quinta-feira, 4 de maio de 2017

Belchior: “Fazer música é produzir um objeto explosivo”

(Entrevista a Paulo Hebmüller, jornal RS, Porto Alegre, edição 322, 14/15 de novembro de 1992)






Nascido na cearense Sobral em 1946, Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes apresentava-se regularmente em Porto Alegre desde os trinta anos de idade, como conta nesta entrevista.
Assisti a alguns de seus shows na cidade – especialmente no saudoso Teatro da OSPA, na Independência. Numa dessas passagens, em 1992, entrevistei-o para o RS, semanário criado por Sergio Jockymann, à época já desligado do jornal.
Ao saber da morte de Belchior, no domingo 30 de abril, lembrei de procurar esse registro. Para trazê-lo à luz no mundo virtual, foi preciso redigitar o texto, porque o original pertencia àquela era remota das laudas e da máquina de escrever (era uma tecnologia em que se “imprimia” ao mesmo tempo em que se digitava, crianças – procurem na internet).
A entrevista é aberta com questões sobre o cenário político brasileiro (que Belchior define como “situação política e socialmente caótica”), naquele ano das manifestações que pediam a cabeça do presidente Fernando Collor – então já derrubado e substituído pelo seu vice, Itamar Franco. Todo esse processo, acreditava, fazia com que nos defrontássemos com “o Brasil real, um país pobre, violento, de Terceiro Mundo, faminto, analfabeto e que precisa definitivamente optar pela cultura e pela civilização”.
Para situar questões específicas da época, adicionei alguns comentários no final (as referências estão indicadas por números). Excluí o texto de abertura, bastante datado, limpei uma ou outra gralha de revisão e fiz umas poucas atualizações de acordo com a última reforma ortográfica.
A conversa não trata apenas de política, claro. Belchior fala também de música, de poesia, de sua formação, de suas utopias. Estava com 46 anos, e ainda distante da ruptura da última década de vida, quando abandonou carreira, projetos, família, a pintura, os palcos, a cena pública. “Tenho fé no presente e esperança no futuro”, me disse.
A seguir, a entrevista:

  

Parte da primeira página da entrevista no RS

A juventude e as questões ligadas a ela sempre foram temas constantes na tua música. Como tu vês a juventude brasileira que voltou a sair à rua e ter experiências políticas?
Belchior – A mocidade, a rapaziada brasileira estar na rua de novo é um fenômeno importantíssimo, de alcance político da maior importância. E isso não só porque é a primeira manifestação de massa depois de tanto tempo, como também porque ela foi feita em boa hora e por uma causa justa. Mais uma vez ficou provado que a juventude brasileira não é alienada – talvez estivesse só à espera de uma boa oportunidade para se manifestar. Agora, é bom dizer também que o Brasil dos caras pintadas ao mesmo tempo é o Brasil dos meninos de rua assassinados, da revolta da Febem em São Paulo, da infância abandonada, que também são manifestações da juventude brasileira. Isso tudo prova a situação política e socialmente caótica que o Brasil está vivendo. (1)

Uma das músicas mais cantadas nas ruas foi “Como nossos pais”.
Belchior – Pois é. Claro que o meu trabalho, por ser um trabalho geracional, sempre esteve ocupado desses fenômenos, tentando transformá-lo em linguagem, em poesia, Neste momento acho importantíssimo dizer que o Brasil precisa perder qualquer ufanismo. Precisamos perder qualquer resto de ufanismo: esta ideia barata de que o Brasil é o maior país do mundo, o melhor futebol do mundo, que não temos vulcões, não temos terremotos. Estamos passando por um processo de degradação das instituições e da sociedade como nunca visto. Este momento está sendo bastante medicinal, porque estamos nos defrontando com o Brasil real, um país pobre, violento, de Terceiro Mundo, faminto, analfabeto e que precisa definitivamente optar pela cultura e pela civilização. Não podemos mais continuar vivendo dentro de estereótipos sem sentido histórico e sem enfrentar os problemas com realismo. A solução, depois de tudo isso, passa definitivamente pela democracia – é preciso abandonar qualquer ideia autoritária.

