Paulo Hebmüller
viajantedoinverso.blogspot.com
Cláudia Collucci, Ana Claudia e AnaMi (Foto: reprodução de rede social) |
É
uma paisagem que a maior parte de nós evita encarar, mas que recebe
o inevitável olhar de quem foi chacoalhado mais cedo do que esperava
pelas urgências de um tempo que faz questão de se anunciar finito.
“A
consciência do fim da vida muda tudo”, escreveu a jornalista Ana
Michelle Soares em seu livro Enquanto eu respirar, lançado no
ano passado pela editora Sextante. AnaMi, como é chamada, recebeu
aos 28 anos de idade um diagnóstico de câncer de mama. Aos 32, a
doença voltou com metástases, o que a transformou desde então numa
paciente sem possibilidade de cura em cuidados paliativos.
O
relato que AnaMi faz do que descobriu ao vislumbrar o horizonte da
terminalidade não é um rol de lamentações. Há sim reflexões
sobre dor, medo e sofrimento, mas seu livro fala de saltos em
cachoeira, de perrengues de viagem, de um novo sentido para “Faroeste
caboclo”, do inconformismo com as relações vazias, da riqueza da
troca com quem de fato se importa – de tantas outras coisas e,
jamais por último, da arrebatadora história da amiga Renata, que só
não faz chorar quem perdeu o trem para a Estação Humanidade.
É,
em resumo, uma sucessão de chacoalhadas em quem ainda não prestou
atenção suficiente na paisagem para perceber que o ponto final de
todos é o mesmo.
“Essa,
sim, foi a dor que mais me arrebentou quando descobri a metástase: o
que fiz com meu tempo???!!!”, escreve AnaMi no livro. “Com câncer
ou não, a vida é para ser legal. Se não está, é preciso entender
o que está errado e resolver. Tanta gente saudável que morreu sem
ter vivido, sem ter se amado, sem ter se permitido ser feliz. Tanta
gente doente que, na dor de se descobrir mortal, decidiu buscar a
cura que importa e tem vivido os melhores dias de sua vida. Tem gente
que goza de saúde e precisa de mais cuidados paliativos do que eu.
(…) Ser saudável nem sempre é ser curado.”
No
final do ano passado, AnaMi participou de um bate-papo da série
Diálogos Folha com a médica Ana Claudia Quintana Arantes,
referência em cuidados paliativos no Brasil e autora de A morte é um dia que vale a pena viver e do recém-lançado Histórias
lindas de morrer (ambos também publicados pela Sextante). A
conversa, com mediação da jornalista Cláudia Collucci, da Folha
de S. Paulo, foi realizada no dia 12 de dezembro de 2019 no
Teatro Folha, em São Paulo, à frente de uma plateia lotada na qual
havia muitos (e principalmente muitas) profissionais da área da
saúde.
A
seguir, a incrível conversa das duas Anas:
Cláudia
Collucci – Acho que um tema central do livro da AnaMi é a
forma como profissionais de saúde e a sociedade em geral ainda veem
os cuidados paliativos – muito ligados à visão de terminalidade,
e não como o cuidado que deve ser destinado ao paciente desde o
início do diagnóstico de uma doença incurável, seja ela qual for.
A AnaMi coloca isso de uma forma muito clara no livro e relata em
primeira pessoa como foi a sua reação quando viu a indicação para
tratamento em cuidados paliativos. O que fez você mudar de ideia
sobre a função deles?
AnaMi
– Boa noite, gente. Obrigado por terem vindo debater esse tema
tão simples – que deveria ser tão simples… É uma coisa tão
óbvia: todo mundo merece ser cuidado. A gente não precisaria falar
disso como se fosse um tabu enorme.
Eu
descobri lendo no meu prontuário que tinha o pedido de medicação e
um X no paliativo. Minha primeira impressão foi esta – pode falar
palavrão neste horário? #deu!
Eu
estava de vestidinho vermelho, indo para a balada. Aí você pensa:
como é que posso estar terminal desse jeito? Tem alguma coisa
errada.
E
aí acabei descobrindo tudo sozinha, entendendo o que era isso,
pesquisando no “doctor Google”, porque não tive quem me
contasse. Acho que não precisaria descobrir sozinha uma coisa que
tinha a ver com o meu cuidado.
Cláudia
– Esse tabu tem muito a ver com os profissionais de saúde que
estão cuidando do paciente, que ficam “segurando” esse paciente
quase até o fim antes de encaminhá-lo para os cuidados paliativos…
Ana
Claudia Quintana Arantes – Os cuidados paliativos
são uma abordagem que favorece não só a qualidade da vida da
pessoa, porque você tem a condição de aliviar o sofrimento dela.
Em princípio, os cuidados paliativos não poderiam ser negados: quem
quer dizer “não” a não sofrer? “Ah, eu quero sofrer, eu
prefiro o sofrimento em todas as suas instâncias – física,
emocional, social, familiar, espiritual: eu quero sofrer”. Quem
fala isso está sofrendo mais do que dá conta.
Quando
a gente alivia o sofrimento, o paciente vive mais tempo. É possível
que em breve se torne antiético não oferecer cuidados paliativos
numa fase mais precoce de doença, porque a pessoa que está com uma
doença grave que ameace a continuidade da sua vida quer viver mais –
mas também quer viver bem.
Quando
chego na vida do paciente numa fase muito tardia e ele melhora de um
dia para o outro – porque não é difícil controlar sintomas
quando você tem conhecimento técnico para isso –, a família me
pergunta: “mas por que não chamaram antes? Por que tem que sofrer
três, quatro, cinco anos e só agora se tornou paliativo?”
Há
uma visão bastante problemática porque o tratamento oncológico é
paliativo, mas o paciente não está em cuidados paliativos: está
sob quimioterapia paliativa. E essa quimioterapia paliativa pode
trazer transtornos tão intensos, ou até mais intensos, do que a
própria evolução da doença.
A
gente tem um problema não só cultural, mas de conceito. É preciso
educar.
Cláudia
– Há muita confusão entre tratamento paliativo, quimioterapia
paliativa e os cuidados paliativos…
Ana
Claudia – A ideia é que o paciente que
está em tratamento paliativo não tem objetivo de cura – e pronto,
fica nisso. Mas os cuidados paliativos têm o objetivo de
proporcionar uma vida boa, mesmo que a cura não chegue. Então basta
que exista uma doença que ameace a vida para que o paciente comece o
processo de sofrimento e comece a gestar essa possibilidade de
morrer. De onde ele vai tirar recursos existenciais, biológicos,
familiares, financeiros e espirituais para poder dar conta dessa
luta?
As
pessoas dizem: “ah, não chama o paliativo ainda porque não vamos
desistir!” Mas ninguém está falando em desistir: a gente está
falando em viver. Os pacientes em cuidados paliativos estão vivendo
e têm alcance a uma qualidade de vida muito boa.
O
motivo pelo qual os cuidados paliativos são negados tem a ver com
esse medo de aceitar a morte – é como se você aceitasse a morte e
morresse cinco minutos depois. Pura ilusão.
Eu
digo que não dá azar falar de morte porque falo disso há 25 anos e
não morri ainda. [risos]
Eu
sofria pela questão
do meu tempo: o que eu fiz
com o meu tempo?
Esse foi o meu sofrimento
quando descobri que estava doente –
e o meu tempo não pode
ser tratado com quimioterapia
do meu tempo: o que eu fiz
com o meu tempo?
