quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Valter Hugo Mãe: “Os livros são para isto – para que nos libertem”


Por Paulo Hebmüller
viajantedoinverso.blogspot.com


Valter Hugo Mãe em Guadalajara, México. Foto de Adélia Carvalho (reprodução do Facebook)

Uma noite destas que emanam luz tão necessária em tempos tão cheios de trevas – uma segunda-feira de junho em que Valter Hugo Mãe celebrou a vida pela palavra. “Nossa vida nunca vai ser justificada pela solidão. O sentido está em outra pessoa, em outras pessoas”, disse ele às pessoas, muitas pessoas, que lotaram o Sarauzódromo Tula Pilar Ferreira, na Biblioteca Mário de Andrade, Centro de São Paulo, na noite de 17 de junho. A sala ficou pequena para tanta gente. Foi necessário colocar caixas de som no hall do prédio para que as outras tantas pessoas que ali ficaram de pé pudessem também comungar das palavras.
Simples assim: um diálogo sobre livros, música, arte, vida. Sem telão, holofotes, efeitos especiais. Apenas pessoas interessadas em pessoas interessadas na partilha de palavra e poesia. "Eu sou muito ajudado na construção dos meus sonhos por tanta gente que me acompanha. Quando eu duvido da vida, da validade de alguma coisa, basta ouvir uma canção, ler um verso, observar uma pintura e eu penso: não, este ainda é um mundo que maravilha", disse Valter. "Vão tentar destruir tudo, vão tentar destruir-me provavelmente; tem gente que gostaria de aniquilar tudo aquilo em que acredito, mas eu sei que este ainda é um mundo de maravilha e por isso ainda mantenho sonhos, por causa desse apoio. Para mim isso é uma absoluta evidência."
Filho de portugueses, Valter Hugo Lemos – o Mãe do nome é uma escolha dele – nasceu em Angola em 1971. A família logo retornaria a Portugal e em 1980 se estabeleceria em Vila do Conde, onde o escritor vive até hoje. Poeta, romancista, artista plástico, vocalista do grupo Governo, apresentador de televisão, escritor premiado, apaixonado pelo Brasil e, como se verá, pelo seu borogodó, Valter fez a plateia rir e se emocionar em pouco mais de uma hora de conversa, mediada pela jornalista Adriana Couto. Tempo maior do que esse passou depois deixando seu autógrafo e dedicatória em centenas de exemplares que toda aquela gente esperou para receber.
Entre eles, muitos de seus quatro primeiros romances – o nosso reino, o remorso de baltazar serapião, o apocalipse dos trabalhadores e a máquina de fazer espanhóis –, conhecida como a tetralogia das minúsculas. 
O que aqui segue é uma edição dessa conversa, na tentativa de fazer com que o alimento para a alma partilhado numa noite de São Paulo viaje e viceje um pouco mais por aí.

Prefiro acreditar que podemos instalar uma mentira bela 
na qual vivamos do que aceitar o grotesco e manter 
o grotesco. Por isso eu ajo e sobretudo movo-me e atuo mais 
no mundo em que eu quero viver do que no mundo 
em que eu vivo. Acho que, se todos fizéssemos assim, 
se todos tivéssemos um gesto à altura dos nossos sonhos, 
talvez o mundo estivesse mais perto dos nossos sonhos.”

Valter Hugo Mãe É muito bom estar aqui na biblioteca. Eu sou muito grato por você [Adriana] ter aceitado mediar essa conversa e ao convite da Josélia Aguiar para vir aqui à Biblioteca Mário de Andrade.
Na primeira vez que vim a São Paulo, circulei muito pelo Centrão, aqui perto, na Galeria do Rock, procurando camisetas da Legião Urbana e dos Titãs. Era um tempo em que não havia essas camisetas… As gerações mudaram e a música deles não era tão daquele momento. Então ficavam tentando que eu comprasse outra coisa, e eu protestava. É insuportável vir a São Paulo e não haver camisetas da Legião e dos Titãs para eu comprar – ainda hoje acho que é insuportável.
E eu passava muito nesta biblioteca incrível. Este prédio é muito, muito bonito, com esta torre e três milhões de itens arquivados. É um patrimônio inestimável do Brasil. Eu imaginava, passava pequenino ali na rua…
Uma vez entrei e ofereci um livro meu. Parei num balcão que havia e disse: “eu gostava de deixar este livro aqui na biblioteca”. Lembro-me que a senhora que estava no balcão disse: “mas como assim, para deixar como?” Eu falei: “para o acervo, se tiver interesse. Se vocês não quiserem o livro, podem oferecer a alguém, ou mandar reciclar…”

Adriana Couto – Estamos falando de que ano?
Estamos a falar de 2000, há dezenove anos. Porque eu pensava: que incrível deve ser ter um livro guardado nesta torre, e eu queria muito que um livro meu estivesse aqui de alguma forma guardado, que esperasse por alguém dentro desta biblioteca. Então é de fato muito bonito hoje estar aqui dentro e haver livros meus nas mãos das pessoas.