Falando de música: onde estão os novos intérpretes da MPB? Não existe um vácuo entre a tua geração e a de hoje, depois que a explosão do rock parece já ter dado o que tinha pra dar? (2)
Belchior – A música popular brasileira não está em crise de criatividade; o que existe é uma crise na comunicação. A MPB continua sendo extremamente representativa da nossa brasilidade, da nossa criatividade. Há todo um esforço para que a poesia popular cantada continue alcançando níveis elevados, mantendo a qualidade competitiva com qualquer música do mundo. Mas o que existe é uma falta de comunicação, ou uma falta de valorização pela comunicação daquilo que está se fazendo em música popular. É grave dizer isso porque o Brasil é um país que não tem orgulho da sua cultura, e não o tendo permite que uma lei que reserve 50% do espaço para música estrangeira possa vigorar. Não há país no mundo que ofereça 50% de sua reserva de mercado em música, de graça, para outros países. Será que os Estados Unidos ofereceriam esse espaço para a música popular brasileira? Será que a Inglaterra ou a França ofereceriam isso?

A qualidade do teu trabalho é indiscutível, mas o que explica o fato de Belchior e tantos outros aparecerem tão pouco na TV, tocarem tão pouco em rádio, terem tão pouco espaço?
Belchior – Existem os interesses dos meios de comunicação e das grandes companhias de discos. Isso, até antes de ser uma crítica, é uma singela observação. Acontece comigo o que acontece com a maioria do pessoal da minha geração. A MPB tem pouquíssimo espaço na comunicação. Música como a de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Jorge Benjor, Paulinho da Viola, João Bosco, Alceu Valença, a minha mesmo, e de tantos outros que continuam o trabalho criativo dessa geração, é ou relegada pelos meios de comunicação ou não tem o seu real valor pesado, medido e contatado como deve ser.

E o que determina isso?
Belchior – É claro que há uma influência dos modismos que surgem a cada momento e dos quais a comunicação se aproxima de forma tão avassaladora a ponto de exaurir e esgotar não só a criação dos gêneros como as linguagens e o gosto do público.

O que tu tens ouvido ultimamente?
Belchior – Eu tenho dois tipos de audição. Uma eu chamo de profissional, ou seja, procuro ouvir o máximo que possa para saber do que se trata e orientar minha produção. Aí entra tudo, desde música brega, “neossertaneja”, música nordestina, jazz, blues, metal, enfim. Agora, a minha preferência pessoal fica para aqueles cantores, compositores, intérpretes e instrumentistas que exercem seu ofício com preocupação nitidamente artística. Continuo gostando de Bob Dylan, John Lennon, Ray Charles, Otis Redding, Joe Cocker, Rod Stewart, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Benjor, Cartola, Nelson Cavaquinho... E gosto muitíssimo do pessoal do rock brasileiro, que dá continuidade à tradição de rebeldia do rock e à tradição de linguagem urbana e metropolitana, de revolta juvenil, como Titãs e Lobão. Mas há dois que continuam no meu coração: Rita Lee e Raul Seixas.

Chegaste a trabalhar com o Arnaldo Antunes, dos Titãs, não é?
Belchior – Produzi o primeiro disco da banda Performática, de onde saíram os Titãs. Sou o primeiro intérprete brasileiro que gravou músicas do Arnaldo.

O diferencial da tua música é realmente a qualidade e a preocupação com as letras, o aspecto poético. Fala dessa tua relação com a palavra.
Belchior – Eu fui para a música popular por causa da poesia. A música popular restaura toda a importância da poesia, inclusive o seu espaço primitivo, quando ela era dramática e cantada. O rádio e a televisão permitem que esse espaço tão importante da poesia possa ser recuperado pela poesia cantada. A minha preocupação no meu ofício continua sendo criativa, ligada com o que você pode viver através da palavra cantada. Vem daí o meu gosto pelos autores, aqueles que fazem música e letra.

