domingo, 5 de setembro de 2021

Neil Peart e sua alma de bebê na estrada

 


Neil Peart num show do Rush no Canadá em 2010
(Wikimedia Commons)


Paulo Hebmüller

viajantedoinverso.blogspot.com

Em agosto de 1997, Neil Peart, o baterista do Rush, perdeu sua única filha, Selena, de 19 anos, num acidente de carro em Ontário, Canadá. Dez meses mais tarde, sua mulher, Jackie, que nunca se recuperou do baque e havia lhe confessado que essa era a única dor que sabia que não conseguiria suportar, morreu vitimada por um câncer diagnosticado pouco antes.

Como costumava fazer nos intervalos das turnês do Rush – ou mesmo durante elas, quando cumpria o roteiro de cidades de moto enquanto os colegas de banda e toda a equipe técnica seguiam com os ônibus e vans da trupe –, Neil subiu em sua moto e partiu numa viagem sem muita clareza sobre para onde ou para que seguiria.

Ele sabia apenas que era preciso estar em movimento.

E que dentro de si havia uma “alma de bebê” que precisava de cuidados:

Um pouco antes naquele verão, ao contemplar as ruínas da minha vida, eu tinha decidido que minha missão agora seria proteger certa essência que havia dentro de mim, uma força vital que brotava, um espírito frágil, como se eu envolvesse com as mãos uma vela bruxuleante. Nas cartas, passei a denominar essa chama remanescente de ‘minha alma de bebê’; decidi que, a partir daquele instante, a minha tarefa seria cuidar daquele espírito da melhor forma que eu pudesse”, escreve Neil em Ghost Rider - A Estrada da Cura.

O livro – ou melhor, livraço –, que saiu em 2002 e foi traduzido por aqui em 2014, é o relato da longa jornada de crescimento dessa alma de bebê e da construção de um novo ser depois dos 45 anos de idade. Sua vida anterior, ao lado da esposa e da filha e de todo o universo de interesses que até então lhe dizia respeito, era vista por ele como pertencendo “a um outro cara”, com o qual ele partilhava apenas umas poucas lembranças distantes: “É uma tarefa e tanto que eu tenho pela frente: construir um mundo, uma pessoa e uma vida”.

Quem conhece as letras do Rush, sempre de Neil, sabe que elas são poemas refinados, arquitetados e burilados por uma mente de talento e sensibilidade raras. Não deveria ser surpresa que o cara fosse capaz de escrever tão bem em prosa – mas ainda assim A Estrada da Cura, com suas mais de 500 páginas, surpreende pela qualidade da escrita, pela profundidade das reflexões, pela emoção e verdade que brotam de seus relatos, pela descrição sempre inteligente e afiada dos lugares e das pessoas com quem cruzou nas viagens, pelo tanto de conhecimento e curiosidade em temas como história, literatura e natureza que saltam das páginas, pela capacidade de fazer graça da própria tragédia e de se reconhecer incapaz de lidar com a realidade sem a ajuda e o amparo da família e dos amigos.


O baterista numa de suas motos
(Holly Carlyle/American Motorcyclist Association)

Ao fim da primeira viagem (houve outras), na qual percorreu 46 mil quilômetros em quatro meses, Neil voltou para a casa em que costumava passar parte do ano com Jackie e Selena. Sua sensação ao reencontrar aquele espaço dominado pelas fotos e lembranças delas foi dizer: “Eu sei”. “Acho que isso é o suficiente para lidar com o que ficou para trás, mas apenas espero que seja o suficiente para o que estiver à frente de mim”, reflete.

E a certa altura, ao escrever para o cunhado, também sofrendo com a perda da irmã e da sobrinha, Neil resume o que aprendera até ali. A palavra-chave era “adaptação”:

Descobri que não faz sentido falar em ‘lidar com isso’ ou ‘trabalhar aquilo’. Não. ‘Isso’, especificamente, é algo com que não se pode lidar ou trabalhar. É o tipo de ‘Isso’ que simplesmente muda tudo, e não há como chegar a uma conciliação com ele.