Esse foi o meu sofrimento
quando descobri que estava doente –
e o meu tempo não pode
ser tratado com quimioterapia
(AnaMi)
Cláudia
– AnaMi, o que mudou desde então? Há quanto tempo você está em
tratamento paliativo? E há um papel muito importante que você tem
desempenhado com as mídias sociais e as suas palestras que é sobre
esse empoderamento do paciente. No livro você coloca muito bem o que
aconteceu com a Renata – as informações eram negadas a ela, a tal
ponto que um dia ela levou um modelo de esqueleto ao consultório e
perguntou onde estavam as metástases, e o médico se negou a
informar. Depois ainda foi dar bronca quando ela deu o salto na
cachoeira em Bonito [MS] porque ela estava com metástase no quadril.
É uma situação meio surreal e muito frequente, não é?
AnaMi
– Estou tratando há cinco anos, mas acho que o pulo do gato foi
justamente que eu entendi que não tinha possibilidade de cura na
quimioterapia – não tenho, estou fazendo um tratamento que sei que
é para estabilizar a doença, evitar que ela progrida ou qualquer
coisa do gênero.
Eu
percebia que o meu sofrimento não tinha a ver com a doença, e é o
que vejo com a maioria das meninas com quem converso e com os
pacientes que me mandam mensagens, não necessariamente pacientes com
câncer, embora eu acabe falando mais com esses pacientes. É muito
difícil as pessoas falarem para mim: “ah, o meu nódulo cresceu”
etc. Não é tanto dos sintomas que elas querem falar, mas sim que a
mãe está triste, que está com problema com o filho, que está
sofrendo preconceito familiar, que a família não quer falar sobre a
doença ou finge que daqui a pouco vai ficar tudo bem.
Eu
entendi então que o sofrimento do tratamento ao qual a gente está
sendo submetida vai muito além da quimioterapia e acho que o
oncologista acaba tendo essa cabeça muito científica apenas. A
gente pode usar a ciência de uma forma consciente – e dentro dessa
consciência não cabe enxergar só o tamanho do meu nódulo, se ele
está crescendo ou diminuindo.
Esse
exemplo que você deu da Renata é o que acontece muito. Quando um
médico quer ver somente o tamanho da doença, se ela está maior ou
menor, só vai te prescrever medicamento. Mas às vezes a dor que a
pessoa está sentindo não vai ser tratada com quimioterapia –
muito pelo contrário, isso pode até intensificar o sofrimento que
ela está sentindo por dentro, que talvez não tenha a ver com o
câncer.
O
meu sofrimento não tinha a ver com o câncer. O câncer foi um
chamado para uma vida diferente. Quem leu o livro sabe tudo o que
passei. Eu sofria pela questão do meu tempo: o que eu fiz com o meu
tempo? Esse foi o meu sofrimento quando descobri que estava doente –
e o meu tempo não pode ser tratado com quimioterapia. Eu não
poderia olhar para um médico que só conseguisse me ver considerando
se o meu nódulo está pequeno ou grande.
Procurei
ajuda de terapeuta, de reiki, de acupuntura… Tudo o que pudesse me
ajudar a não sentir todo esse sofrimento. Eu me cerquei de cuidados
paliativos, embora não tivesse tido o suporte efetivo de uma equipe
de paliativos.
Brinco
no livro que eu e a Renata estávamos fazendo cuidados paliativos em
nós mesmas porque acho que é isso que muitos pacientes acabam tendo
que fazer, já que a gente não tem tantas equipes disponíveis ou os
médicos não foram educados a olhar para aquele paciente e dizer:
olha, de repente você precisa conversar com uma terapeuta ou talvez
você precise conversar com um nutricionista… A gente sofre, tem
sofrimentos físicos que às vezes o oncologista acha que é bobeira,
que é tudo normal.
Fizemos
cuidados paliativos em nós mesmas para reduzir esse sofrimento que a
gente estava sentindo, e foi a grande mudança, porque quando você
está bem – e não falo só fisicamente –, esse é o primeiro
passo. A Renata falava, e até coloquei no livro: “com dor eu não
consigo ser eu”.
Primeiro
acho que é preciso ter a dor física muito bem manejada. Então eu
já não tinha a dor física; nesse ponto estava bem. Era preciso ver
o que a minha alma estava falando, por que eu não estava conseguindo
ficar em paz, e fui atrás de ficar em paz com isso. Hoje eu tenho
suporte de um monte de gente, mas porque fui atrás. Infelizmente não
tive ninguém para me falar: “talvez você precise disso, porque
você está sofrendo”.
Cláudia
– Essa é uma mudança cultural que a gente vai ter que passar,
começando pelos bancos das faculdades de Medicina, porque a gente
percebe que os médicos não têm ideia ainda disso tudo e da
importância de enxergar o paciente de uma maneira mais holística,
não é?
Ana
Claudia – A gente tem uma limitação bastante
severa na universidade em relação a ampliar o olhar médico e
científico para além do conteúdo biológico e entender que isso já
é uma realidade de ciência, e não uma situação misteriosa,
esotérica ou da terapia complementar – todas essas abordagens que
a AnaMi citou estão muito bem embasadas cientificamente. O que falta
é educação.
Numa
situação como hoje, com uma paciente em cuidados paliativos e uma
médica que fala da morte – deve ter gente que está aqui que
quando contou para a família que viria, deve ter ouvido: “vira
essa boca pra lá! Deus me livre!” Você pode dizer isso, mas Deus
não vai te livrar. Vai todo mundo morrer! Você pode não querer
falar sobre isso: beleza, não precisa tocar no assunto, mas você já
vem de fábrica com um aplicativo instalado que uma hora vai ligar e
você vai morrer...
A
questão de educar vem pela conversa. O que está muito bonito nestes
últimos três ou quatro anos – principalmente depois
do TEDx,
que tem sete anos –, é que tenho sido convidada sistematicamente
para falar em faculdades de Medicina. Neste ano [2019], eu dei 115
palestras em faculdade de Medicina, cada uma com uns duzentos,
trezentos alunos… Estou multiplicando a ideia quando eles são
pequenos, quando ainda têm chance de continuar sendo humanos – eu
digo que as pessoas entram humanas na faculdade de Medicina e saem
médicos. E atualmente estão saindo doentes, já pularam a etapa de
sair médicos. A perspectiva de adoecer durante a faculdade é muito
grande. [Dirigindo-se à plateia] Quem é
estudante de Medicina aqui? A primeira vida que você tem que salvar
é a sua. Guarde essa informação.
Esse
processo de mudança e de acesso ao conhecimento está partindo dos
estudantes, então está lindo… Eu dei uma palestra em
Florianópolis, com 750 alunos, um lugar imenso, e depois uma aluna
que tinha organizado me disse: “doutora Ana, tinha vários
professores lá e eles estavam muito incomodados com o que você
disse”. Eu falei: descobre o que incomodou que eu vou repetir em
todas as palestras.
Cláudia
– E o que era?
Ana
Claudia – Que os médicos não veem os pacientes,
não olham os pacientes nos olhos, não respeitam o que o paciente
traz para a consulta… O médico sempre faz as perguntas voltadas
para o próprio interessem em relação às condutas que tem que
tomar, mas a agenda do paciente é outra. A agenda do paciente não é
o tamanho do nódulo, mas é se a mãe está lidando bem com o
processo ou não.
A
não escuta e a prática de colocar a dor como um processo normal –
é esperado ter dor, mas não é normal. Se é esperado,
preciso me preparar para ela. Se vou esperar você na minha casa,
preciso me preparar para te receber.
Temos
baixo acesso ao tratamento de dor de qualidade. Eu digo que no Brasil
as pessoas não morrem de câncer: morrem de dor, porque, na fase
final da doença, de 70% a 90% podem ter dor intensa, que se trata
com morfina. “Ah, mas Deus me livre da morfina!”, dizem. Não,
Deus te livre da dor!