Na música de hoje, a palavra não fica ofuscada ou diluída pelas imagens, como no clássico exemplo dos videoclipes?
Belchior – O videoclipe é uma linguagem televisiva marcante e interessante. O grande problema é a exaustão dos meios. Quando aparece uma opção como a dos clipes, surgem logo trezentos milhões de vídeos e a linguagem acaba esgotada antes de manifestar o efeito criativo que poderia ter. A voracidade com que a comunicação se aproxima dos fenômenos artísticos, transformando mesmo os objetos artísticos em meras mercadorias de consumo, impede que as linguagens se tornem eficazes e demonstrem seu potencial criativo. O videoclipe é uma linguagem contemporânea, moderna, que eu acho importantíssima. Depende do uso que é feito dela. (3)

Lançaste agora um CD com músicas tuas para o mercado uruguaio. Belchior está “invadindo” o Mercosul?
Belchior – Na verdade, muito antes do Mercosul eu já havia não só me identificado como uma figura latino-americana como havia lançado em diversos trabalhos a possibilidade de se pensar a América Latina contemporânea. Sempre fui partidário da ideia de que se deve expandir a noção e o conhecimento do que é a América Latina. Devemos transitar daquilo que é mais folclórico, estereotipado, para uma visão atualizada do significado humano, cultural, político e social do continente. Esse trabalho de integração das culturas já vem sendo feito pelos artistas, que sonharam com isso muito antes que os políticos, Eu espero que os políticos possam, de alguma forma, concretizar o sonho dos artistas – e eu me coloco entre eles – que cantaram e pensaram a América Latina contemporânea. (4)

E o CD?
Belchior – Nesta semana está saindo esse CD latino-americano, chamado “Eldorado”. São sete músicas cantadas em espanhol por Larbanois & Carrero e Laura Canoura, de Montevidéu, e sete músicas que eu canto em português. O nome do disco já se refere ao sonho e à utopia a que a palavra remete, e o ato de ser cantado nas duas línguas também quer ser simbólico de duas coisas. Primeiro, de que o Brasil deve atender ao apelo das outras nações do continente para que se integre nesta comunidade de pensamento, cultura e humanismo. A segunda coisa é que a língua portuguesa faz parte do universo latino-americano e deve ser, pelo menos através da palavra cantada, “recuperada” para esse universo ao qual ela natural e espontaneamente pertence.

Continuas pintando?
Belchior – Bom, eu sou desenhista, e a pintura para mim não é um hobby. Continuo fazendo as capas dos meus discos e o trabalho de caligrafia e ilustração da “Divina Comédia” (de Dante), que já está bastante avançado. Tenho um amor especial pela pintura, sobretudo.


Autorretrato de Belchior para a capa do disco "Divina comédia humana"

O que é mais uma parte da tua formação bastante heterogênea, que inclui desde os cantadores do Nordeste, corais de igreja, aulas de línguas, canto gregoriano, filosofia, rock, medicina etc. Com funcionou tanta diversidade junta?
Belchior – Eu tenho uma formação típica de menino do Nordeste, que estudou em colégio de padre e ouviu serviço de alto-falante. Comecei a fazer música no período universitário, em função do meu interesse pela poesia, sobretudo os poetas românticos e simbolistas. Depois, os nomes da linhagem de Walt Whitman, que posteriormente vim a saber que era fonte também do Bob Dylan. Tento fazer um tipo de música popular contemporânea que utilize todos esses recursos. Faço parte de uma geração para quem fazer música é produzir um objeto artístico explosivo. Os meus modelos para fazer essa música que seja uma versão contemporânea da poesia popular cantada continuam sendo Bob Dylan – um menestrel dos nossos tempos –, John Lennon e a música nova do Brasil.

Porto Alegre sempre te recebeu bem. Quais as tuas ligações com a cidade?
Belchior – As minhas relações com o povo gaúcho são as melhores possíveis já de longo tempo. A partir do Araújo Viana, fiz meu primeiro grande contrato e tive meu trabalho lançado pela Elis Regina. Venho ininterruptamente ao Rio Grande do Sul desde 1976, e isso criou uma emoção especial no exercício do meu ofício, porque tenho aproveitado para trocar muita coisa com o público. Além daqui, Santa Catarina, Paraná e Minas Gerais são seguramente os estados onde mais cantei. (5)

Quais os livros novos que vão na bagagem depois da Feira do Livro?
Belchior – Olha, estou indo na Feira justamente depois desta entrevista. Vou comprar o livro do Bob Dylan, o livro do Noel Rosa, “O anjo pornográfico”, do Ruy Castro... Livros que falam da vida do Paul Klee, do Miró, do Picasso, do Matisse... (6)

Nada dos autores que anunciam o fim da História, o fim das utopias? (7)
Belchior – Eu vejo esse autores como aqueles profetas que estão há muito tempo anunciando o fim do mundo. É difícil analisar o que quer dizer o fim da História. Não sei se se pode chegar a essa conclusão filosófica ou sociologicamente. Longe de qualquer pensamento mais profundo ou elaborado sobre o tema, acho que o fim da História só viria com o fim da humanidade, como aconteceu com os dinossauros. Naturalmente, mesmo dizendo isso, esses historiadores não esquecem de colocar seu dinheiro nas contas que têm.