(...) Aqui e agora é onde tudo começa de novo, a partir do zero, da mesma forma como acontece com os organismos darwinianos: espera-se que se adaptem às novas circunstâncias. Adaptem-se ou morram. Não podemos mudar o jeito que as coisas são, nem os seus efeitos sobre nós e sobre nossa visão do mundo. Tudo já está feito. Se realmente quisermos tentar sair dessa encruzilhada escura, só o que podemos fazer é tentar assumir nós mesmos as rédeas dessas mudanças inevitáveis. Não seríamos quem somos se isso fosse algo que pudéssemos ‘superar’, ou se apenas continuássemos nossas vidas de onde paramos. Uma vez falei assim sobre a forma como vejo meu futuro: ‘Sei que estou marcado por essas experiências, mas não quero ficar aleijado demais por causa delas’.

Se existe algum motivo para seguir em frente, esse motivo não é apenas continuar a existir para entulhar o mundo com mais um velho amargo e desagradável, com um ermitão sem alegria ou com um mártir que sofre eternamente porque vive no passado e pune as outras pessoas pelo que a vida fez com ele – comigo.

(...) Se é verdade que apenas o Tempo é capaz de curar as grandes feridas, é necessário nos adaptarmos a esta realidade. Isso é o mais crucial para que consigamos ‘aguentar firme’ e sobreviver, de tal modo que os supostos poderes mágicos da passagem do Tempo tenham a chance de fazer seu trabalho. (...) Se o Tempo vai nos servir como um agente de cura, então temos que estar aí para que isso aconteça, entende?”

O que aconteceu com ele? Bom, sem querer lançar um spoiler, fui ver o Rush no Morumbi nas duas únicas vezes em que eles tocaram por aqui: no fim de 2002 (ano em que saiu o livro) e em 2010.

E Neil Peart continua sendo the best drummer ever.


Ghost Rider – A Estrada da Cura, de Neil Peart.
Tradução de Candice Soldatelli. Editora Belas Letras


(Texto publicado no Facebook em 4 de janeiro de 2016. Em 7 de janeiro de 2020, Neil partiu para sua última viagem.)


segunda-feira, 26 de abril de 2021

Neli Aparecida de Mello-Théry (1955 - 2021)

 

Conheci Neli Aparecida de Mello-Théry quando fui designado pelo Jornal da USP para cobrir uma expedição de professores e estudantes brasileiros e franceses à Amazônia, em 2009. Tivemos uma ou duas conversas preparatórias antes da viagem, mas foi durante aqueles dias inesquecíveis em campo que tive a oportunidade de – entre tantos privilégios que a expedição me concedeu – conviver mais com ela e aprender de seu imenso conhecimento e generosidade.

Nos anos seguintes, encontrei-a em algumas poucas ocasiões – eventos ou entrevistas nas quais a “explorava” como fonte para reportagens. Sempre foram situações agradáveis e de mais aprendizado para mim.

Na convivência com alunos de graduação e pós, o que facilmente percebi naqueles dias na Amazônia, Neli era a professora que não abria mão do rigor acadêmico e profissional, e ao mesmo tempo era também uma presença amorosa, companheira, genuinamente interessada nas pessoas e no que elas tinham a dizer.

Nunca encontrei quem a conhecesse que não se referisse a ela como uma professora exigente, que não “aliviava” para ninguém e que possuía uma enorme capacidade de trabalho – e como essa mulher que entregava o melhor de sua humanidade aos seres humanos com quem cruzava.



Algumas semanas antes de se iniciar esta desalentadora e interminável quarentena, soube que Neli enfrentava um câncer agressivo em Paris, onde vivia com seu marido, Hervé.

Na triste terça-feira 6/4 soube da sua partida.

O que ela ensinou, semeou, criou e cativou em cada um de seus alunos e alunas está frutificando em muitos lugares por aí, e assim continuará.

E certamente nenhum deles deixará de guardar imagens como as feitas pela Cecilia Bastos na viagem, das quais escolhi duas que simbolizam o sorriso e o trabalho da professora.

(As reportagens sobre a expedição podem ser lidas aqui.)





quarta-feira, 7 de abril de 2021

Alfredo Bosi (1936 - 2021)

Em 2015, tive a honra de entrevistar o professor Alfredo Bosi, falecido nesta quarta-feira (7/4), vítima da Covid-19.