E
a gente tem a morfina para usar, mas os médicos não aprendem. Eu
fiz USP e não tive cinco minutos de aula de como usar morfina. A
perspectiva é: se você tratar a doença, a dor passa. É isso o que
aprendi – então o paciente tem que morrer de dor?
O
conteúdo do acesso à informação tem que ser incansável. É como
o trabalho doméstico: você acabou de lavar a louça e a pia está
cheia de novo.
Falo
para todo mundo: não desiste. A gente está conseguindo mudar. Está
aumentando o número de faculdades que têm a disciplina de cuidados
paliativos, a sociedade está mudando... Não é à-toa que o
auditório está cheio.
Você
pode não querer falar
sobre a morte: beleza, não precisa
tocar no assunto, mas você
já vem de fábrica com um
aplicativo instalado que
uma hora vai ligar e você vai morrer
sobre a morte: beleza, não precisa
tocar no assunto, mas você
já vem de fábrica com um
aplicativo instalado que
uma hora vai ligar e você vai morrer
(Ana Claudia)
Cláudia
– E lotou no primeiro dia de inscrição…
Ana
Claudia – Antes eu falava para cinco pessoas, e eram
cinco pessoas que tinham sofrido muito – profissionais de saúde,
técnicos de enfermagem, que estão entre os que mais sofrem, porque
às vezes se indica sedação para o paciente que está lúcido e a
família diz: “seda, porque eu não aguento ver minha mãe assim”.
Está na legenda: “eu não aguento ver minha mãe assim”. Então
quem precisa de alívio do sofrimento é a filha. Tem que cuidar do
sofrimento, não eliminar o sofredor.
Você
tem que entender português: “eu não aguento ver o sofrimento da
minha mãe”. Então vamos sedar a sua mãe? Não, vamos cuidar do
seu sofrimento, vamos te ajudar a estar do lado dela num espaço em
que você permita o protagonismo dela. Não é o seu sofrimento que
está valendo, é o dela – mas você se preocupa. É uma construção
do dia a dia, na conversa de casa, depois do jantar: “ah, hoje eu
fui numa conversa no teatro, ouvi uma história, falaram sobre
isso...” Tem que falar. Quando você fala, é como se acendesse a
luz do quarto. Não tem fantasma.
Cláudia
– Muito dessa mudança dos médicos vem da cobrança dos pacientes,
não é? Você relata alguns casos e acho que isso tende a se
popularizar mais – e o papel do seu livro nessa questão é
fundamental.
AnaMi
– Eu sou paciente há oito anos – com metástase há cinco, mas
estou nessa vida muito louca oncológica desde 2011. Desde então eu
participo de grupos por conta da questão da mulher e do câncer de
mama… Há uma coisa de sororidade, nos reunimos, temos um espaço
de diálogo.
O
que acontece é que, quando a gente vira paciente, é como se
perdesse a autonomia. De repente, todos decidem tudo por você: é o
seu marido decidindo como vai ser o seu tratamento, onde você vai
morar, quem vai cuidar de você etc. De repente o médico decide se
vai tirar o seu peito assim ou assado, qual medicação vai usar… É
tudo muito passivo, você só fica lá dizendo ok, tá bom.
Na
metástase eu já vi uma mudança, algumas pacientes questionavam
algumas coisas. Especialmente quando entendi que meu tratamento não
tinha mais esse propósito curativo, tive que chegar para o meu
médico e falar: ó, é nóis agora aqui. Eu
preciso estar nessa decisão também, porque ela diz respeito à
minha vida. Nunca deixei que se criasse essa barreira.
Nem
contei isto no livro, porque não parecia relevante naquele momento,
mas até hoje não sei como é a cara da primeira oncologista em que
fui, porque ela não saiu de trás da tela do computador – e era a
primeira vez que eu encontrava uma oncologista. Eu já tinha feito a
cirurgia, tinha tirado o meu peito e tinha muitas perguntas para
fazer. Mas ela só preencheu a papelada de pedido de exame e falou:
“vai fazer quimio sim”. Aí eu: ah, tá. Não conseguia nem ousar
fazer qualquer pergunta do tipo: qual quimio? Vai ser a vermelha? –
porque a gente tem medo da quimio vermelha… Levantei para ir embora
cheia de perguntas que não consegui fazer, que ficaram engasgadas.
Você fica com vergonha de querer fazer perguntas que parecem
idiotas, e aí ela falou: “antes que você pergunte, vai cair o seu
cabelo”. Eu nem estava pensando nisso. Queria saber se eu ficar
viva, de que cor era a quimio… Coisas que pareciam mais
importantes.
Muitos
profissionais de saúde julgam o paciente. Isso é
contratransferência: você pega os seus valores e tentar resolver a
vida da pessoa ou já decidiu o que ela está pensando ou deixando de
pensar, o que é bom para ela ou não. Vejo que os médicos fazem
isso com um monte de gente.
Eu
entrei nessa vida de me expor porque comecei a me incomodar com isso
de ouvir histórias que me pareciam muito surreais – tipo uma
pessoa deixar de ir em festa de família porque o médico disse que
não era legal porque a imunidade está baixa. Pelo amor de Deus, eu
sou paciente, sei que é só aplicar um granulokine… Tem jeito, tem
o que fazer! Você vai tirar dessa pessoa a possibilidade de fazer o
que tem a ver com a vida – a vida é sobre isso, sobre as relações,
sobre os eventos aos quais você vai, as experiências que você tem…
Então, de repente, um médico tira isso de você. O que ele está
tratando? Para onde ele está olhando? Ele está olhando mesmo para a
pessoa? Acho que não.
Escrevendo
sobre isso, eu quis dar ferramentas para essas pacientes. Elas
levantam uma anteninha, anotam e vão perguntar: “ah, então,
aquela menina lá do Instagram, ela fez não sei o que, ela
viajou...”
Hoje
eu recebo muitas mensagens de médicos para me contar como é o
comportamento das pacientes. No começo, o povo virava o olho para
mim porque eu escolhi o nome PaliAtivas – tão provocativo – e
agora elas dizem que são paliativas, que entendem o que isso
significa. Chegam no consultório e falam: “eu sou paliativa, né,
doutor?” Aí o médico fica lá tipo: “ai, meu Deus…” Olha
que louco: é o paciente que está fazendo a comunicação de más
notícias agora!
No
final isso é uma ironia porque eles me escrevem para falar:
“obrigado, você me ajudou” Eu falo: meu querido, você já tinha
que saber fazer isso! Não era para a paciente ter que te ensinar,
entendeu?
Inclusive,
se vocês quiserem, eu sei fazer resgate de morfina, porque aprendi
recentemente. Então, já que não tem aula na USP, me contratem…
Enfim,
estou brincando porque são coisas tão óbvias que não entendo como
alguém entra numa faculdade com o objetivo de cuidar de uma pessoa e
sai com o objetivo só de curar… Isso vai dar um supercurrículo,
porque aí ele vai poder ostentar aquela
“sobrevivente-maravilhosa-guerreira”. Quem não tem essa
possibilidade é um fracasso, não vale a pena. O médico da Renata
tinha essa visão.
Cláudia
– Meio que abandona o paciente?
AnaMi
– Abandona mesmo, porque não é a história de sucesso que ele vai
poder colocar no currículo e contar nas palestras. Essas são as
histórias que não entram nas palestras – só nas palestras da
doutora Ana Claudia [risos], porque ela entende o que é a
biografia.