Em 2011 houve a Flip que apresentou você para muitos brasileiros que se emocionaram com um relato que você tinha feito na noite anterior sobre a sua relação com o Brasil...
Foi tão impactante a Flip na minha vida que ela acabou por me convencer a reclamar um certo modo de ser.
Eu ficava muito problematizado com a minha comoção, com as minhas emoções. Ficava tentando minorizar os sentimentos para que não me comovesse, para que pudesse passar um pouco discreto e talvez fazendo o que a maior parte das pessoas faz, que é falar como se as coisas não fossem tão pessoais assim, tão importantes – adotar uma postura meio duvidosa em relação a todas as coisas… E eu achava que talvez estivesse obrigado a essa desimportância, a essa máscara.
O que acontece na Flip é que fiquei o tempo todo me segurando. A conversa foi muito gratificante, muito forte, e eu fui sempre segurando. Comecei a ler o meu texto e segurei várias vezes olhando para o texto. Às vezes as pessoas não têm noção – eu paro várias vezes no texto para não chorar.
Pensei: não posso chorar, não se chora em público. Os outros escritores não choraram… Eu assisti à fala inteira do Antonio Candido e ele não chorou, e ele era incrível. O José Miguel Wisnik não chorou, o João Ubaldo Ribeiro não chorou… Eu quero ser como essas pessoas incríveis. Eu quero ser como o Antonio Candido. Quem não quer? Pensei: para ser, não posso chorar, e então parei várias vezes no texto.
Mas no fim, quando acabo o texto e levanto os olhos para a plateia, está toda a gente chorando. E eu pensei: a plateia do João Ubaldo Ribeiro não chorou [risos]. Então há qualquer coisa aqui que não é uma norma, um padrão, algo que não corresponde a todos. Há momentos, há instantes, algumas coisas solicitam essa entrega ou essa verdade.
Então eu chorei.
Tentando não ser muito, mas eu chorei.
Isso marcou-me muito porque passei a ser visto como uma pessoa que se pode comover – e sobretudo acho que possibilitou-me entender que a pessoa que eu sou passa de fato muito perto dos livros, porque a força poética dos livros, ou a delicadeza dos meus livros, tem uma razão de ser e talvez me corresponda.
O que acontece na Flip acaba por ser uma espécie de reclamação da posse do direito de eu ser quem sou.

Isso é maravilhoso… Mas eu sei que nessa Flip não foi só aí que você chorou…
Não, depois eu chorei várias vezes, mas eu fico segurando. Não vou chorar sempre, em todo lado, senão as pessoas já vêm com lenço, com guarda-chuva…

Aos pés da Elza Soares, por exemplo, o que você fez?
Eu chorei… Mas foi rápido, foram trinta segundos. Eu não aguentei mais, eu precisava fugir.
Na Flip a Elza fez o show de abertura e eu pedi muito que me levassem onde ela estivesse, que eu não tomaria mais do que trinta segundos. Ainda agora me comove… [faz uma pequena pausa]
E eu fui. E eu só chorei, não conseguia dizer nada àquela mulher. Eu queria dizer uma coisa inteligente, uma coisa que ela lembrasse minimamente – mas toda a gente diz coisas incríveis a Elza Soares, como eu iria inventar alguma coisa? Então não conseguia dizer nada.
Eu ajoelhei no chão – não conseguia estar ao nível dela, ela estava sentada –, porque no fundo eu queria cair, não conseguia manter qualquer verticalidade. E eu só chorei e pedi desculpas e saí. Alguém filmou: o vídeo tem 36 segundos, por isso é que eu sei que são trinta segundos.
Está aqui hoje um dos meus ídolos, o Chico César. Há vários anos que eu venho ao Brasil e muita gente me pergunta: “quem você gostaria que estivesse com você no festival ou para uma entrevista etc.?” E eu: “Chico César, Chico César, Chico César…” Ninguém conseguiu convencer o Chico César a fazer nada comigo. E eu pensei: claro, o Chico César não deve nem saber quem eu sou, vive no mundo dele, absolutamente maravilhoso, rodeado de deuses e deusas.
No ano passado, o Marcelino Freire perguntou-me: “Valter, na próxima vez que você vier, há alguém que você queira muito conhecer?” E eu disse: “o Chico César.”
Pensei: não adianta convidá-lo para nada, não vou conseguir que ele vá comigo a lugar nenhum. Mas se o Marcelino conseguisse que eu só o conhecesse… No fundo o que eu queria eram trinta segundos para chorar o básico e ir embora.
O Marcelino conseguiu que o Chico César aceitasse conhecer-me. E eu fiquei incrédulo. E o Chico César foi tão generoso que ele e a Bárbara me convidaram para jantar na casa deles há dois ou três dias. Eles não têm noção da importância disso para mim. Eles pensam que é uma coisa normal, eles comem todos os dias… [risos]
Enquanto estávamos lá, eu falei a uma pessoa ou outra sobre a importância da Elza Soares. E disse uma coisa que decidi escrever – e ontem eu não conseguia dormir sem escrever isto sobre a Elza Soares:

