento de que seu avô paterno, o consagrado poeta argentino Juan Gelman, a procurava incansavelmente. Passou então a se inteirar dos temas ligados às ditaduras, aos desaparecidos e à Operação Condor, e adotou os sobrenomes dos pais biológicos. Ela foi o 67º caso de filhos de militantes que tiveram sua identidade recuperada, de acordo com a organização argentina Avós da Praça de Maio. Em 2011, esse número chegou a 105. As Abuelas estimam que cerca de 500 bebês foram sequestrados pelos militares.
     O “Caso Gelman”, que será tema da primeira mesa de debates do encontro em Porto Alegre, esteve no centro da decisão tomada em outubro do ano passado pelo parlamento uruguaio de declarar que os crimes cometidos durante a ditadura militar no país (1973-1985) são de lesa-humanidade e, portanto, imprescritíveis. No último dia 21 de março, o presidente e ex-guerrilheiro José Pepe Mujica, ao lado do presidente da Suprema Corte e com Macarena e Juan Gelman nas galerias, leu no Congresso Nacional uma declaração reconhecendo oficialmente a responsabilidade do Estado pelo desaparecimento de María Claudia.
     O chamado “ato de perdão” cumpriu sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que condenara o país no caso – é a mesma corte, por sinal, que condenou o Brasil no caso da guerrilha do Araguaia, sustentando que a Lei da Anistia é incompatível com as convenções internacionais e não pode impedir a investigação dos crimes da ditadura brasileira. “Custou-me muito me apropriar de minha história”, disse Macarena numa entrevista ao diário portenho La Nación em 2010. Ela ainda não sabe o que de fato aconteceu com sua mãe no cárcere depois que as duas foram separadas. Sobre esse desconhecimento, afirmou: “Tenho essa ferida que talvez não feche nunca”.

Painel fraturado

     O encontro de Porto Alegre vai analisar as várias dimensões e entraves para reconstruir a história das ditaduras, da luta para derrubá-las e dos esforços para identificar e punir violadores dos direitos humanos. É como montar um quebra-cabeça, compara Jair Krischke, no qual pequenas frações e peças vão se juntando para formar “um painel ainda todo fraturado”. Para o militante, somente a abertura de todos os arquivos vai permitir a recuperação do quadro geral.
     Os debates vão ocorrer em meio ao tiroteio sobre a criação da versão brasileira da Comissão da Verdade, alvo de constantes críticas por parte dos militares. O coordenador do MJDH tem suas próprias ressalvas ao projeto, entre elas o fato de que nomear apenas sete integrantes e 14 auxiliares para investigar um período de mais de quarenta anos “é muito pouco”. “O texto aprovado está longe de ser aquele pelo qual lutamos, mas de qualquer sorte é um avanço para o país mais atrasado em termos de investigação das ditaduras na região”, afirma.
     “A Comissão da Verdade vai ter que ‘pendurar o bilhete no pescoço do tigre’: bater na porta dos quartéis e exigir os documentos – e não me venham com a história de que eles foram destruídos, porque isso é mentira”, diz Krischke. No Rio Grande do Sul, o ex-governador Amaral de Souza (1979-1983) chegou a promover uma “queima pública” das fichas do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) estadual. Porém, nos arquivos do MJDH existem documentos oriundos do extinto departamento com anotações posteriores à incineração. “Não é fantástico isso? Se essas fichas foram queimadas, como aparecem com atualizações? Esses arquivos existem, e eu tenho aqui a prova”, aponta.
     De documentos o coordenador do MJDH entende. As estantes da sala maior da sede do movimento abrigam uma enorme quantidade de caixas-arquivo de plástico cujo conteúdo vem sendo catalogado e sistematizado por pesquisadores e professores. A intenção é que esse acervo dê vários frutos, como o livro bilíngue (em português e espanhol) A história do Movimento de Justiça e Direitos Humanos – Onde a esperança se refugiou e uma exposição multimídia com o mesmo tema. Aproximadamente duas mil vítimas de perseguição em seus países conseguiram exilar-se e salvar sua vida com o auxílio do MJDH. A maioria delas deixou depoimentos por escrito na sede porto-alegrense. Algumas estão sendo contatadas para gravar entrevista em vídeo, outra vertente do projeto de dar cada vez mais a conhecer a riqueza do material armazenado ao longo das últimas décadas.
     Para Krischke, é um esforço que significa contar parte da história política da América Latina. “Esse acervo não tem sentido se não for acessível ao público. Ele não existe para o nosso deleite”, diz. Outra iniciativa prevê higienizar e digitalizar os documentos obtidos pelo MJDH para possibilitar sua consulta pela internet. Todos esses projetos por enquanto estão exatamente na fase de projetos, e ainda dependem da captação de recursos.

