Em
2015, tive a honra de entrevistar o professor Alfredo Bosi, falecido
nesta quarta-feira (7/4), vítima da Covid-19.
A
entrevista foi publicada pela Revista Adusp.
Reproduzo
a seguir o texto de abertura, no qual vale atualizar que seu livro
História concisa da literatura brasileira já está na 52ª
edição, e a resposta de Bosi à primeira pergunta. O link para a
íntegra da entrevista está na sequência.
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Alfredo Bosi na cerimônia em que recebeu o título de Professor Emérito da USP, em 2009 (USP Imagens) |
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Poesia
como resistência à ideologia dominante
Por Paulo Hebmüller, Revista Adusp, dezembro de 2015
Não
são poucas as áreas em que atua e intervém Alfredo Bosi: história,
política, Igreja e militância contra usinas atômicas estão entre
elas. Mas é a literatura, que lecionou na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) durante praticamente meio
século — entre 1959 e 2006, quando se aposentou — que talvez
mais mobilize o professor. “A literatura tem uma função muito
rica, humanizadora, e dá uma grande abertura para qualquer tipo de
profissional — mas a escola de alguma maneira diminuiu muito a sua
dosagem, talvez até por causa dos vestibulares”, lamenta.
Nascido
em São Paulo em agosto de 1936, Bosi iniciou sua trajetória na USP
com o ingresso na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
em 1954. Graduado em Letras Neolatinas, fez especialização em
Filologia Românica e, entre 1961 e 62, especialização em
Literatura Italiana, em Florença, na Itália. Seu doutorado (1964) e
a livre docência (1970) também versaram sobre literatura italiana.
Contudo, as letras da terra natal são um dos focos principais de sua
produção acadêmica e da carreira docente.
Seu
livro História concisa da literatura brasileira, publicado
pela primeira vez em 1970, já alcançou 49 edições. Bosi é autor
também de O conto brasileiro contemporâneo, O ser e o
tempo da poesia, Dialética da colonização, Literatura
e resistência, Ideologia e contraideologia e outros
títulos. Muitos dos temas dos quais o professor se ocupa são
abordados nos ensaios reunidos em seu livro mais recente, Entre a
literatura e a história (2013), alguns dos quais citados nesta
entrevista.
Casado
com a psicóloga social e escritora Ecléa Bosi, professora do
Instituto de Psicologia da USP, e pai de José Alfredo e Viviana,
Bosi é membro da Academia Brasileira de Letras desde 2003 e recebeu
o título de Professor Emérito da USP em 2009. Continua ligado à
Universidade principalmente pelas atividades no Instituto de Estudos
Avançados (IEA), do qual já foi diretor e onde edita desde o
primeiro número, em 1987, a revista Estudos
Avançados.
Sobre
muitas das questões que o ocupam, Alfredo Bosi concedeu na sede do
IEA, na Cidade Universitária, a entrevista a seguir.
Revista
Adusp. O escritor Mia Couto, numa entrevista que me concedeu
no ano passado, disse o seguinte: “Não há outra maneira de
reconquistar um sentido de felicidade que seja pleno que não vá
pelo caminho de nos restituir um olhar poético”. O senhor diz que
“a poesia exprime a subjetividade mais radical do ser humano”. A
poesia pode fazer a ponte entre essa felicidade e essa subjetividade?
ALFREDO
BOSI. A poesia tem mais de um horizonte. Essa frase do Mia Couto,
que eu endosso, realmente é o caminho mais feliz da poesia, não só
para quem a produz — o artista que conhece aquele momento de
iluminação — como sobretudo para os seus leitores. Um adolescente
numa crise existencial de repente abre um livro de poemas da Cecília
Meireles e sente que há coisas belas na existência. Ou então abre
um Carlos Drummond de Andrade e tem contato com uma concepção mais
irônica ou crítica, ou mesmo de grande resistência moral. A
observação do Mia Couto vale principalmente para esses momentos em
que a poesia liberta o leitor das suas preocupações do cotidiano e
dá um sentido à existência. A minha experiência de leitor de
poesia começou muito cedo. Eu tinha meus 13, 14 anos, já ia à
Biblioteca Mário de Andrade e lia tudo o que me caía sob os olhos.