[lê do celular]
“Deus só não é a Elza Soares porque Deus não está qualificado para ser a Elza Soares.
Coloquemos as coisas assim: o Brasil vive a fortuna de um certo Olimpo se abrir e figuras divinas andarem entre as pessoas. O gigantismo do país não justifica essa magnificência.
Eu acredito que a mestiçagem poderá estar na espera desse esplendor: não é o fato de ser muito grande, é o fato de ser misturado.
O embate com o diverso, a evidência do diverso, potenciando em cada um a sua natureza, aprofundando em cada um a necessidade de criar identidade, o que é caminho para a inteireza, para a sabedoria.
Eu escolho a Elza Soares para a minha bandeira e declarei que a sua carne é a carne mais cara do meu mercado. Ninguém a pode comprar.
Lembro de um poema que publiquei aos vinte e poucos anos onde perguntava: e se Deus se vendesse, quem o poderia comprar?
Elza gera o mesmo absurdo. Ela está acima de nós.
Eu escolho Elza para a minha bandeira por ser uma força guerreira que chega diante de todas as improbabilidades. Sua vida inventou tudo para piorar, inventou tudo para impedir sua passagem, mas ela passou.
É hoje o mais impressionante canto edificada no palco como num altar. Guerreira ou deusa, ela representa todas as mulheres cujo caminho foi boicotado pelos homens, até que nenhum homem fosse capaz de ali chegar.
Gosto muito daquele vídeo em que a Cher conta sobre a preocupação de sua mãe. A mãe da Cher dizia-lhe: ‘filha, tens de encontrar um homem rico’. E a Cher respondeu: ‘mãe, eu sou um homem rico’.
A Elza, nesse sentido, é um homem rico.”
[palmas]

Com Elza Soares num show recente na cidade de Ovar, em Portugal (reprodução do Facebook)

Você já está falando dessa comoção pela palavra, pela música, pela poesia... Como a literatura te arrebatou?
Eu creio que já escrevia poesia quando menino sem saber que aquilo se chamava poesia. Escrevia muitos versos, fazia aquilo que eu achava serem coleções de palavras. Colecionava, guardava… Deixava aquilo um pouco como se guardam estampinhas [figurinhas] de futebol. Eu guardava palavras que me pareciam interessantes, muitas das vezes que eu não entendia. E a certa altura inventei de brincar com elas, juntar esta palavra com esta.
Um dia uma professora, na terceira série, disse: isso é poesia, isso é um poema.
Eu achava que aquilo era uma doença que só eu tinha. Não sabia que muitas pessoas padeciam da mesma doença e fiquei surpreso.
Um dia, tinha dez anos de idade já, encontrei um livro e quis comprar. Eu nunca tinha tido um livro, não havia livros em minha casa, os meus irmãos mais velhos nunca pediram um livro. Então era estranho que dentro daquele universo em que eu me movia um livro pudesse ser apelativo.
Meus pais me ajudaram a comprar o livro e eu nunca mais consegui conceber a realidade sem a ajuda da fantasia. Prefiro acreditar que podemos instalar uma mentira bela na qual vivamos do que aceitar o grotesco e manter o grotesco. Por isso eu ajo e sobretudo movo-me e atuo mais no mundo em que eu quero viver do que no mundo em que eu vivo. Acho que, se todos fizéssemos assim, se todos tivéssemos um gesto à altura dos nossos sonhos, talvez o mundo estivesse mais perto dos nossos sonhos.

Mas é difícil acreditar, não é?
Não!

O que me falta para ser menos cética?
Não sei, Adriana, você pode ter outro tipo de doença. Eu tenho muitas.
Sabe por que eu não acho difícil? Porque eu sou muito ajudado. Sou muito ajudado pelo Chico César. É, eu sou muito ajudado. Acho que as pessoas só não se ajudam porque muitas vezes não querem ou não sabem onde buscar ajuda.
Suspeito que vocês entendem isso, porque vocês a esta hora deste dia estão dentro da Biblioteca Mário de Andrade. E não é qualquer cidadão que sabe usar uma biblioteca e que aceita estar em pé em condições desafiantes para ouvir um escritor.
Eu sou muito ajudado na construção dos meus sonhos por tanta gente que me acompanha. Quando eu duvido da vida, da validade de alguma coisa, basta ouvir uma canção, ler um verso, observar uma pintura e eu penso: não, este ainda é um mundo que maravilha. Vão tentar destruir tudo, vão tentar destruir-me provavelmente; tem gente que gostaria de aniquilar tudo aquilo em que eu acredito, mas eu sei que este ainda é um mundo de maravilha e por isso ainda mantenho sonhos, por causa desse apoio. Para mim isso é uma absoluta evidência.