Krischke em 1980, na reunião com familiares de presos políticos uruguaios

Trilhas de contrabando

     Se o sucesso na obtenção de financiamento permitir, será mais fácil ao público ter acesso, por exemplo, ao material sobre os corpos que “brotaram” no litoral do Uruguai – os primeiros documentos chegaram ao MJDH porque dois cadáveres foram encontrados nas areias de praias do extremo sul gaúcho em abril de 1978. No mesmo ano se deu outro caso emblemático para as ditaduras do continente: o sequestro, em Porto Alegre, dos uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Díaz. Membros do Partido pela Vitória do Povo, eles foram vítimas de uma das mais conhecidas ações da Operação Condor. Para prendê-los, os agentes do país vizinho contaram com a inestimável colaboração de policiais do DOPS do Rio Grande do Sul.
     A denúncia do sequestro, feita pelo jornalista Luiz Cláudio Cunha e pelo fotógrafo J.B. Scalco, então da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, evitou que Universindo, Lílian e os filhos dela – Camilo, então com oito anos, e Francesca, de três – se somassem aos cerca de 150 uruguaios “desaparecidos” em operações do gênero, a maioria realizada na Argentina. Eles foram os únicos a sobreviver, e a repercussão do caso de Porto Alegre transformou-o no último sequestro praticado pelo Uruguai. Mesmo assim, os dois militantes não escaparam da tortura e passaram cinco anos presos em seu país. Krischke acompanhou a libertação deles, no final de 1983, em Montevidéu. A Justiça uruguaia reabriu o caso no final de fevereiro, e o próprio Cunha poderá ser chamado a testemunhar.
     Muito antes desse sequestro, Krischke e seus companheiros já atuavam na defesa de perseguidos políticos do cone sul. Quem procurava o Bazar Carioca, a loja de miudezas mantida pela sua família numa área de comércio popular no centro de Porto Alegre, dizendo a senha – “Con los saludos de La Virgen de Guadalupe” – sabia que encontraria amigos dispostos a percorrer antigos caminhos de boiadas e velhas trilhas de contrabandistas para cruzar fronteiras e obter refúgio. Essa rede solidária incluía ordens religiosas, colégios e outros locais de esconderijo que, como conta o jornalista José Mitchell no livro Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar (RBS Publicações, 2007), em boa parte o militante dos direitos humanos ainda hoje não revela.
     A criação formal do MJDH, em março de 1979, permitiu que houvesse maior amparo jurídico para acionar instâncias como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e assim socorrer vítimas do arbítrio fardado no continente quando as trilhas clandestinas passaram a ser arriscadas demais. Uma das “operações” emblemáticas foi o resgate do físico uruguaio Cláudio Benech, que estava preso em seu país, mas teve autorização para passar o ano novo com a família. Krischke e alguns companheiros conseguiram resgatar Benech e seus familiares e levá-los em segurança até a fronteira com o Brasil, após viajarem durante toda a madrugada de 1º de janeiro de 1981.

Em 1983, o militante acompanhou a libertação de Universindo e Lílian em Montevidéu

A cruz e a metralhadora

     Outro episódio envolvendo o país vizinho marcou a história do MJDH. Em 1980, uma missão das Nações Unidas encarregada de investigar a situação dos direitos humanos no Uruguai não obteve autorização do governo para ouvir os familiares de desaparecidos. Contatos com o movimento gaúcho permitiram que quase trinta familiares viajassem de ônibus a Porto Alegre, onde se reuniram no Sindicato dos Jornalistas, contaram suas histórias e forneceram documentos. Os depoimentos foram entregues formalmente por Krischke à Ordem dos Advogados do Brasil e aos delegados da ONU.
     Aos 73 anos, Krischke se mantém incansável na luta que iniciou décadas atrás, até porque as violações de direitos humanos seguem corriqueiras na atualidade – no que, aliás, não negam a herança de uma longa história de desrespeitos e omissões no País. Pavimentar um caminho diferente no futuro exige encaixar as peças do quebra-cabeça, defende o fundador do MJDH. Ele reconhece que não é tarefa fácil. Para ficar apenas nos desafios da Comissão da Verdade, não basta encontrar documentos; é preciso saber decifrá-los. “Não temos essa cultura que os argentinos e uruguaios criaram de olhar para um documento e saber o que ele significa, saber linkar uma coisa com a outra”, lamenta.
     Perguntado sobre como tantos papéis “quase” secretos chegaram e continuam chegando aos alentados arquivos do MJDH, Krischke evoca o bispo mexicano Dom Sergio Méndez Arceo, falecido em 1992 – de quem se dizia que carregava um crucifixo numa das mãos e uma metralhadora na outra. “Quando lhe faziam essa pergunta, Dom Sergio respondia solenemente: ‘no se puede decir’. É o que digo eu”, comenta, num sorriso, o guardião de tantos testemunhos capazes de dizer muito a muita gente.