E,
sobre os pacientes, sempre que vejo uma roda eles comentam: “ah,
quando fui diagnosticado, fui na internet procurar alguém que
estivesse vivo e, nossa, só encontrava gente que morreu”. E eu
falava: e você olhou como foi a vida da pessoa? Porque fica assim:
“ah, que horrível, morreu, não quero saber da vida dessa pessoa”.
Aí se transforma o morrer em fracasso – você fracassou porque
morreu. Não quero ler essa história porque acaba com “ela
morreu”.
A
história de todo mundo vai acabar assim, queria dar esse spoiler
agora…
Olha
a história da Renata, por exemplo: vai ser só a história da menina
que morreu? Ninguém está preocupado – nem o paciente – em olhar
o quanto essa menina viveu? As coisas que ela viveu? A vida incrível
que ela teve? Foram 38 muito bem vividos, obrigada. Desses 38, três
com metástase, muito bem vividos, obrigada.
As
pessoas precisam aprender a olhar para isso e não para o morreu, não
serve mais para eu contar a história.
Cláudia
– Perguntas que estão chegando da plateia: cuidado paliativo é um
nome errado? Não seria correto dar o nome de cuidados de vida? Esses
cuidados de vida devem ser dados não só a doentes terminais, mas
para todas as doenças crônicas como suporte para saber viver? E
qual a diferença entre cuidado integrativo complementar e paliativo?
Ana
Claudia – Paliativo vem de pálio, do latim
pallium. Era um manto, um cobertor, que podia ser usado para
proteger das intempéries os cavaleiros. Isso é perfeito para o que
a gente faz: a gente protege das intempéries da evolução de uma
doença e do seu tratamento.
Sabe
o que intempérie? É tipo: choveu, dançou. Alguém fala: “puxa, o
que podemos fazer para evitar chover?” Isso não existe. Chove, e
aí você tem que se proteger, tem que usar um guarda-chuva ou uma
capa, senão vai se molhar.
Os
cuidados paliativos são cuidados de proteção. Mas há uma neura em
mudar o nome. Há equipes que mudaram o nome, mas isso dura de quatro
a cinco meses, até que as pessoas descubram o que é aquele cuidado.
Então pode ser cuidado de suporte, cuidado de conforto, integrativo,
continuado, integrado, complementar, especial… Enfim, tudo isso
para tentar disfarçar ou maquiar o que é feito.
Eu
entro sem filtro: sou paliativista, faço cuidados paliativos. Alguém
pode dizer: “ah, mas se você falar assim a pessoa não vai
querer”. Azar dela. Não quer viver bem, quer sofrer, é uma
escolha…
Não
adianta colocar uma maquiagem no nome e não saber o que você faz.
Penso que os paliativistas que buscam mudar o nome precisam fazer
terapia para ter uma porta, um horizonte em relação a si mesmos.
Decidi
fazer geriatria quando pegava mal fazer isso. Me perguntavam: “não
é melhor você falar que faz clínica médica especializada em
idoso?” Não, bem, eu sou geriatra. Eu sei o que faço e sei o que
isso traz de benefício para as pessoas de quem eu cuido.
Não
acho que tem que mudar de nome. Acho que a gente tem que trabalhar
nesse processo cultural de conversar e falar, e não dizer o que não
é. Por exemplo: não pense em elefante branco. O que tem na cabeça
de vocês agora? O “não” não é um registro adequado. A gente
tem que falar o que é.
Paliativo,
na verdade, como diz um amigo, o Leonardo Consolim, é só um
sobrenome. O que a gente faz é cuidar. Quer que cuide? Sim? Então
são cuidados paliativos. Não é nenhum problema, não tem nada de
errado. Estamos vivendo um processo de transição. A sociedade está
aceitando isso muito melhor do que os profissionais de saúde,
especialmente os médicos.
Acredito
que no futuro próximo vamos viver isto: por exemplo, você é um
oncologista e vai atender a Ana Michelle. Então você sai de trás
do computador e fala: “Ana Michelle, você vai precisar realmente
fazer quimioterapia para complementar o tratamento da sua cirurgia.
Eu gostaria que você passasse em consulta com a doutora Ana Claudia,
que trabalha comigo. Ela me ajuda muito, porque vai promover uma
condição muito boa para você dar conta do tratamento, porque eu
vou dar a vermelha mesmo. O nosso objetivo é resolver a sua questão
com o câncer. A gente vai usar um tratamento potente, e a doutora
Ana Claudia me ajuda muito em fazer com que a sua vida seja muito boa
apesar da intensidade do tratamento”.
Você
tem que saber apresentar os cuidados paliativos. Tem que acreditar no
processo. Este é o meu trabalho: é ajudar o oncologista a superar
as próprias expectativas de resultado. Se ele só bater e ninguém
ajudar a levantar, o jogo acaba rápido.
Cláudia
– E você sentiu isso na pele, né, AnaMi?
AnaMi
– Literalmente isso. Está acontecendo agora um supercongresso de
câncer de mama em San Antonio [EUA], os médicos estão aprendendo
um monte de tratamentos, coisas incríveis, maravilhosas, e fico
pensando: será que tem uma sala de manejo para o efeito colateral?
Porque eles acabam não aprendendo isso. Só querem saber a sigla do
negócio ou como faz a prescrição, e aí acho que é incompleto.
Então,
já que o médico não tem ou não consegue manejar todas essas
esferas de sofrimento, que tenha alguém que o faça. Que o médico
fale: “eu não dou conta, eu preciso de ajuda”, e que o paciente
não precise correr atrás dessa ajuda sozinho.
Cláudia
– Nem todos aqui já leram o seu livro e conhecem a história da
Renata. Você pode dar uma resumida?
AnaMi
– A Renata descobriu o câncer metastático junto comigo. A gente
se conheceu nas redes sociais e fomos nos acompanhando. Eu tenho hoje
um oncologista que me dá um suporte surreal. Se ficar um minuto
comigo, vai ser um minuto em que ele vai prestar atenção em
absolutamente tudo o que estou falando, fazendo ou dando de demanda
naquele momento. Mas a Renata não teve isso. Ela perguntou para o
primeiro oncologista quantos anos de vida teria. E ele respondeu: “eu
não diria nem anos”. Então já foi tudo muito esquisito …
Independentemente de ela ter apenas meses… Há muitas formas de
dizer, e a bola de cristal dele estava muito esquisita.
Aí
ela foi pulando de oncologista para oncologista até chegar nesse
médico que no livro eu chamo de Dr. C. Ele tem uma filosofia e
acredito que dê muitas palestras sobre isso, o que me deixa muito
preocupada. Ele deve falar assim: “eu sou muito legal porque eu
deixo as minhas pacientes viverem. Elas não precisam saber nada do
que estão fazendo, não têm que saber nome de medicação, têm só
que viver”. Ele deve dar um monte de palestras sobre qualidade de
vida, só que não olha para as vidas que estão na frente dele,
porque ele já decidiu como tem que ser essa vida. Só ele sabe, só
ele prescreve, só ele é o detentor dos segredos do universo.
Ele
não ouvia a Renata e ela acabou sendo politratada num nível surreal
de emendar uma quimio na outra sem nem dar tempo de saber o que
estava fazendo efeito ou não. Ele não pedia exame porque precisava
economizar para o convênio – estava onerando muito, já que ela
era paciente metastática, com a doença sistemática, então tem
exame “que não precisa fazer”… E o convênio dela era bom.
Então, ele trocava de medicação. Paralelamente, meu médico diz:
“a gente está no jogo porque você tem pouca doença. Vamos tentar
manter assim porque fica mais fácil de tratar”.