É o que te faz escrever?
Também. É sobretudo por pressentir e por entender que algo falta. Somos profundamente incompletos. A realidade é incompleta, estamos a caminho eventualmente de uma construção de algo melhor. A humanidade é um ensaio para um estágio mais avançado que há de vir – eu acredito que há de vir. Por mais catástrofes que hão de acontecer, haveremos de chegar a uma consciência melhor – e por isso essa percepção da incompletude e de que muito falta para fazer é motivadora.
Eu não consigo ficar só à espera do futuro para que o futuro anuncie a plena humanidade. Eu quero meditar sobre isso; escrever é uma meditação sobre isso. É como se eu estivesse a convocar esse tempo para que ele chegue mais depressa.
Os artistas sempre têm aquela ideia – quando morrerem, o tempo há de definir os que são bons e os que são maus. Mas eu não tenho muita paciência para isso. O tempo fará o que quiser, mas enquanto estiver vivo eu também quero tomar as minhas decisões, meditar sobre o assunto e ter as minhas convicções.
Por isso eu nunca tenho preconceito em relação a artistas mais novos, sejam músicos, pintores, escritores… Eu sou fascinado por muitos escritores que acabaram de estrear. Podiam ser meus filhos… Fico muito invejoso, deveria escrever os livros que eles escrevem. Mas é a minha forma de tentar antecipar o futuro, de tentar aproveitar tudo aquilo que é melhor.


e nós, que não somos de modo algum 
feitos de ferro, falhamos talvez demasiado, 
o que nem por isso nos torna covardes, 
apenas os mesmos de sempre, os mesmos 
vulneráveis e atordoados seres humanos 
de sempre. tanta cultura e tanta fartura 
e ao pé da morte a igualdade frustrante 
e a mesma ciência. sabemos todos rigorosamente 
uma ignorância semelhante. e assim não há quem 
aponte um caminho mais fácil, mais interessante 
das vistas, mais proveitoso, mais 
acompanhado, um caminho disparatado 
que é partir sem na verdade se sair do lugar.”
(a máquina de fazer espanhóis, 2010)

Em vários de seus livros, há um narrador que está na infância, é uma criança. Esse lugar da infância para olhar o mundo é um lugar que te ajuda e em que você gosta de transitar?
É. Eu falava há alguns dias de uma sensação que tenho de que, de algum modo, quando crescemos há um momento em que nos sentimos expulsos da infância, como se estivéssemos impedidos de voltar atrás ou de prolongar a infância pelo menos mais um dia.
E os adultos têm isso. Ficam dizendo: “você não é mais uma criança”; “não chora porque você não é mais uma criança”; “não pede mais doce porque você não é mais uma criança…” A gente fica ouvindo aquilo e se pergunta: por que não sou? Onde acabou a infância? Quando foi isso? Eu não recebi uma notificação, não fui preparado. Não há uma disciplina, uma classe qualquer que diga: olha, no dia não sei das quantas de dois e mil e não sei quando termina a sua fase infantil e aí você vira outra coisa. Isso seria muito traumático.
A verdade é que, quando nos damos conta, não há mais solução. E eu vivo esse trauma até hoje – de não ter sido avisado e de não me terem perguntado se eu deixava. Por que eu não posso decidir outra coisa? Quem mandou eu para de chorar? Quem mandou eu parar de gostar tanto de sorvete?
Muitas das vezes as crianças existem no meu texto como uma necessidade de regresso; como se fosse uma necessidade de criar um apaziguamento com algo que me foi roubado.
E ao mesmo tempo elas permitem uma coisa maravilhosa: elas permitem o debate de uma ideia com franqueza sem que isso seja uma afronta. A criança não tem uma agenda, não tem um propósito que não seja o imediatamente humano.
Nos meus livros, como eu tenho esse componente ético, a criança é um instrumento; digamos assim, uma aliada inestimável.

Vou fazer agora algumas perguntas da plateia.
Escolha as mais fáceis, por favor. [risos]