A referência seria o fim das utopias. É possível acreditar nisso?
Belchior – Eu não acredito que haja o fim das utopias, o fim do pensamento, o fim do sonho. A imaginação faz parte do ser histórico do homem, e desse ponto de vista é ela que move o mundo e o pensamento. Não é sem razão que eu fiz recentemente um disco chamado “Elogio da loucura”, que é um disco utópico, sobre a aventura e o sonho jovem do nosso tempo.

Para encerrar: nós ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?
Belchior – Essa frase retrata um certo conformismo que, no meu ponto de vista, é característico da nossa cultura – infelizmente. Esse conformismo, a crença demasiada na força e na obrigação do passado, a confiança inesgotável na tradição e o fato de o Brasil ser um país atrasado sempre me ocuparam e sempre me preocuparam. Vem daí a razão dessas ideias tantas vezes aparecerem nas minhas músicas. O Brasil é um país atrasado nos dois sentidos, ou seja, está atrás de muitos comparsas da História e sempre chega depois da hora marcada. Nós já estamos na era do automóvel, mas não sabemos lidar com o automóvel. Matamos no trânsito mais gente do que em muitas guerras encarniçadas. Matamos num ano quase o mesmo número de soldados americanos mortos em dez anos no Vietnam. Quer dizer, dispomos de algumas tecnologias, mas não sabemos lidar com aqueles objetos para os quais já chegamos atrasados.

Mas mesmo assim dá para acreditar no futuro?
Belchior – É claro! Na verdade eu acredito no presente. Tenho fé no presente e esperança no futuro.

***

Comentários a respeito de John – ou melhor, de Belchior:

1) Pergunta e resposta se referem às manifestações pelo impeachment de Fernando Collor. Era comum que os jovens saíssem às ruas com as cores da bandeira do Brasil no rosto, daí a expressão “caras pintadas”.
2) Àquela altura, tomando como marco o lançamento do disco “As aventuras da Blitz” – da banda Blitz, obviamente –, a explosão da nova geração do rock brasileiro completava dez anos. É a turma de Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Titãs, Kid Abelha, Ira!, Engenheiros do Hawaii, Capital Inicial, Lulu Santos, Marina Lima, do pessoal mais ligado ao punk, como Plebe Rude e Inocentes, e muitos outros – inclusive Lobão, citado por Belchior na entrevista.
3) A relação música-imagem-mercado mudou definitivamente com a criação da MTV nos Estados Unidos, em 1981. A primeira versão brasileira, da Abril, é de 1990; tinha só dois aninhos de vida na época da entrevista. Parece surpreendente que Belchior fale em “voracidade” e “exaustão” antes da era da internet e dos milhares de canais de TV por assinatura à disposição? Lembremos Guy Debord: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação. (...) Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos –, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha”. Está nas primeiras páginas de “A sociedade do espetáculo”. De 1967.
4) O Mercado Comum do Sul (Mercosul), envolvendo Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, teve seu início oficial com a assinatura do Tratado de Assunção, em 1991.
5) O Auditório Araújo Viana é uma tradicional casa de espetáculos de Porto Alegre. Foi inaugurado em 1964 e hoje tem capacidade para cerca de 3.500 pessoas. Entre outras músicas de Belchior, Elis Regina gravou “Mucuripe” e, claro, “Como nossos pais”.
6) A Feira do Livro de Porto Alegre ocorre anualmente durante quinze dias, começando na última sexta-feira de outubro. Ao contrário de outras feiras do gênero, é realizada numa praça na região central da cidade, e não em espaços fechados. Sobre Bob Dylan, é difícil saber se se trata de um livro do próprio músico ou de uma biografia.
7) A referência aqui é especialmente a Francis Fukuyama, economista nipo-americano que ficou famoso com o artigo “O fim da história”, de 1989, origem de seu livro “O fim da história e o último homem”, de 1992. Fukuyama é hoje professor da Universidade de Stanford. E, sim, aparentemente fez fortuna a partir do livro.










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