Primo Levi tinha 24 anos e integrava um grupo de guerrilheiros antifascistas quando foi preso pelas Milícias fascistas no final de 1943. Em 21 de fevereiro de 1944, ele e outros mais de 600 prisioneiros judeus – homens, mulheres, crianças, famílias inteiras – souberam que seriam deportados no dia seguinte para o campo de concentração de Auschwitz.
sábado, 29 de outubro de 2022
Primo Levi: "Cada época tem seu fascismo"
“Nós já conversáramos com os fugitivos poloneses e croatas; sabíamos, portanto, o que significava partir”, escreve em É isto um homem?, no qual narra o período que passou no campo. “A noite chegou, e todos compreenderam que olhos humanos não deveriam assistir, nem sobreviver a uma noite dessas. Nenhum dos guardas, italianos ou alemães, animou-se a vir até nós para ver o que fazem os homens quando sabem que vão morrer.”
“Por sorte”, diz no prefácio do livro, sua deportação ocorreu num momento em que o comando nazista, dada a escassez crescente de mão de obra, resolveu prolongar a vida média dos prisioneiros nos campos de trabalho escravo e de extermínio, “concedendo sensíveis melhoras em seu nível de vida e suspendendo temporariamente as matanças arbitrárias”.
Levi estava entre os sobreviventes do horror quando o Exército soviético chegou ao campo, já abandonado pelos nazistas, em janeiro de 1945. “Jazíamos num mundo de mortos e de fantasmas. O último vestígio de civilização desaparecera ao redor e dentro de nós. A obra de embrutecimento empreendida pelos alemães triunfantes tinha sido levada ao término pelos alemães derrotados”, escreve pouco antes de falar da chegada dos soviéticos, que encerra o livro.
Depois da guerra, Levi retomou seu trabalho como químico e escreveu várias obras narrando os horrores do nazifascismo. Uma deles, A trégua, é uma espécie de sequência de É isto um homem? e descreve a longa e acidentada viagem de trem de volta à Itália em meio a uma Europa devastada pela guerra. Levi suicidou-se em 1997.
Qualquer ser humano que tenha passado por suas páginas sabe que o fascismo é uma praga a ser permanentemente combatida – seja na Itália que exatamente há um século viu a ascensão de Mussolini ao poder, seja no Brasil da tragédia bolsofascista de nossos dias.
Rubem Braga, direto do front: "O fascismo é uma praga difícil de exterminar"
“O fascismo é uma praga difícil de exterminar. É o preço que os povos pagam pela própria desídia. É a defesa frenética dos privilegiados”, escreveu o grande Rubem Braga numa das crônicas que enviou da Itália como correspondente de guerra do Diário Carioca.
Rubem Braga em 1973 (Foto: Alécio de Andrade/IMS)
Em setembro de 1944, Braga embarcou com soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) que lutariam contra o nazismo na Europa. O Brasil enviou mais de 25 mil soldados à Itália, e mais de 450 deles perderam a vida no campo de batalha.
Naquele momento, o fascismo italiano tinha apenas 22 anos, e Adolf H., que buscou muitas inspirações no modelo fascista de Benito Mussolini, estava há pouco mais de 11 anos no comando da Alemanha.
Acompanhando as tropas brasileiras, Braga testemunhou a devastação, a fome, a miséria e a violência que o fascismo semeou.
“Essa pobre Itália está pagando bem caro os crimes de seu palhaço sangrento”, escreveu numa das crônicas que despachou do front.
Num texto datado de 8 de fevereiro de 1945, a três meses da derrota alemã, atestou, como um profeta: [o nazista] “pode voltar com outro nome, na Alemanha ou fora da Alemanha. Ele pode brotar outra vez do chão – na Europa, ou na Ásia, ou em nossa América”.
No texto, que intitulou “Plantações”, o grande cronista fala sobre as estradas e caminhos nos quais os soldados enterravam minas antipessoais e antitanques. Mas às vezes era necessário que a própria tropa precisasse avançar por ali. Então, os mesmos mineiros que haviam plantado as bombas as retiravam, o que podiam fazer por adotar um esquema preciso de onde as haviam depositado, a chamada “amarração”.
Prossegue Rubem Braga:
“Os alemães não estão fazendo assim na frente brasileira. Nossos homens já têm colhido uma safra abundante de minas alemãs e italianas, antipessoais e antitanques – e essa colheita dá muito trabalho, porque as minas estão espalhadas sem simetria nenhuma. É evidente que mesmo assim seria possível ao inimigo retirar as minas, se tivesse necessidade. Mas seria então necessário a ele fazer uma ‘amarração’ muito minuciosa, complicada e rigorosíssima – o que não é prático.
O que se deduz daí, com muita probabilidade, é que o alemão não pretende voltar pelas estradas por onde se retira.
Certamente, em período de frente estabilizada, o nosso comando não somente tem preparados planos de possíveis ofensivas como também planos de resistência a possíveis ataques do inimigo. Mas esse pequeno detalhe dos campos de minas desordenados indica de um certo modo o estado de espírito do nazista. De um modo geral, ele sabe que não vai voltar. Vai indo, pouco a pouco, empurrado por todos os lados, e sabe que não voltará. É uma guerra sem esperança, uma luta de desespero. O tedesco vai indo. Mas um dia, ele, positivamente, não terá mais para onde ir – a não ser, oh!, meus irmãos, para o raio que o parta.
E o problema então – está chegando a hora de decidir esse problema – será fazer com que o nazista não volte. Porque ele pode voltar com outro nome, na Alemanha ou fora da Alemanha. Ele pode brotar outra vez do chão – na Europa, ou na Ásia, ou em nossa América.
O fascismo é uma praga difícil de exterminar. É o preço que os povos pagam pela própria desídia. É a defesa frenética dos privilegiados. E contra ele só há um remédio verdadeiro: conquistar e manter a todo custo a liberdade do homem, e só há liberdade entre os homens quando cada um vale pelo seu trabalho – e não pelo seu nascimento nem pelos seus privilégios. Ninguém se iluda: acabar com as injustiças nacionais e sociais, que são o caldo de cultura do fascismo e das guerras, será uma luta muito dura, uma grande luta do povo.
Mas acredito que vale a pena lutá-la, pela mesma razão que vale a pena lutar esta guerra de hoje. (…)
A terra não foi feita para plantar minas – foi feita para plantar batatas, estacas, trigo, café e mesmo – não creio que seja proibido, já que a terra é tão grande! – flores.
Está chegando a hora de resolver. Essas lavouras do futuro, a lavoura que meu filho e vosso filho vão colher amanhã, nós é que a semearemos agora. Pois – dizia o Eclesiastes – há tempo de semear e tempo de colher. E eu, com licença, acrescentarei: minas.”
No dia 30 de outubro, completam-se exatamente cem anos da ascensão do fascismo ao poder na Itália, com a nomeação de Mussolini ao posto de primeiro-ministro.