Em Notas incompletas sobre assuntos do tempo, você diz que não é a árvore que importa, mas sim a memória da árvore que será importante para a vida. Hoje, qual é a sua memória mais presente?
O que que a gente combinou, Adriana? [risos]
Não, isso é complexo. A árvore importa, não vamos cortar a árvore e ficar lembrando… É preciso ver o texto todo…
Mas a memória da árvore é que constrói a nossa identidade. Não é exatamente a árvore: é a capacidade de lembrar que vai ser identitária.
Quando chego ao Rio de Janeiro, tenho sempre a mesma impressão. Eu fui ao Rio umas dezenas de vezes: vejo o Rio e tenho a sensação de que estou a ver uma coisa que nunca vi. A impressão que aquilo me causa não é possível guardar na memória. Ela supera sempre a capacidade de lembrar. A gente acha que conhece aquilo, mas quando vê…
A gente vai num show do Chico César… A gente ouviu as canções, sabe quem é o Chico César, mas ouve outra vez a canção, chora outra vez… A canção está para lá da memória.
Quando falo da árvore, isso é uma tragédia: a gente só tem a memória. A gente não tem o Chico César, a gente não tem a árvore, a gente tem a memória. É por isso que a gente volta lá. A gente precisa voltar ao convívio da árvore, da canção, da voz, da letra…
A gente volta a ouvir aquela letra, volta a chorar, porque a letra está sempre depois da memória, sempre acima da memória.
Isso no fundo é que gera a grande e avassaladora importância de estarmos vivos e de não darmos nada por garantido, porque quando a coisa falta nós vamos perceber que nos reduzimos à memória, e a memória é uma coisa muito menor.
Eu vou falar mais do Chico César… Não tem aquela coisa que dizem que todo homem é corno diante do Chico Buarque? Eu acho que diante do Chico César todo homem é um pouco gay.
Eu tenho uma versão diferente: todo mundo tenta entender o que é aquilo que ele canta, e eu digo assim:
[canta com a melodia de “À primeira vista”]

Agarrando sua saia, sonhei
é saia, é saia
da minha mãe”
[aplausos]

pensar que, agarrado à saia da mulher amada, a gente volta de alguma forma ao princípio de todas as coisas, eventualmente ao edifício mais alto que todos nós algum dia ocupamos, que é nossa mãe.

No Cabo Espichel, "um dos lugares que maior impacto cria em mim, de todos
os cantos deste nosso Portugal", escreveu ao postar a imagem no Facebook

Que lindo! Mãe – Valter Hugo Mãe...
É por isso mesmo: a altura do edifício. Eu não iria escolher um nome para mim que fosse uma coisa qualquer. Eu escolhi a palavra, o vocábulo mais alto, mais extremo, mais rico…

Mais rico e que simboliza...
Todos nós. No meu livro A desumanização há uma passagem que diz qualquer coisa como isto: de alguma forma, todos nós começamos por ser uma mulher, porque no primeiro tempo nós não diferimos da mulher.
Nós somos um atributo, uma característica do corpo de uma mulher. Todos nós, qualquer que seja o gênero, houve um tempo em que fomos simplesmente uma mulher. E isso são as mães que fazem.

as mães são como lugares de 
onde deus chega. lugares onde deus está 
e a partir dos quais pode chegar até nós. 
porque só através delas nos encontramos aqui.”
(o remorso de baltazar serapião, 2006)

Para chegar a essa voz da mulher, que carrega tantas outras… Como um escritor consegue chegar a algo tão primordial?
Eu juro que não tenho uma mulher dentro de mim, não sou transexual, não vou me operar. Mas eu tenho esse fascínio; o meu nome já é esse programa, já é essa intenção. Eu quero conhecer o que vai de mim até o outro lado, o lado mais longínquo da pessoa. E o lado mais longínquo da pessoa, desde o meu ponto de vista, desde a minha experiência, é a mãe.
Enquanto artista, enquanto autor, quero ser capaz de conhecer, de entender, ainda que possa falhar, todo esse espectro que compõe a pessoa.
Acerca do meu lugar de homem, eu sei muita coisa, porque é a minha evidência. Sobretudo vou convencendo o meu espírito a cada dia de que alguma coisa está definida.
Mas, acerca do lugar da mulher, por exemplo, já começa o mistério. E na extremidade onde está a mãe, a maior parte das coisas é absolutamente mágica, e por isso elas não têm muita expressão, não são visíveis, não se sabe dizer. É aí que os poetas querem entrar. É nesse pedaço do indizível que os poetas e artistas querem habitar para trazer essa revelação, para serem capazes de compor uma revelação que possa elucidar todas as cabeças.
Um dos dramas da sociedade e uma das tragédias daquilo que faz propender para o erro contínuo é não conseguirmos iluminar todas as cabeças para essas maravilhas – para a maravilha de entendermos o lugar do outro. Ficamos tão aprisionados no estabelecimento de quem somos, numa individualização profunda, muitas das vezes cheios de dúvidas acerca de quem somos, que não temos compaixão nenhuma por quem são os outros.
Acho que é suficiente sermos quem somos – não precisamos complicar. Se isso virar uma solidão, não é bom. Se virar uma desatenção para com os outros, não é bom. Sabermos o nosso nome, onde fica a nossa casa para regressar ao fim do dia, um gosto ou outro, o que faz mal comer, o que não faz mal comer – e chega. Depois devemos investir a maior parte da nossa atenção no encontro com os outros, que justifica no fundo a nossa vida. Nossa vida nunca vai ser justificada pela solidão. O sentido está em outra pessoa, em outras pessoas.

