Paulo Hebmüller
(Jornal da USP nº 942, 24 a 30 de outubro de 2011)
Comemorando os 75 anos de lançamento de Angústia, a Editora Record
promoveu em diversas capitais do País um simpósio sobre Graciliano Ramos e sua
obra. O ciclo foi aberto no final de setembro com uma conferência de Antonio
Candido na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Na
abertura, Candido salientou que daria “um depoimento pessoal, muito singelo”,
de como conheceu a obra de Graciliano e se familiarizou com ela, ressaltando
que já era um adolescente leitor na época em que o escritor começou a publicar.
Leia a seguir trechos da conferência do Professor Emérito da FFLCH (a íntegra
da palestra está disponível em vídeo aqui):
Antonio Candido em evento na USP (foto de Francisco Emolo) |
“Graciliano Ramos atuou em um dos
momentos mais ricos da literatura brasileiro, e me pergunto se não foi o momento mais rico da literatura
brasileira, mais ou menos entre 1920 e 1960. O Modernismo da década de 1920 e o
que vem depois dele são dois momentos bem diferentes do ponto de vista do
destino das obras. O Modernismo passou muito despercebido naquele tempo. Foi um
movimento pequeno, de uma elite intelectual – de grande importância histórica,
mas sem muita repercussão.
Depois de 30, quando Graciliano Ramos
publicou, o Brasil tinha virado. Há uma certa tendência dentro da historiografia
de menoscabar a importância do movimento revolucionário de 1930, mas o Brasil
mudou. Do ponto de vista de difusão da literatura, a coisa aumentou
extraordinariamente. Houve surtos editoriais muito importantes, sobretudo em São
Paulo, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, de modo que os que escreviam depois
de 30 puderam ter as suas obras recebidas por um público muito maior, também
com maior impacto.
Minha impressão é que essa literatura
ficcional serviu para fazer conhecer o Brasil. O País era muito disperso, não
se conhecia, e os brasileiros não se comunicavam. O segundo aspecto é que esse
romance me aproximou do pobre e do desvalido. Até então os romances que me
caíam nas mãos eram sobretudo da vida urbana ou regionalistas de cunho
pitoresco. Foi a primeira vez que li romances sobre a vida do negro, do
trabalhador do cacau, do jagunço, de modo que para a minha geração esses romancistas
tiveram também uma grande função de radicalidade. Foi o momento histórico que
levou a isso, com as classes sociais sacudidas, a decadência das oligarquias e
a entrada do operário na vida política. Nesse período é que surge o nosso Graciliano
Ramos.”
Uma estudante
“Havia muitos escritores do chamado ‘romance
do Nordeste’. Mas lembro que minha impressão é que Graciliano ia subindo e se
destacando, até que num certo momento cheguei à conclusão, como muita gente
chegou, que ele era o grande escritor daquele momento. Meu romance predileto
foi sempre São Bernardo. Penso que o
li no mínimo umas vinte vezes. Eu o leio até hoje. Vidas secas é outra obra-prima, escrito com uma técnica completamente
diferente, uma técnica de retábulo.
Quando li Angústia, estranhei um pouco. Aquele escritor seco, contido, estava
muito abundante, um pouco ‘gorduroso’. Por último li Caetés, que é o seu primeiro romance. Caetés me pareceu bom, mas inferior aos outros. Mas continuei lendo
e acabei gostando dele tanto quanto os outros, e devo isso a uma estudante. Orientei
uma estudante venezuelana que fez uma bela tese sobre Graciliano Ramos. Uma vez
eu disse que achava Caetés mais
fraco, e ela me falou: ‘o senhor está inteiramente enganado, professor. É um
grande livro’. Tomei um susto e fui relê-lo. Não é que a venezuelana tinha
razão? Sempre aprendi muito com os estudantes, e aprendi a finalmente ler direito
Caetés graças a essa aluna.
Quando saiu Infância, o Graciliano Ramos me mandou o livro, com dedicatória. Nesse
momento, em 1945, eu era crítico titular – o representante do jornal em
literatura, uma profissão de alto risco – do jornal Diário de S. Paulo. Fiquei deslumbrado e pensei: bom, realmente
agora é a hora de escrever sobre Graciliano. Reli cuidadosamente os quatro
romances e fiz um rodapé para cada um. Foram cinco rodapés no segundo semestre
de 45, quando Graciliano já era considerado um autor supremo. Publiquei esses
artigos e ele me escreveu uma carta muito interessante.
Em 1947, fui ao Rio de Janeiro com
minha mulher e lá o Otávio Tarquínio de Sousa e a Lúcia Miguel Pereira me
disseram que o Graciliano, que era amigo deles, tinha vontade de me conhecer.
Eles deram um jantar na casa deles e lá eu conversei com Graciliano. Tive a
impressão de um homem de pouca fala, muito bem educado e de extraordinária
distinção, dessas pessoas que se impõem. Ele estava escrevendo Memórias do Cárcere. Conversamos sobre Memórias e ele falou da grande
experiência de vida que estava tendo. Foi a única vez que eu o vi.
Também em 1947 saiu a primeira edição
uniforme da obra dele, com uma longa introdução de Floriano Gonçalves, e Graciliano
me mandou todos os volumes com dedicatória. De Caetés, por exemplo: ‘Antonio Candido, a culpa não é só minha, é
também sua. Se não existisse aquele seu rodapé, talvez não se reeditasse isso’.
Isso! Em Angústia: ‘além das partes rudes, já corrompidas, vão aqui alguns
erros e pastéis, que as tipografias andam uma lástima’. Em Insônia: ‘A Antonio Candido, esta coleção de encrencas, algumas bem
chinfrins’.”
Obrigado, professor (foto de Francisco Emolo) |
Honra
"Depois da morte dele, em 1953, fui
chamado ao escritório do editor José Olympio, em São Paulo, e tive a surpresa
de me falarem que Graciliano dissera que queria que a próxima edição das obras
dele tivesse uma introdução minha. Fiquei honradíssimo, foi uma das coisas mais
honrosas que aconteceram na minha vida. Retomei os artigos, reelaborei, escrevi
sobre Memórias do Cárcere e fiz a
introdução, um artigo longo, ao qual dei o nome de ‘Ficção e confissão’.
Graciliano era um militante muito ativo
do Partido Comunista Brasileiro, e eu era militante do Partido Socialista. Os
dois não se gostavam. Quem é de esquerda sabe que as tensões mais graves são
dentro da própria esquerda. A esquerda às vezes se odeia mais do que odeia a
direita. Os comunistas alemães não quiseram se aliar aos socialistas, nem os
socialistas aos comunistas, e Hitler foi para o poder. Essas tragédias
acontecem. Por isso é notável Graciliano ter me escolhido. Era um homem de uma
integridade e de uma independência que, sem prejuízo das convicções e da
firmeza da militância, pairava acima disso.”
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