A
gente se acompanhou em todo esse processo. A doença dela acabou
evoluindo muito rápido, não só por toda essa negligência, mas
porque era o histórico da biologia, dos fatos da doença, e ela
viveu três anos e meio.
Eu
acompanhei o processo de finitude dela. O que me motivou a escrever o
livro são as conversas que a gente tinha. A gente teve uma amizade
muito diferente das convencionais. As pessoas conversam sobre a
balada e eu e a Renata conversávamos sobre a morte.
Isso
parece esquisito, mas foram as conversas que mais transformaram a
minha vida e a dela. Quando entende que não é imortal, a gente tem
uma urgência muito diferente. Foram conversas muito transformadoras
desde os nossos primeiros encontros até a sedação dela. Ela
escolheu o momento em que queria ir embora – não vou ficar dando
spoiler porque senão ninguém vai ler o livro.
Isso
era muito legal isso porque a gente ressignificou o tempo que
tínhamos. Esse é um exercício que toda pessoa saudável deveria
fazer. A vida tem muito mais sentido quando você descobre que ela
acaba e que todo tempo precisa ser único.
Para
nós, foram três anos e meio de amizade em que todo dia era único.
Cada áudio era importante porque podia ser o último, até que foi o
último mesmo. Às vezes eu o ouço e vejo só amor naquilo.
Poder
estar perto das pessoas de que você gosta até o último suspiro delas
é lindo. Vale a pena. Então não tenham medo de falar sobre a morte
e de estar perto das pessoas que estão indo embora.
Eu
entrei nessa vida de me expor
porque comecei a me incomodar
com histórias que me
pareciam muito surreais – tipo uma pessoa
deixar de ir em festa de família
porque o médico disse que não era
legal porque a imunidade está baixa.
Pelo amor de Deus… Você vai tirar
dessa pessoa a possibilidade
de fazer o que tem a ver
com a vida – a vida é sobre isso,
sobre as relações e as experiências
que você tem… Então um médico tira
isso de você. Ele está olhando mesmo
para a pessoa? Acho que não
porque comecei a me incomodar
com histórias que me
pareciam muito surreais – tipo uma pessoa
deixar de ir em festa de família
porque o médico disse que não era
legal porque a imunidade está baixa.
Pelo amor de Deus… Você vai tirar
dessa pessoa a possibilidade
de fazer o que tem a ver
com a vida – a vida é sobre isso,
sobre as relações e as experiências
que você tem… Então um médico tira
isso de você. Ele está olhando mesmo
para a pessoa? Acho que não
(AnaMi)
Cláudia
– Você chegou a fazer curso de cuidados paliativos. Foi como
ouvinte? Você pretende atuar na área?
AnaMi
– Foi como xereta mesmo… Na verdade, converso muito com pacientes
e, depois da Renata, acompanho alguns processos. Eu fui cuidadora
dela e cuidei com instinto mesmo. Fiquei muito feliz porque fiz o
curso, via todo mundo ensinado como se faz e dizia: caramba, eu fiz
tudo isso! Quando está ali numa entrega de sentimento mesmo, você
enxerga a pessoa.
Consegui
fazer algumas coisas naquele processo difícil dela, mas eu me
preocupava porque virei uma referência numa área em que não sabia
profundamente como funcionava o outro lado. Eu vi acontecendo com a
Renata os cuidados paliativos exclusivos, que é o que acontece mais
na terminalidade, mas não sabia responder o porquê de tudo aquilo,
e comecei a ter essa demanda de pessoas me perguntando sobre isso, de
pacientes tendo a necessidade de saber como é, o que acontece.
E
a pergunta que o médico não responde: “eu estou morrendo?” –
eu queria saber responder a essa pergunta, não em termos de prazo,
mas sim no que eu falo para essa pessoa para não atrapalhar o
processo dela.
Fiz
o curso na Casa do Cuidar porque não queria falar besteira. Acho que
esta é uma preocupação que todo cuidador e todo profissional de
saúde deveria ter: só fazer o que realmente sabe ou o que sente que
é realmente necessário, não ficar nadando no raso e achando que
está abafando.
Mas
não vou atuar, naturalmente. Eu sou jornalista de formação, meu
negócio é escrever mesmo, e meu negócio é olhar no olho das
pessoas que de repente estão precisando de qualquer palavra ou de
qualquer silêncio. Eu queria saber fazer esse silêncio direitinho.
Cláudia
– E agora, depois que passou pelo curso, o que você responde
quando alguém te pergunta se está morrendo?
AnaMi
– O que você acha?
Cláudia
– Eu não sei, não teria essa resposta…
AnaMi
– Quando a pessoa está no processo, ela dá uma outra resposta:
“eu acho que está difícil… Mas agora você está viva. Eu não
estou fazendo psicografia, não sou médium, estou conversando com
uma pessoa viva. E aí, o que dá para fazer ainda?”
Com
a Renata, eu tinha essas conversas loucas… A gente combinou até
como ia ser a nossa comunicação depois, porque eu a contratei para
ser a fantasma que ia agir em meu benefício [risos].
Você imagina o que é ter uma amiga invisível que atravessa
paredes? É demais… Quando você abre a porta para isso, essas
viram as melhores conversas da vida.
E
as pessoas querem conversar. É tanto tabu que fica aquela coisa
esquisita, um ar pesado, e a pessoa está lá – “ah, meu Deus, o
povo acha que eu sou trouxa…”
Quando
entro num quarto, na maioria das vezes eu não conheço a pessoa, mas
ela me conhece – “ah, a menina do Instagram”. Eu chego e falo
apenas: me conta tudo. Quero saber tudo! E elas contam. E isso
resolve todos os problemas, pelo menos ali naquele momento.
O
que posso oferecer hoje, e que tenho muito prazer em oferecer, é a
minha escuta.
Cláudia
– Há uma questão aqui sobre cuidados
paliativos domiciliares. Os
médicos ainda não conseguem fazer a desospitalização
por várias razões, falta de conhecimento etc…
Como iniciar a mudança de visão na equipe?
Ana
Claudia – Uma pesquisa de opinião feita nos Estados Unidos há
muitos anos perguntou onde as pessoas queriam morrer, e mais de 90%
responderam que queriam morrer em casa. A percepção de morrer em
casa traz uma noção de humanidade muito forte, porque você quer
morrer naquele espaço do qual você faz parte. Morrer no hospital é
uma condição atual, que foi muito deturpada. Na pesquisa, 90%
queriam morrer em casa, mas 90% morriam no hospital. Por quê? Na
hora em que estava morrendo, achava-se que era uma coisa aguda que
poderia ter reversão. Então se levava para o hospital.
Quando
você vai cuidar de uma pessoa em casa, tem que ter clareza de que a
necessidade de recursos é inversamente
proporcional à complexidade humana do processo. Você não está
numa UTI, não tem aparelhos, não tem alta tecnologia, então maior
é a complexidade humana do processo do cuidado, porque você tem que
trazer para aquela família a segurança de que tudo o que for
necessário está acessível e de forma rápida, porque a pessoa que
está morrendo não tem tempo a perder. Imagina São Paulo numa
sexta-feira à noite com chuva… Tem que ter tudo o que é
necessário para a pessoa ficar confortável na casa dela.
O
que acontecia? Não haver o planejamento do cuidado. A maioria das
pessoas fazendo cuidados paliativos em casa são bombeiros, só
apagam incêndio. Não pode ser assim. Quem faz cuidados paliativos
em casa tem que ter total conhecimento de formação avançada em
cuidados paliativos. “Ah, morrer em casa é lindo” – não é. A
morte é um dia que vale a pena viver, porém muitas vezes não vale
a pena assistir, principalmente quando não se sabe o que fazer com
essa questão.