[pergunta da plateia] Em o remorso de baltazar serapião há uma violência sem fim que a mim, que sou mulher, violentou também. Como você, com toda a beleza que tem e escreve, pode fazer um livro como esse?
Exatamente. É um livro horrível, já ficam avisados. Literariamente, é maravilhoso, obviamente [risos], mas é horrível. Quando assino o livro com mais tempo e calma, sempre dedico dizendo: “para não sei quem, o remorso horroroso dos homens”. Porque é isso que está em causa: a exposição do horror a que os homens votaram às mulheres durante a história inteira. Por isso não tem como não ser horrível. É um protesto contra o machismo medieval que ainda perdura.
Estou convencido – e hoje infelizmente isso é mais verdade do que era no tempo em que escrevi o romance, que sai em 2006 na primeira edição – de que a mulher ainda não está a ocupar um lugar de paz, ainda não alcançou a igualdade. Muito pelo contrário; parece que estamos a regredir. Eu não queria no meu livro criar uma vingança para a mulher porque acho que ela ainda não aconteceu. Não seria justo, seria como mascarar a questão, como inventar uma hipótese que ainda não está aventada.
A vida de algumas mulheres está, digamos assim, redimida: há mulheres que foram aceitas e muitas que serão felizes, mas genericamente as mulheres estão constantemente a ser postas em causa.
É curioso que às vezes eu penso que essa questão do feminino na minha obra, do feminino na vida de um homem, do perfil feminino que um homem possa ter, levante muito prurido. Mas a robustez que se considera típica de um homem, quando encontrada numa mulher, não levanta muito fuzuê. A mulher usando calças continua a ser uma mulher; não tem muita complicação. Um homem a usar saia é muito mais complicado. Isso é nojento. Por quê? Porque isso significa que estabelecemos que o padrão feminino é mau, é errado, é pior. O padrão feminino só serve para a mulher; o padrão masculino serve para a mulher e para o homem – é bom para todos, é universal e define a humanidade.
O padrão feminino é uma coisa postergada para ser utilizada pelas mulheres como se elas fossem um lado mais aberrante ou mais folclórico da humanidade. Isso é muito cansativo. Então, quando vejo uma mulher criticando um gay ou alguém que pinta os lábios, acho muito burro da parte de uma mulher. A mulher devia elogiar e dizer: “esse homem está fazendo com que o padrão feminino seja bom para toda a gente”.
Ela pode não gostar, pode querer um outro tipo de homem. Dizer: “ah, não quero trepar com esse, quero trepar com outro” – provavelmente ele também não quer trepar com ela, por isso essa questão estaria resolvida... Mas, ainda que ela possa ter atração por outro tipo de homem, é muito burro minorizar alguém que possa elogiar as mulheres e o padrão feminino sendo mais feminino em alguma dimensão.

[pergunta da plateia] Nesta onda conservadora que assola o mundo – e estamos vivendo isso bem fortemente no Brasil –, qual a sua perspectiva para a cultura e sobretudo para a literatura?
Eu começo a achar que não são pensamentos conservadores: são pensamentos ridículos.
É mais uma coisa imbecil do que conservadora. A gente conserva um peixe congelado, conserva os livros, os discos – isso é conservar. Mas chamar de conservador alguém que possa diminuir as outras pessoas por aspectos da sua natureza não é ser conservador, é de fato ser um imbecil.
Estou a preparar um texto sobre o racismo. Um dos meus melhores amigos, que faleceu quando eu tinha apenas 26 anos, era mestiço. Era uma pessoa que eu adorava. Eu o conheci quando tinha uns 13 anos, e havia sempre umas situações estranhas, porque na nossa cidade ele era uma raridade. Chamava-se Francisco, eu o chamava de Chiquinho.
Toda vez que íamos a uma papelaria comprar uma revista, um jornal, fosse o que fosse, o idiota do homem fazia uma piadinha para Chiquinho. Eu era muito tímido e tinha medo de tudo, mas eram tantas vezes que aquele homem diminuía o meu amigo que um dia eu disse-lhe: “o Chiquinho é negro e vai ser sempre negro, não tem como deixar de ser negro. Mas um idiota pode deixar de ser idiota”.
Vejo essa onda com perplexidade porque não acho que seja uma questão de convicção ou de lógica política. Acho genuinamente que há uma demência, uma patologia, uma espécie de loucura para que alguém, em 2019, depois de tanta coisa que já se sabe, continue a diminuir as pessoas pela sua cor, pela sua prática sexual, pelo seu gênero. Acho que não é uma opinião, é uma demência que precisa ser tratada por muito psicólogo e psiquiatra. Não há saco.
Eu às vezes digo palavrão… Quando comprei meu apartamento, havia uns vizinhos que fiquei a saber que eram “estranhos”. Uma vizinha veio bater à minha porta dizendo que os “estranhos” que tinham ocupado o apartamento de baixo talvez fossem homossexuais, porque ela tinha ouvido os dois a gemer na noite anterior. E eu perguntei: “doeu no seu cu? É porque, se doeu, você tem um problema mental, uma patologia. Você precisa de um psiquiatra, de um medicamento, até deixar de doer, porque vai ter muito homossexual fazendo isso, gemendo… E, se tiver essa dor cada vez que alguém trepa, você vai ficar arrebentada”.
Não há paciência.