Nem tudo eu entendia, como em textos de poetas difíceis como Jorge
de Lima ou Murilo Mendes, mas mesmo não entendida a poesia transmite
um sentimento básico da existência através das imagens, menos do
que pelos conceitos. A leitura de poesia alimentou muito a minha
vocação de professor. Agora, além dessa visão digamos mais feliz
e mais eufórica, que conduz a uma expansão da alma, há uma forma
de poesia que me atraiu desde cedo e sobre a qual escrevi bastante: a
chamada forma de resistência. Essa ideia de literatura como
resistência foi amadurecendo para mim desde principalmente os anos
da Ditadura Militar — não que eu faça uma relação determinista
de causa e efeito, porque a literatura tem uma riqueza de
possibilidades que felizmente transcende o momento político. Mas
nesse caso, como se tratava do longo período de vinte e um anos de
ditadura, os intelectuais mais sensíveis à luta social e aqueles
que tinham depositado muitas esperanças no governo deposto de João
Goulart, e tinham passado por um momento muito construtivo no começo
dos anos 1960, de repente se viram confrontados com um baque. Aqueles
projetos que estavam amadurecendo foram cortados violentamente. Então
me pareceu que a concepção de poesia apenas como expressão da
subjetividade, sem dúvida uma visão básica que está na maioria
dos autores de estética, poderia ser pensada também como uma forma
de resistência à ideologia dominante. Ao lado da prosa pragmática
que predominava na época e das ciências naturais e sociais, os
poetas também vivem uma tensão entre o seu universo subjetivo, que
é múltiplo, e as forças hegemônicas, sejam do capital ou do
Estado. Essa tensão seria a matriz de uma poesia de resistência.
Quando escrevi O ser e o tempo da poesia (1977), destinei um
capítulo inteiro ao conceito de poesia resistência e
verifiquei que há mais de uma forma de resistência. A forma mais
evidente é a poesia de crítica social, de ataque, de sátira. Mas
não é a única. Às vezes o poeta entra muito dentro de si mesmo e
sua forte carga subjetiva involuntariamente se opõe àquilo que é a
prosa do mundo, a prosa ideológica. Não que ele faça uma proposta
formal de ataque à sociedade, mas a sua linguagem é tão estranha e
tão diferenciada em relação àquilo que é a linguagem
ideologizada, ou a do senso comum, que ela se transforma em
resistência. Isso foi muito bem estudado por Theodor Adorno,
filósofo marxista que via essa característica em certos poetas
surrealistas e simbolistas acusados pelos marxistas ortodoxos de
alienados, porque aparentemente estavam voltados apenas para si
próprios. Mas Adorno fez estudos minuciosos de poetas alemães desse
período e verificou que havia um potencial de resistência em seu
trabalho. Há um ensaio dele que é paradigmático nessa questão,
chamado “Discurso sobre lírica e sociedade”, que sempre
recomendo aos meus alunos. E há ainda as formas extremas, místicas,
em que o poeta vai atrás do transcendente, uma forma de superar a
imanência. Esse viés das várias formas de resistência me pareceu
fecundo. Como faço basicamente história da literatura — naquela
época trabalhava com literatura italiana — olhando para trás vi
que essa tendência poderia ser encontrada em vários poetas.
Particularmente um, Giacomo Leopardi (1798-1837), que foi objeto da
minha tese de livre docência. Leopardi era profundamente pessimista,
por várias razões, inclusive autobiográficas, mas no final de sua
curta vida creio que encontrou uma imagem para a resistência. É uma
imagem muito bela e que me persegue, no sentido de que eu a persigo
também: a de uma flor que nasce nas encostas do Vesúvio. Leopardi
não suportava bem o frio e resolveu viver em Nápoles, onde passou
os últimos anos de sua vida. Pompeia [devastada por uma erupção do
vulcão Vesúvio em 79 d.C.] já havia sido descoberta pelos
arqueólogos alemães, então Leopardi viu o que era o passado.
Olhando para o Vesúvio, observou que, apesar da lava que descia
pelas encostas, uma flor resistia. Essa flor em italiano se chama
ginestra — em português, giesta. Seu último poema é “A
giesta, ou a flor do deserto”. É um poema belíssimo e difícil —
ele é um poeta com reminiscências clássicas muito fortes e não é
fácil de ler. Quando fiz a minha tese, me debrucei sobre o poema e
colhi dessa experiência de Leopardi a ideia de poesia como
resistência. Nos anos em que morei na Granja Viana, senti falta
dessa flor, tão bonita e tão rara. Mas eu não sabia se ela existia
no Brasil. Um dia minha esposa e eu estávamos comprando mudas na
chácara de floristas japoneses na Raposo Tavares e resolvi perguntar
se o dono conhecia a giesta. Estava certo de que ele não conheceria,
mas quando pedi uma muda de giesta ele pegou o carrinho, entrou nos
seus labirintos e voltou com ela. Plantei, mudei de casa e, nesses
anos todos, ela continua lá. É uma flor perene, que desaparece, mas
volta de novo. Essa imagem é uma espécie de símbolo da poesia
resistência.
(Leia aqui a íntegra da entrevista)