Então,
quem quer fazer cuidados paliativos domiciliares tem que ter muita
formação. O que acontece hoje? O cara que acabou de se formar e
quer ganhar uma grana a mais vai fazer cuidados domiciliares, a
enfermeira que não se encaixa em nenhum lugar vai fazer, a psicóloga
maluca vai fazer… Aí você vê a família numa baita encrenca,
porque as pessoas começam a fazer a contratransferência: o que ela
iria querer no seu lugar. Não pode se assim.
A
formação está acessível no país. Agora há muitos cursos –
aqui em São Paulo tem a Casa do Cuidar, onde a AnaMi fez como
ouvinte. Essa formação, que ensina a ter escuta, a usar morfina, a
entender o sofrimento de uma filha que fala “eu não aguento ver
minha mãe ou meu pai desse jeito”, é algo que coloca você no
centro da sua condição, que é a de quem cuida, não a de quem
ocupa o lugar de quem sofre.
De
novo, o único caminho para isso é a educação. É preciso saber o
que fazer, porque o paciente não morre dez vezes, de forma diferente
em cada uma. Ele morre uma vez só. Se você fizer malfeito, fica
para sempre marcado naquela família. Muitas vezes a família é
capaz de superar o luto, mas não é capaz de superar uma palavra mal
utilizada pelo profissional de saúde.
Cláudia
– AnaMi, várias perguntas para você: como foi a reação da sua
família por você ter falado tão abertamente sobre paliatividade,
sobre a sua própria terminalidade? Uma enfermeira da Educação
Continuada do Instituto do Câncer de São Paulo (Icesp) que dá aula
sobre cuidados paliativos para os recém-admitidos na instituição –
técnicos, enfermeiros etc. – pergunta: o que você gostaria que eu
passasse de mensagem para esses profissionais?
AnaMi
– Primeiro, que eles acompanhem efetivamente os pacientes. Neste
ano fui internada duas vezes num hospital bacaninha aqui de São
Paulo, que tem até curso de cuidados paliativos... Aí você pensa:
nossa, agora vou arrasar lá dentro, sou a PaliAtiva, vou ser
atendida pelos paliativistas todos… Não foi nenhum, minha filha!
Fiquei lá flopada no meu quarto… Falei para pessoas diferentes que
queria cuidados paliativos. Me diziam que não, que eu não
precisava. Eu dizia: sou uma paciente em cuidados paliativos, então
quero a equipe. “Ah, mas não tem indicação”. Mas a indicação
é qual?, eu perguntava. Porque essa é a minha condição, minha
família está aqui à disposição de vocês para a gente começar
esse relacionamento. Estou internando por causa de uma neutropenia, é
um ótimo momento para a gente começar um relacionamento. Eu queria
conhecer a equipe, a psicóloga, de repente já fazer um vínculo.
Mas o hospital decidiu que não era o momento.
As
equipes já criam uma burocracia e acho que ninguém está lá
lutando pelo paciente; talvez um fique com medo de atropelar o samba
do outro… É tanta burocracia e tanta briga que acabam esquecendo
da gente lá no quarto pedindo ajuda.
Eu
diria: que pelo menos chegue alguém. Vocês têm que chegar desde o
diagnóstico: esse é o momento. Muita gente não tem a habilidade
que teve a doutora Claudia
Inhaia, que cuidou da Renata e
conseguiu criar um vínculo com ela em cinco minutos – mas porque a
Renata entendia o que estava acontecendo e a gente tinha passado três
anos falando sobre cuidados paliativos.
Se
vocês tiverem a oportunidade de entrar na vida dos pacientes antes,
entrem. Lutem por isso, porque vale a pena. Vai facilitar o trabalho
e vocês realmente vão estar salvando a vida e a biografia desses
pacientes.
Poder
estar perto das pessoas
de que você gosta até o último suspiro delas
é lindo. Vale a pena. Então não tenham medo
de falar sobre a morte e de estar perto
das pessoas que estão indo embora
de que você gosta até o último suspiro delas
é lindo. Vale a pena. Então não tenham medo
de falar sobre a morte e de estar perto
das pessoas que estão indo embora
(AnaMi)
Cláudia
– E como foi falar com a família sobre essas questões?
AnaMi
– Então, eles são de boa, né? A minha mãe é minha cuidadora,
acompanhante, ela é tipo a quarta PaliAtiva, porque a terceira é a
mãe da Renata, que acompanhava tudo. Minha mãe me acompanha em
quase tudo, ela assiste a todas as entrevistas, ela lê tudo o que eu
posto… Eles foram sendo educados sem eu precisar falar tanto, sem
precisar fazer uma coisa superformal do tipo: oi, gente, tudo bem? Eu
estou morrendo, vocês querem me falar alguma coisa? Não preciso
ficar falando isso para o meu pai toda hora.
Eu
criei um ambiente em que todo mundo entende o que tenho e todo mundo
respeita o meu espaço. Quando quero falar eu falo, quando estou em
silêncio todo mundo respeita o meu silêncio e está tudo bem.
Cada
um está administrando de um jeito. Mas tem uma coisa também: eu não
vou administrar o problema das pessoas. Cabe a cada um absorver. Eu
já tenho o meu próprio problema para administrar. Sou muito
tranquila com o que eu tenho, mas não tento salvar todo mundo,
salvar o sofrimento da minha mãe, do meu pai, da minha irmã. Se
eles querem me falar alguma coisa, estou aqui à disposição para
ouvir. Acho que há falas que magoam, que não são necessárias.
AnaMi e Ana Claudia no lançamento de "Enquanto eu respirar" (Foto: Editora Sextante) |
Cláudia
– Qual a pior coisa que uma pessoa pode comentar, perguntar
ou falar para um paciente oncológico?
AnaMi
– Menina, aí eu ia precisar de mais três horas aqui… [risos]
Ana
Claudia – Dá pra gente montar um curso: “o que
não falar”…
AnaMi
– Eu falei para a Ana Claudia que a gente ia criar um curso de
cuidados paliativos para oncologistas com ordem formal de
reencarnação… [risos]
Gosto
que as pessoas falem comigo e não acredito que alguém saia de casa
pensando assim: “hoje vou magoar o paciente oncológico”; “minha
meta para este dia é falar uma coisa escrota para alguém que está
sofrendo”.
Não
gosto de pensar que fazem isso porque querem fazer, mas as pessoas
têm tabus na cabeça, como a história do “vencedor” e do
“perdedor”. Sempre que um paciente está em cuidados paliativos,
sem possibilidade de cura, como é o meu caso, a outra pessoa fica
insistindo que o problema é comigo, que eu preciso ter mais fé ou
que preciso procurar outro médico, porque esse “não está
conseguindo”, ou que preciso procurar tal igreja ou qualquer outra
coisa, uma planta… Se eu fosse tomar tudo o que já me indicaram…
É muita coisa que as pessoas acham, e entendo que por trás dessa
fala há um desejo de ajudar por não saber o que fazer.
Se
você me der uma dica dessas e eu te falar obrigada, tá bom, é o
que posso te oferecer nesse momento Não me cobre porque eu não fui
atrás da pilula mágica que cura o câncer, porque aí a pessoa fica
com aquilo: “ah, ela não se curou porque não quer; eu já falei,
era só tomar a pílula”.