A entrevista foi publicada pela Revista Adusp.

Reproduzo a seguir o texto de abertura, no qual vale atualizar que seu livro História concisa da literatura brasileira já está na 52ª edição, e a resposta de Bosi à primeira pergunta. O link para a íntegra da entrevista está na sequência.


Alfredo Bosi na cerimônia em que recebeu o título
de Professor Emérito da USP, em 2009
(USP Imagens)


* * *


Poesia como resistência à ideologia dominante


Por Paulo Hebmüller, Revista Adusp, dezembro de 2015 


Não são poucas as áreas em que atua e intervém Alfredo Bosi: história, política, Igreja e militância contra usinas atômicas estão entre elas. Mas é a literatura, que lecionou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) durante praticamente meio século — entre 1959 e 2006, quando se aposentou — que talvez mais mobilize o professor. “A literatura tem uma função muito rica, humanizadora, e dá uma grande abertura para qualquer tipo de profissional — mas a escola de alguma maneira diminuiu muito a sua dosagem, talvez até por causa dos vestibulares”, lamenta.

Nascido em São Paulo em agosto de 1936, Bosi iniciou sua trajetória na USP com o ingresso na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1954. Graduado em Letras Neolatinas, fez especialização em Filologia Românica e, entre 1961 e 62, especialização em Literatura Italiana, em Florença, na Itália. Seu doutorado (1964) e a livre docência (1970) também versaram sobre literatura italiana. Contudo, as letras da terra natal são um dos focos principais de sua produção acadêmica e da carreira docente.

Seu livro História concisa da literatura brasileira, publicado pela primeira vez em 1970, já alcançou 49 edições. Bosi é autor também de O conto brasileiro contemporâneo, O ser e o tempo da poesia, Dialética da colonização, Literatura e resistência, Ideologia e contraideologia e outros títulos. Muitos dos temas dos quais o professor se ocupa são abordados nos ensaios reunidos em seu livro mais recente, Entre a literatura e a história (2013), alguns dos quais citados nesta entrevista.

Casado com a psicóloga social e escritora Ecléa Bosi, professora do Instituto de Psicologia da USP, e pai de José Alfredo e Viviana, Bosi é membro da Academia Brasileira de Letras desde 2003 e recebeu o título de Professor Emérito da USP em 2009. Continua ligado à Universidade principalmente pelas atividades no Instituto de Estudos Avançados (IEA), do qual já foi diretor e onde edita desde o primeiro número, em 1987, a revista Estudos Avançados.

Sobre muitas das questões que o ocupam, Alfredo Bosi concedeu na sede do IEA, na Cidade Universitária, a entrevista a seguir.


Revista Adusp. O escritor Mia Couto, numa entrevista que me concedeu no ano passado, disse o seguinte: “Não há outra maneira de reconquistar um sentido de felicidade que seja pleno que não vá pelo caminho de nos restituir um olhar poético”. O senhor diz que “a poesia exprime a subjetividade mais radical do ser humano”. A poesia pode fazer a ponte entre essa felicidade e essa subjetividade?