Qual é a palavra brasileira que mais te leva imediatamente ao Brasil?
Durante muito tempo era jacaré – eu adorava. Acho lindo. Gosto do jacaré por causa da palavra, que é solar. Vira um bicho lindo só porque tem o nome lindo. Eu sei que ele provavelmente não iria gostar tanto de mim quando eu dele…
Mas hoje, por causa de muita coisa que aconteceu na minha vida e nas minhas vindas ao Brasil, não há nada que me sensibilize mais do que a palavra borogodó.

Borogodó?
É – porque alguém disse que eu tinha borogodó e eu sabia mais ou menos o que seria… E depois virou uma onda e muita gente começou a me oferecer coisas dizendo borogodó. Eu tenho vários objetos em casa com a palavra borogodó, porque as pessoas ouviram e então virou assim uma expressão que entrou na minha casa.
É muito interessante porque em Portugal as pessoas não entendem. Chegam na minha casa, veem aquilo e pensam que é latim, ou uma expressão erudita que só gente muito cabeça entende – e eu adoro porque fica assim como se fosse. Virou um segredo meu com o Brasil. Uma coisa que ninguém sabe, só nós.

Presente dado ao escritor pela atriz Eloise Yamashita (reprodução do Facebook)

[pergunta da plateia] Amo-te tanto, e toda esta gente o ama também. O que você ama? Fale-nos dos seus amores.
O meu Crisóstomo, o meu cão – eu tenho um cão muito lindo… Mas ele não sabe que é meu, pensa que é da minha mãe. Eu viajo, ela fica cuidando, então na cabeça dele eu sou só um tio. Banco tudo, mas ele também não sabe disso. [risos]
Eu ainda me enterneço muito com a capacidade de as pessoas fazerem algo bom, com a arte, com a generosidade. É aquilo que mais amo.
Eu deixei de fazer isto, porque fiz tantas vezes: antigamente, quando viajava e conhecia alguém – por exemplo, na primeira vez que fui a Paris, encontrei uma moça muito simpática e a gente viu muita coisa junto… Paris é uma cidade inacreditável, uma cidade perfeita, um cenário. Quando voltei para casa, escrevi uma carta para ela e disse: “por mais belos que sejam os lugares, não há nada que supere a beleza de alguém, e você foi a maior beleza que eu vi em Paris”.
Eu escrevia agradecendo às pessoas. E posso vos dizer: por mais belo que seja o Brasil, que tem esta instalação incrível, solar, natural, esta paisagem, estas frutas, aquilo que sempre mais me impressiona na beleza do Brasil são as pessoas, a sua cultura.
Quando penso que sou um pouco brasileiro e que gostaria de ser mais brasileiro ainda, não penso por causa da Baía da Guanabara, ou de um parque ou de uma torre – penso por causa das tantas pessoas que conheço aqui e que me convencem de que vale a pena voltar e vale a pena lembrar este país.

levaria ainda algum tempo até que 
ambos entendessem o que lhes acontecia. 
um tempo no qual teriam de recorrer às palavras, 
mais tarde ou mais cedo necessárias 
para fazer, na verdade, a fundição das pessoas.”
(o apocalipse dos trabalhadores, 2008)


Você vive onde?
Minha casa continua sendo na cidade de Vila do Conde. É a cidade para onde meus pais mudaram quando eu tinha apenas dez anos e eu nunca consegui propriamente mudar dali, porque ali estão minha mãe, meus irmãos, meus sobrinhos, os amigos de sempre, o café onde eu vou todos os dias, onde ninguém gosta de mim, ninguém tem saco pra mim… Essa rede muito íntima e muito antiga é muito importante para mim.
Sempre anseio pela imigração. Penso sempre: “ah, adoraria viver um ano aqui, outro ano ali”… Mas depois volto ali exatamente por causa das pessoas, por causa dessa rede de gente que acaba por me acompanhar, por saber quem eu sou e também não dá importância a nada do que acontece. A gente fica só discutindo como a vida às vezes é chata e outras vezes é tão incrível.