Todo
mundo tem uma receita muito pronta e diz que existe engavetada em
algum lugar a cura do câncer e que eu preciso brigar para que
desengavetem o negócio. É como se eu tivesse a possibilidade
absoluta de descobrir, porque é fácil, a indústria é que está
escondendo. Ok, tem toda a teoria da conspiração, não vou entrar
nesse mérito – mas no que isso me ajuda, meu querido?
O
discurso da fé é muito complicado, e eu vivi isso dentro da minha
casa, que é uma torre de babel religiosa. Meu pai é evangélico,
minha mãe é tudo e mais um pouco – bruxa, tudo –, minha irmã é
católica, largou tudo para ser missionária, e eu sou xamânica. E
aí cada um tem o seu sagrado que está lá, e é muito melhor do que
o meu… O seu sagrado vai me curar, o meu não.
Cada
pessoa tem a verdade absoluta e quer que você entre nessa verdade –
que é só dela.
Então,
não tente colocar para o paciente a sua verdade absoluta, porque é
obvio que a gente quer se curar, que a gente quer ficar bem, mas
talvez não vá ser na sua igreja, vai ser na minha. Ou vai ser em
nenhuma, mas onde eu estou em paz. Não gosto muito dessa coisa
religiosa.
Minimizar
o sofrimento também acontece bastante. Quando se é mulher,
principalmente, todo o nosso sofrimento é transformado em estética,
porque o cabelo cai, a gente engorda e emagrece. Se estou gorda é
porque estou saudável; magra, estou doente. Sempre está faltando
alguma coisa em mim, e isso é muito complicado porque é só uma
aparência. Não reduza qualquer coisa que eu esteja sentindo à
aparência que eu apresento.
A
pessoa que me encontra hoje na rua não vai imaginar que faço
quimioterapia todo dia de manhã, que faço um monte de radioterapia,
que tenho os efeitos colaterais mais insanos que um ser humano pode
aguentar – e a doutora Ana Claudia já acompanhou esses processos.
Mas se estou bem vestida ou tenho cabelo comprido, então não estou
sofrendo porque estou bonita. A gente acaba fazendo isso com o
paciente, reduzindo-o a uma estética. Não reduza ou minimize o
sofrimento de ninguém, mas principalmente de paciente oncológico.
Vou
dar uma dica – pergunte: “como você está?” E esteja lá para
ouvir a resposta, independentemente de qual for, porque aí você vai
saber o que a pessoa está sentindo e não vai precisar deduzir com
base no que você está vendo.
Cláudia
– Há uma pergunta sobre a abordagem de cuidados
paliativos não oncológicos, principalmente em idosos demenciados: a
literatura é tão deficiente que é difícil estudar o tema.
Ana
Claudia – A literatura não é deficiente: é pouca, mas é
suficiente para se ter acesso a esse conhecimento. Na indicação de
cuidados paliativos de paciente demenciado, tem um monte de gente que
fala bobagens homéricas, do tipo: “ah, não tem parâmetro”.
Como não tem parâmetro? É porque a pessoa não procurou estudar. A
indicação de cuidados paliativos é no diagnóstico de qualquer
doença que ameace a continuidade da vida. As pessoas não morrem de
pneumonia aspirativa; morrem de demência.
O
paciente com demência e o oncológico perdem a autonomia na primeira
consulta. Ninguém pergunta para eles o que eles querem, ninguém
fala com eles. Uma vez fui atender uma senhora, comecei a examiná-la
e a filha não parava de chorar. Eu falei: mas o que aconteceu? Ela
respondeu: “faz mais de um ano no que a gente vai em médico e
nunca ninguém pôs a mão na minha mãe” – e não era paciente
SUS. A família tem até medo de dizer que a pessoa tem diagnóstico
de Alzheimer, porque a partir daí o médico não olha mais para o
paciente.
Você
tem que se direcionar para o paciente porque às vezes ele está
online e você não pode pagar o mico de perder a chance de se
comunicar quando ele está conectado. As conversas que tenho com
pacientes demenciados são surreais. Por quê? Porque eu falo com
eles. Não tem nenhum mistério nisso. Olho nos olhos e pergunto: e
aí, como você está hoje? Aí eles quase olham pra trás, depois
voltam: “é comigo que você está falando?” Porque ninguém fala
com eles.
Os
cuidados paliativos em primeiro lugar reconhecem que existe uma
pessoa ali. Ela está encoberta por uma doença degenerativa
neurológica e não sabe mais a sua história – mas você que é da
família sabe. As pessoas falam: “ah, meu pai já morreu, minha mãe
já morreu, aqui está só o corpo…” Não morreu. Está ali,
representa toda a história que você tem com seu pai ou sua mãe.
Você tem uma mãe possível e essa mãe possível merece tanto amor
quanto aquela idealizada que você sempre sonhou que teria até o
final da sua vida.
Os
cuidados paliativos no paciente não oncológico são novidade até
para o mundo do paliativista, porque a oncologia foi a primeira que
os mostrou para o mundo ocidental. No câncer há um sofrimento
agudo, intenso e muitas vezes rápido, diferente da demência, que às
vezes tem um processo de quinze anos e requer a habilidade de
comunicação, de recolher todos os escombros dos diagnósticos das
conversas difíceis que os médicos tiveram sem dar atenção ao
paciente.
Há
doenças como esclerose lateral amiotrófica (ELA), em que o paciente
se comunica com os olhos. Eu cuidei de um caso recentemente em que
uma das maiores emoções para a família foi na hora em que cheguei
na casa e eu fui falar com ele primeiro. Me perguntaram: “mas de
qual planeta você desceu? Ninguém faz isso!” Na ELA a pessoa está
100% do tempo ali. Ela não consegue falar, mas está ali. Então
você tem que olhar nos olhos dela, como que dizendo: eu vejo você,
te reconheço. E aí você compõe todo o processo do cuidado com
essa família para que ela não seja um obstáculo para a
assistência.
Quando
a família sofre, vira família difícil. Não seja uma família
difícil, mas uma presente. A família difícil é insegura com o
cuidado. Quando você cuida da família nesse processo da demência,
ela deixa de ser um obstáculo e passa a ser parceira nos cuidados.
Você consegue conduzir todo o processo que está acontecendo e que
vai acontecer. Por exemplo: passa sonda ou não? Não é na hora de
indicar que você discute esse assunto: tem que conversar muito
antes, porque na progressão da doença vai chegar um momento em que
o paciente vai ter dificuldade de comer. Como é isso para a família
e para o paciente?
O
cuidado paliativo não oncológico exige do paliativista uma
habilidade muito grande de comunicação com a família. No
oncológico, chega um determinado momento em que o paciente está em
tanto sofrimento que a família fala: “ok, entendi”. Mas no
neurológico o declínio é compatível com o acostumar-se com o
processo. Quem tem familiar com doença neurológica avançada sabe
que, se no começo do processo dissessem que você iria aguentar o
que aguenta hoje, você diria: “está louca?” Mas você teve
tempo para se adaptar, e nesse tempo não pode não pensar na
possibilidade de manter os cuidados apesar de a doença estar em
progressão.
O
paciente não vira paliativo do dia para a noite ou porque “chegou
a hora”. Às vezes entro num quarto e peço para juntar as mãos da
família e fazer uma oração, porque o que há para fazer é isso,
de tão tardia que é a indicação.
A
recomendação internacional da Sociedade Americana de Oncologia
Clínica, desde 2017, é de que a indicação de cuidados paliativos
precisa estar presente em todos os pacientes com diagnóstico de
câncer, mas os oncologistas não seguem isso, mostrando que a
dificuldade não é a ciência, é a cultura. A ciência já publicou
inúmeros artigos para os pacientes não oncológicos. Estão no site
da Organização Mundial da Saúde (OMS) de forma aberta, não é
preciso pagar para ler. É um acesso fácil à informação, mas a
nossa cultura impede que se aceite a necessidade de cuidar do
sofrimento.