ALFREDO BOSI. A poesia tem mais de um horizonte. Essa frase do Mia Couto, que eu endosso, realmente é o caminho mais feliz da poesia, não só para quem a produz — o artista que conhece aquele momento de iluminação — como sobretudo para os seus leitores. Um adolescente numa crise existencial de repente abre um livro de poemas da Cecília Meireles e sente que há coisas belas na existência. Ou então abre um Carlos Drummond de Andrade e tem contato com uma concepção mais irônica ou crítica, ou mesmo de grande resistência moral. A observação do Mia Couto vale principalmente para esses momentos em que a poesia liberta o leitor das suas preocupações do cotidiano e dá um sentido à existência. A minha experiência de leitor de poesia começou muito cedo. Eu tinha meus 13, 14 anos, já ia à Biblioteca Mário de Andrade e lia tudo o que me caía sob os olhos. Nem tudo eu entendia, como em textos de poetas difíceis como Jorge de Lima ou Murilo Mendes, mas mesmo não entendida a poesia transmite um sentimento básico da existência através das imagens, menos do que pelos conceitos. A leitura de poesia alimentou muito a minha vocação de professor. Agora, além dessa visão digamos mais feliz e mais eufórica, que conduz a uma expansão da alma, há uma forma de poesia que me atraiu desde cedo e sobre a qual escrevi bastante: a chamada forma de resistência. Essa ideia de literatura como resistência foi amadurecendo para mim desde principalmente os anos da Ditadura Militar — não que eu faça uma relação determinista de causa e efeito, porque a literatura tem uma riqueza de possibilidades que felizmente transcende o momento político. Mas nesse caso, como se tratava do longo período de vinte e um anos de ditadura, os intelectuais mais sensíveis à luta social e aqueles que tinham depositado muitas esperanças no governo deposto de João Goulart, e tinham passado por um momento muito construtivo no começo dos anos 1960, de repente se viram confrontados com um baque. Aqueles projetos que estavam amadurecendo foram cortados violentamente. Então me pareceu que a concepção de poesia apenas como expressão da subjetividade, sem dúvida uma visão básica que está na maioria dos autores de estética, poderia ser pensada também como uma forma de resistência à ideologia dominante. Ao lado da prosa pragmática que predominava na época e das ciências naturais e sociais, os poetas também vivem uma tensão entre o seu universo subjetivo, que é múltiplo, e as forças hegemônicas, sejam do capital ou do Estado. Essa tensão seria a matriz de uma poesia de resistência. Quando escrevi O ser e o tempo da poesia (1977), destinei um capítulo inteiro ao conceito de poesia resistência e verifiquei que há mais de uma forma de resistência. A forma mais evidente é a poesia de crítica social, de ataque, de sátira. Mas não é a única. Às vezes o poeta entra muito dentro de si mesmo e sua forte carga subjetiva involuntariamente se opõe àquilo que é a prosa do mundo, a prosa ideológica. Não que ele faça uma proposta formal de ataque à sociedade, mas a sua linguagem é tão estranha e tão diferenciada em relação àquilo que é a linguagem ideologizada, ou a do senso comum, que ela se transforma em resistência. Isso foi muito bem estudado por Theodor Adorno, filósofo marxista que via essa característica em certos poetas surrealistas e simbolistas acusados pelos marxistas ortodoxos de alienados, porque aparentemente estavam voltados apenas para si próprios. Mas Adorno fez estudos minuciosos de poetas alemães desse período e verificou que havia um potencial de resistência em seu trabalho. Há um ensaio dele que é paradigmático nessa questão, chamado “Discurso sobre lírica e sociedade”, que sempre recomendo aos meus alunos. E há ainda as formas extremas, místicas, em que o poeta vai atrás do transcendente, uma forma de superar a imanência. Esse viés das várias formas de resistência me pareceu fecundo. Como faço basicamente história da literatura — naquela época trabalhava com literatura italiana — olhando para trás vi que essa tendência poderia ser encontrada em vários poetas. Particularmente um, Giacomo Leopardi (1798-1837), que foi objeto da minha tese de livre docência. Leopardi era profundamente pessimista, por várias razões, inclusive autobiográficas, mas no final de sua curta vida creio que encontrou uma imagem para a resistência. É uma imagem muito bela e que me persegue, no sentido de que eu a persigo também: a de uma flor que nasce nas encostas do Vesúvio. Leopardi não suportava bem o frio e resolveu viver em Nápoles, onde passou os últimos anos de sua vida. Pompeia [devastada por uma erupção do vulcão Vesúvio em 79 d.C.] já havia sido descoberta pelos arqueólogos alemães, então Leopardi viu o que era o passado. Olhando para o Vesúvio, observou que, apesar da lava que descia pelas encostas, uma flor resistia. Essa flor em italiano se chama ginestra — em português, giesta. Seu último poema é “A giesta, ou a flor do deserto”. É um poema belíssimo e difícil — ele é um poeta com reminiscências clássicas muito fortes e não é fácil de ler. Quando fiz a minha tese, me debrucei sobre o poema e colhi dessa experiência de Leopardi a ideia de poesia como resistência. Nos anos em que morei na Granja Viana, senti falta dessa flor, tão bonita e tão rara. Mas eu não sabia se ela existia no Brasil. Um dia minha esposa e eu estávamos comprando mudas na chácara de floristas japoneses na Raposo Tavares e resolvi perguntar se o dono conhecia a giesta. Estava certo de que ele não conheceria, mas quando pedi uma muda de giesta ele pegou o carrinho, entrou nos seus labirintos e voltou com ela. Plantei, mudei de casa e, nesses anos todos, ela continua lá. É uma flor perene, que desaparece, mas volta de novo. Essa imagem é uma espécie de símbolo da poesia resistência