É um lugar que te ajuda a escrever? Você se propõe a escrever em muitos lugares, mas ali é um lugar em que você produz?
Eu acabo por escrever muito ali. Quando preciso fugir, fujo sobretudo para ali. Mas é curioso: é um lugar muito especial porque é um lugar pescatório, pobre. A cidade em si é muio aristocrática, muito nobre, mas eu vivo no bairro dos pescadores, por isso a minha casa foi sempre na parte popular da cidade, onde a urbanização é muito mais desclassificada.
Quando comprei meu apartamento, fiz questão de comprar na parte pobre. Toda a gente perguntava: “mas agora você pode comprar uma casa no Centro, qualquer pessoa vai querer vender uma casa para você”. Eu dizia: “não, eu gosto de passear no Centro, é muito bonito, faço umas fotos, mas quero abrir a minha janela e ver a minha terra de sempre, as pessoas que eu conheço, que eu entendo”. Aquela comunidade, como quase todas as comunidades pescatórias, não tem muita máscara, é tudo muito na cara, para o bem e para o mal.
Eu gosto muito disso, porque as pessoas são logo entendidas. Se dizem uma cosia, acreditam nessa coisa, é o que querem. Se sofrem por alguma coisa, expressam-no imediatamente; se há alguma coisa de bom, também dizem imediatamente, fazem um elogio, e eu entendo isso. É muito importante para mim esse regresso por causa desse respeito, desse conhecimento da qualidade daquelas pessoas.

A impressão é que você está sempre olhando para a gente, para o mundo, ouvindo o que as pessoas falam… Isso se transporta para a sua literatura?
Eu tenho uma memória horrível para muitos fatos e coisas que aconteceram comigo… Mas há qualquer coisa na expressão de algumas pessoas que se inscreve na minha memória que não esqueço. Às vezes lembro de pessoas que estiveram numa plateia três ou quatro anos antes e não falaram comigo, só estiveram olhando, como está muita gente aqui hoje. E eu não fico focando porque seria mal-educado, mas às vezes apetece-me não falar mais nada e ficar só…
Se de repente ninguém olhasse para mim e eu ficasse olhando para vocês um a um, procurando detalhes, coisas esquisitas, eu ia gostar muito. Ia gostar assim que vocês congelassem um pouco, como se fosse aqui uma tela e eu ficasse tentando entender… Olha o cabelo daquela pessoa, a orelha, como ela põe o lenço…
Isso passa para a minha literatura. Às vezes, quando estou a construir situações com os personagens ou quando estou a inventar personagens, na minha cabeça lembro de uma pessoa que há quatro, cinco ou dez anos estava numa plateia e eu não sei quem é, não faço ideia – mas aquela figura, um pequeno gesto, é todo um ambiente, uma pista.

A gente está no Centro de São Paulo, no Sarauzódromo da biblioteca, onde a poesia falada tem espaço, e que homenageia uma grande poeta de São Paulo, a Tula [Tula Pilar Ferreira, falecida em abril de 2019, aos 49 anos]. É bom a gente estar aqui…
Este salão, que eu sei que esteve fechado, esteve cego durante tantos anos e agora está aberto – acho que ele inspira liberdade. Então, numa determinada formulação, liberdade junta com livro. Deveria ser um salão livríssimo, como superlivre, mas também alguma coisa a ver com o livro, porque os livros são para isto: para que nos libertem. Este sarauzódromo, que fica até difícil dizer – gosto mais que seja o salão livríssimo.

Dizem que o Centro de São Paulo é perigoso...
Nunca notei. Devo dizer que nunca tive um problema no Brasil. Ando por todo lado e nunca fui incomodado. Tem gente que olha assim, meio… Mas acho que é uma coisa erótica [risos]. Nunca fico a achar que vão me assaltar. Acho que é porque estou particularmente bonito, penteado… Pentei-me melhor… E, como não sou fácil, então acelero o passo para fugir do assédio sexual.
Mas eu nunca tive um problema. Todo mundo diz: “ah, cuidado, cuidado, cuidado…” A verdade é que talvez eu tenha tido cuidado, mas nunca aconteceu nada.

[pergunta da plateia] O que é perigo para você? O perigo cria a coragem ou a coragem cria o perigo?
As duas coisas podem ser, mas o perigo para mim é quando ele vem ditado por alguém. Quando o medo não é um instinto meu, mas alguma coisa que foi prescrita dos outros para nós – por exemplo, prescrita por um governo.
Este é que é o perigo: quando a gente cai numa cilada de estar nas mãos de um poder que pretende mudar a nossa vida no sentido de piorá-la e no sentido de nos convencer de que o meu inimigo é o meu vizinho. Porque não é. O nosso inimigo não são os nossos pares. Normalmente antagonizamos os nossos pares porque são as únicas pessoas que podemos antagonizar – porque não podemos antagonizar para cima, então o fazemos para o lado, com quem nos é igual, quem na verdade está na mesma merda em que estamos nós.
O perigo é este: começarmos a perseguir uns aos outros, a destruir a vida uns dos outros; destruir a nossa própria vida porque um poder grotesco prescreveu esse medo e esse perigo para nós.


e ela acabou dizendo como devíamos ser felizes 
só por estarmos vivos, que essa era 
a invenção maior de deus, a vida. que antes 
dela não existíamos, éramos como nada, 
ninguém, muito menos que mortos. a vida é que 
nos trouxe aqui e nos deu tudo, nos dá tudo.”
(o nosso reino, 2004)