É
preciso saber o que fazer,
porque o paciente não morre dez vezes,
de forma diferente em cada uma.
Ele morre uma vez só. Se você fizer malfeito,
fica para sempre marcado naquela família.
Muitas vezes a família é capaz
de superar o luto, mas não é capaz de superar
uma palavra mal utilizada pelo
profissional de saúde
porque o paciente não morre dez vezes,
de forma diferente em cada uma.
Ele morre uma vez só. Se você fizer malfeito,
fica para sempre marcado naquela família.
Muitas vezes a família é capaz
de superar o luto, mas não é capaz de superar
uma palavra mal utilizada pelo
profissional de saúde
(Ana Claudia)
Cláudia
– Há várias perguntas no mesmo sentido: o que vocês pensam sobre
essas pessoas que comentam: “ah, você fez o seu câncer porque é
pessimista, porque teve uma decepção…”?
Ana
Claudia – Isso merece um minuto de silêncio.
Quem aqui for paciente um dia e encontrar alguém que disser isso, dê
um sorriso de Mona Lisa. A pessoa vai ter perguntar: “o que você
acha?” Aí você fala: “não concordo”. Você tem que falar
esse “não concordo” com toda a potência de um ponto final.
Isso
é uma viagem. Se for verdade, é da conta de quem está falando,
porque é alguém que não está vivendo o processo. Responsabilizar
o doente pelas mágoas… Quem aqui nunca ficou magoado? Água dá
câncer? Todo mundo que bebe água pode ter câncer, e todo mundo que
tem câncer bebe água…
Essa
condição linear tipo dois neurônios – “ah, câncer de
intestino é apego, câncer de pulmão é mágoa…” Pô, se
desocupa dessa necessidade de responsabilidade. Você tem que saber o
que fazer com a condição que você tem agora. É isso que cabe a
nós aqui neste momento. Você está com câncer. E aí? O que dá
pra fazer de legal?
AnaMi
– Eu respondo isto: não sei. Agora eu estou bem e não estou
curada. Se é por causa de mágoa, não estou magoada com nada. O
paciente fala muito que não aceita que está doente. Eu falo: não
adianta, vai continuar doente. Não dá pra devolver. Não tem o
Procon do câncer.
Eu
não gosto de brincar de mundos hipotéticos, porque eles não
existem. Acabei de receber um exame Foundation, que é um
supermapeamento genético que a médica me pediu porque queria
entender como era possível eu ainda estar viva.
Cláudia
– E onde você tem metástase?
AnaMi
– Fígado, ósseo, linfonodo… Tem uns pedaços de mim aí
estragados…
Mas
a médica pediu porque ela queria entender… A ciência nunca vai
entender como é possível os cuidados paliativos ajudarem tanto. É
isso que acontece.
Saiu
no exame que a minha característica é genética, hereditária.
Então tá. Para eu não ter câncer, teria que ter sabido disso com
20 anos, porque aí iria tirar meu peito, sei lá. Mas eu não tinha
histórico na família, não tinha por que investigar. Descobri com
28 anos – não é uma idade em que você faça mamografia, porque
não tem indicação para isso. Aconteceu.
Essa
é a carta do momento: as cartas que eu jogo são sempre as do
momento. Eu não sei por que foi em mim, tanto faz. Saber por que foi
em mim não vai mudar em nada a minha vida. A questão é o que eu
faço agora. Vou administrando: neste momento estou tratando, com a
doença ativa, preciso da quimioterapia, preciso fazer vários
tratamentos… É isso. Não sei se estava magoada quando descobri.
Mas agora não estou. Agora estou bem.
Cláudia
– Estão perguntando se você também
tem o “Oncocard”... Explica para as pessoas
o que é isso.
AnaMi
–
Tenho
uma amiga chamada
Marina
Maior,
uma
médica,
que descobriu
o
câncer
na mesma época que eu. E aí a gente criou um grupo para pacientes
chamado Meninas de Peito. E
aí ela falava: “cara, eu preciso de Oncocard; a
gente tem que passar Oncocard”
– é o nosso cartão
sem limites para explorar
as pessoas.
Oncocard
para
comer
brigadeiro
quando não pode: rola; para
a
amiga matar o trabalho
e
ficar com você: rola.
Às
vezes,
estou
lá em casa,
ótima, e fico fazendo uma cara de moribunda. Falo:
nossa,
eu queria
tanto comer um hipopótamo
alado… Aí
meu pai vai lé e compra. Isso é Ondocard. Eu exploro
mesmo, e as pessoas
gostam. Às
vezes as pessoas não
sabem como ajudar,
o que fazer – então eu falo que vou usar meu Oncocard.
Uma
amiga acabou de postar, vi e dei risada antes de entrar aqui, porque
é meu aniversário no final de semana e eu marquei tudo em cima da
hora. Falei que ela ainda não tinha confirmado presença e ela
respondeu que tinha dois aniversários no mesmo dia. Eu falei: e eles
têm uma doença crônica? [risos].
Só pra saber, entendeu?… Para te ajudar a refletir sobre essa
decisão.
Brinco
com essa coisa do Oncocard para falar que a gente consegue as coisas,
um carinho a mais, utilizando a nossa doença.
Ana
Claudia – Eu falo que você tem uma excelente forma de fazer
com que as pessoas expressem gentileza. Vivi isso quando quebrei o
pé. Me perguntavam: “as pessoas te ajudam?” Bom, eu dou chance
para elas ajudarem. Se quiserem ser gentis, beleza. Educados todos
deveriam ser, mas nem todos conseguem ser gentis. Acho que o Oncocard
é uma liberação para as pessoas à tua volta serem gentis.
AnaMi
– E elas adoram. Eu moro com uma amiga e às vezes ela diz: “nem
vem com esse teu Oncocard furado não!” [risos]. Com algumas
pessoas não está colando mais, mas com a maioria cola. Com o meu
pai, principalmente… Porque as pessoas não sabem como ajudar,
então a gente fez essa licença poética de falar: poxa, pede.
Essa
questão do câncer ensina a pessoa a ficar feliz com a felicidade do
outro. Muita gente não tem a oportunidade de ser solidário, porque
não quer, acha que não precisa ou porque tem ordem formal de
reencarnação mesmo. Quando você oferece a essa pessoa a
oportunidade de ser solidária e ela faz isso, é uma sensação tão
incrível…
Elas
ficam muito felizes quando aceitam nosso Oncocard, fazem as coisas e
ficam vendo a gente feliz – e então conseguem entender a mágica
do que é você ser feliz com a felicidade de utra pessoa.
Solidariedade é cura. Eu recomendo. É a coisa mais incrível que
existe.
Cláudia
– Você fez seu testamento vital – e, se sim, pode compartilhar?
AnaMi
– Meu testamento vital é ótimo. Eu tinha no meu computador uma
coisa muito formal; recentemente escrevi um texto muito poético e
entreguei para a doutora Ana Claudia. Agora ela já sabe tudo o que
eu gostaria que fosse feito.
Eu
não quero morrer em casa porque não quero descer de elevador morta
[risos]. Tenho pavor de pensar nisso, gente. Imagina eu lá,
dura – e se a minha alma passa reto… Se não existir um hospice
que me receba e que ela esteja acessível para isso, eu prefiro no
hospital, cercada de cuidado mesmo.
(Visite o blog Enquanto eu respirar, de Ana Michelle Soares)