(Leia aqui a íntegra da entrevista)



domingo, 4 de abril de 2021

Camus e a peste que sempre volta

(Post publicado no Facebook no dia 17 de março de 2021)


Albert Camus (1913 - 1960)

Paulo Hebmüller, viajantedoinverso.blogspot.com

Completo hoje um ano de confinamento e home office. 

Do ponto de vista pessoal, mantive saúde e trabalho e não perdi ninguém entre familiares e amigos próximos. 

Conheço muitas pessoas que já tiveram Covid-19 e enfrentaram desde sintomas leves até longos dias de internação e UTI. 

E lembro de John Donne, poeta da virada do século 16 para o 17, que escreveu que nenhum homem é uma ilha, mas sim “pedaço do continente, uma parte da terra firme”. 

Prossegue Donne: “a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano, e por isso não me perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. 

Sou diminuído pelas tantas mortes que me cercam - de pessoas conhecidas, de seus afetos, daqueles que não conheço e que padecem e padeceram a morte horrenda pelo sufocamento. 

Sou diminuído pela catástrofe de viver num país desgovernado por genocidas e milicianos, cujas ações nos mantêm em queda livre no abismo. Não há no horizonte, enquanto esses adoradores da tortura e das armas estiverem no poder, nenhuma perspectiva que não seja a de enterrar mais mortos a cada dia. 

Dos tantos livros que li nesse ano, provavelmente A peste, de Camus, é o mais inquietante. Alegoria do nazifascismo, publicado dois anos depois do fim da II Guerra Mundial, parece descrever exatamente a pandemia dos nossos dias. 

Adverte Camus que “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca”; no máximo pode ficar dezenas de anos adormecido, esperando pacientemente a hora de voltar. 

A seguir, uma ou outra das muitas inquietações plantadas por Camus no livro: 

“O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Os homens são mais bons do que maus, e na verdade a questão não é essa. Mas ignoram mais ou menos, e é a isso que se chama virtude ou vício, sendo o vício mais desesperado o da ignorância, que julga saber tudo e se autoriza, então, a matar. A alma do assassino é cega, e não há verdadeira bondade nem belo amor sem toda a clarividência possível.” 

“Era preciso esperar ainda. Mas, depois de tanto esperar, não se espera mais – e a nossa cidade inteira vivia sem futuro.” 

“Nesse momento, o desmoronar da coragem, da vontade e da paciência era tão brusco que lhes parecia que não poderiam jamais sair desse precipício. Então, restringiam-se a não pensar mais na libertação, a não se voltar para o futuro e a manter sempre, por assim dizer, os olhos baixos. Mas, naturalmente, essa prudência, essa maneira de enganar a dor, de fechar a guarda para recusar o combate, eram mal recompensadas. Ao mesmo tempo que evitavam esse desmoronamento que não queriam por preço algum, privavam-se, na verdade, dos momentos bastante frequentes em que podiam esquecer a peste nas imagens de seu futuro reencontro. E assim, encalhados a meia distância entre esses abismos e esses cumes, mais flutuavam que viviam, abandonados a dias sem rumo e recordações estéreis, sombras errantes, incapazes de se fortalecerem a não ser aceitando enraizar-se na terra de sua própria dor. Experimentavam assim o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e de todos os exilados, ou seja, viver com uma memória que não serve para nada.”

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Duas Marias



 Paulo Hebmüller, viajantedoinverso.blogspot.com

Duas Marias, duas escritoras brasileiras, duas mulheres na casa dos 70 anos de idade. Por coincidência, são delas os primeiros livros que terminei de ler nos dias iniciais de 2020 e deste segundo ano da peste.

Em O voo da guará vermelha (2005) – que me acompanhou na viagem à comunidade ribeirinha do Amazonas em que passei a virada de ano e ingressei naquele 2020 que jamais pensaríamos viver 2021 adentro –, Maria Valéria Rezende narra a história de Rosálio da Conceição, homem com fome da alma, “fome de palavras, de sentimentos e de gentes, fome que é assim uma sozinhez inteira, um escuro no oco do peito, uma cegueira de olhos abertos”. 

Filho de um chão que só lhe deu miséria e abandono, depois de sobreviver a uma infância sem criancice e de passar por todo tipo de exploração, do garimpo ao trabalho análogo à escravidão, Rosálio conhece numa periferia de cidade a prostituta Irene, que vai tocando seus dias enquanto um vírus, então o da Aids, trata de abreviá-los.

O agora pedreiro carrega em suas andanças uma caixa de livros que ganhou de um antigo companheiro, mas não sabe decifrá-los, e é Irene que lhe dará a chave e o iniciará no desvendamento das letras e na apropriação dos novos mundos que elas proporcionam – é como se então embarcasse na “grande e gloriosa descoberta da literatura, uma aventura que me acompanhou a vida toda”, na definição da Prêmio Nobel Doris Lessing.

O homem, por sua vez, a acolhe num colo de histórias, numa bela celebração que Maria Valéria – a quem só descobri tardiamente, em 2015, com o premiado Quarenta dias, que se passa em Porto Alegre, virando leitor cativo desde então – faz do poder curativo da palavra: “Rosálio atende, contente, o pedido da mulher, porque relembrar sua vida lhe permite reviver, agora sem dor, de longe, as coisas que aconteceram e descobrir seus sentidos, cada vez vendo mais fundo o mundo como é que é”.

Maria Altamira (2020), de Maria José Silveira, começa com o soterramento da cidade peruana de Yungay pela avalanche do monte Huascarán, em 1970, e narra a saga de uma das sobreviventes, Alelí, que tenta exorcizar seu luto e a maldição que acredita carregar vagando pela América do Sul. Seu caminho cruza fronteiras, sotaques e falares e se entrelaça ao das populações indígenas e ribeirinhas do Norte do Brasil que viram sua história também ser soterrada – paradoxalmente, pela água – por outra espécie de avalanche, com a chegada da usina de Belo Monte e o desaparecimento de suas vilas, aldeias e modos de vida, engolidas pelo lago gigante da usina:

“A água é imensa. A água tem poder.

Engoliu as prainhas douradas, engoliu as matas, engoliu quinhentos quilômetros quadrados com as terras do seu Zé, do Onofre, dos pais da Nice, do Gilmar, de dona Imaculada, do Tião, da Gildete e de tantos e tantos e tantos. Milhares. Os olhos de desconsolo, de indignação, de profundo desespero das famílias despejadas – uns dizem mais de cinco mil, outros dizem sete mil, outros quase dez mil, se contar direito – observaram aquela água e não a reconheceram. Não era a mesma. Tampouco reconheceram a si mesmos. Não eram os mesmos. A água engolira também a identidade, o mundo, a história de vida de todos eles.”

O voo da guará vermelha e Maria Altamira são dois exemplos do que nos proporciona a literatura, particularmente a brasileira: são livros que falam de nós para nós mesmos e nos narram para nos dizer quem somos. Ao fazer isso, nos ajudam “a questionar o mundo e as escolhas feitas pela nossa sociedade, porque nos fazem ver realidades que são invisibilizadas por essas escolhas, pessoas que são excluídas a partir delas”, como diz a professora Regina Dalcastagnè, da UnB, numa entrevista recente. “As artes e a literatura são importantes e precisam ser incentivadas porque oferecem beleza e, também, espaço de reflexão sobre as desigualdades sociais e as injustiças que nos cerceiam. São ferramentas para sonhar um mundo melhor.”