domingo, 29 de outubro de 2017

Lutero e a Reforma: "é difícil e perigoso agir contra a consciência"

por Paulo Hebmüller 

Lutero em pintura de seu contemporâneo Lucas Cranach, o Velho

Em 1483, o mundo em que Martinho Lutero nasceu, na cidade alemã de Eisleben, chacoalhava com transformações profundas. O Ocidente começava a fazer a transição da época feudal para a modernidade. O conceito de Estado era reformulado. A economia se transformava e o capitalismo mercantil nascia. As grandes navegações estavam à beira de “descobrir” o Novo Mundo. O humanismo e o Renascimento – com sua redescoberta das fontes da Antiguidade e a idealização do retorno a um estado original considerado modelo – injetavam novas ideias, retomavam a ciência e encontravam na nascente tecnologia da imprensa a oportunidade de se espalhar com rapidez nunca antes experimentada.
Em 1517, Lutero se tornaria um dos protagonistas de outras mudanças impressionantes que viriam. No dia 31 de outubro daquele ano, o então monge agostiniano e professor de Teologia da Universidade de Wittenberg pregou na porta da Igreja do Castelo, para debate público, conforme tradição da época, sua relação de 95 teses contra a prática da venda de indulgências. Bom filho da Igreja, Lutero não era contra a venda de indulgências, mas sim contra o abuso e a criação de uma espécie de “balcão espiritual” em que se dispunham autoridades e práticas eclesiásticas. Bispados e arcebispados, por exemplo, eram cargos comprados e vendidos como se a Europa de então prefigurasse a Brasília do século 21.
A Igreja ensinava que Jesus e os santos haviam adquirido um “tesouro de méritos”, o qual Cristo “quis que fosse distribuído aos fiéis para sua salvação”, conforme determinou Clemente VI, papa entre 1342 e 1352. Esses “méritos excedentes” poderiam ser concedidos como indulgências pela Igreja, e só por ela, para remir a alma da pena temporal pelos pecados. Inicialmente esse “crédito” valia apenas para o cumprimento das penas na terra, mas depois foi estendido também para o purgatório – o lugar em que as almas redimidas, porém ainda imperfeitas, esperariam para se juntar aos salvos. Em dado momento, a doutrina passou a estabelecer que os vivos podiam auxiliar as almas que estavam no purgatório obtendo indulgências para elas e diminuindo seu tempo nesse estado. É como se fosse feita uma “transferência de créditos” de uma conta bancária com altíssimo saldo para outra que estivesse no negativo.

Divisões

Reformatio na Igreja era a palavra de ordem de muitos movimentos que pipocavam em vários lugares já nos séculos 12 e 13, abastecendo as fogueiras da Inquisição com lideranças tachadas de hereges. O cisma que decorreria da ação iniciada por Lutero a partir das indulgências não dividiu uma Igreja única e abrangente. “Partes populosas do mundo cristão já se encontravam fora da comunhão romana”, lembram os historiadores ingleses Felipe Fernández-Armesto e Derek Wilson. (*)


Igreja do Castelo de Wittenberg (fotos: Paulo Hebmüller)

Desde 1054, Roma e os ortodoxos do Oriente estavam separados, e as chamadas “igrejas nacionais” – como a etíope e a da Armênia, cujo rei transformou o cristianismo em religião oficial no início do século 4, antes que Constantino fizesse o mesmo no Império Romano – também existiam de forma praticamente autônoma. A Reforma de Lutero, portanto, “não rachou uma Igreja monolítica; não introduziu heresias inéditas; não gerou as primeiras igrejas nacionais”, escrevem Fernández-Armesto e Wilson. Até mesmo o trono de Pedro já estivera dividido. A crise no papado produzira, entre 1378 e 1417, o chamado Grande Cisma, quando a obediência dos fiéis era dividida entre dois e às vezes três papas diferentes.
De acordo com o historiador inglês Patrick Collinson, para Lutero a Reforma não era uma novidade – mas as novidades “eram aquelas graves distorções da verdade que passaram por verdades em séculos recentes”(**). 

Na região de Lutero, cabia ao dominicano Johann Tetzel vender as indulgências, para o que ele criou uma espécie de jingle: “Quando a moeda na caixa tilintar, a alma ao céu sairá a voar” (do purgatório). Na sua tese 27, Lutero rebateu: o certo é que, “ao tilintar a moeda na caixa, podem aumentar o lucro e a cobiça”, pois atender à intercessão da Igreja “depende apenas da vontade de Deus”.
O próprio Lutero enviou suas teses ao arcebispo Alberto da Mogúncia, que informou a seus conselheiros que mandara esses e outros escritos do monge a Roma. À diferença do que enxergava em outros movimentos, que propunham mudanças de dentro para fora, sem a quebra da suposta unidade da cristandade, a hierarquia romana encontrou nas proposições de Lutero a existência de “doutrinas novas”. Ele teria colocado em xeque a autoridade do papa, a qual deveria estar acima de todo questionamento. Automaticamente foi aberto um processo por suspeita de heresia.

Mudança brutal

Criar uma nova denominação não estava entre os planos do monge, professor, teólogo e escritor. “A rigor ele propugnava pela renovação da Igreja, de acordo com parâmetros originais bíblicos, mas, contrariamente à sua vontade, surgiu uma Igreja Luterana”, diz o pastor Walter Altmann, presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Várias vezes, ao longo de sua vida, o próprio reformador diria: “Quem é Lutero? Um pobre e fedorento saco de vermes”. Para ele, aos cristãos importava seguir a Cristo, e não obedecer a um líder – autoproclamados “apóstolos” incluídos.
“A ênfase de Lutero foi de que a nossa salvação – justificação, segundo o termo usado na época – é por graça, e não poderia ser adquirida por conquista ou mérito nosso, e tampouco comprada”, explica Altmann, autor de Lutero e libertação, referência no tema em publicações na América Latina. “O jeito não é fazer com que Deus nos ame, pois as chagas de Cristo são prova suficiente disso, e sim amarmos a Deus. Esse foi o começo do que foi considerado uma revolução copernicana”, escreve Patrick Collinson.

As 95 teses foram gravadas em bronze na porta
da Igreja do Castelo (foto: Paulo Hebmüller)

Essas proposições abalaram os alicerces do edifício da Igreja medieval numa Europa que vivia sob o regime da cristandade – um todo político e social, um corpo dividido em estamentos, dirigido por um braço espiritual e outro secular, com duas cabeças: o papa e o imperador. “A mudança trazida por Lutero foi brutal”, afirma Roberto Romano, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. “Ele saiu de uma religião que por milênio e meio se estruturou com base no poder visível da hierarquia e transferiu o poder para a consciência, que é invisível. Isso é uma mudança radical.”
Os efeitos da leitura de seus textos e das traduções da Bíblia que surgiram a seguir fugiram do controle de Lutero. Um movimento camponês enxergou na Reforma a oportunidade de corrigir as injustiças do sistema feudal, dando origem à Guerra dos Camponeses (1524–1525), definida por Karl Marx como “o mais radical acontecimento da história alemã”. Os comerciantes, banqueiros e artesãos viram a chance de sair do domínio eclesiástico, assim como muitos príncipes. Muito sangue correu até que, em 1555 – já com Lutero morto –, fosse selada a paz de Augsburgo, quando se definiu o princípio de que cabia ao príncipe escolher a religião que seus súditos seguiriam. Até hoje, como resultado dessa época, o sul da Alemanha é majoritariamente católico, enquanto o protestantismo é dominante no Norte.

Imagem

Lutero é um homem controverso, objeto de cerca de mil novos títulos, entre estudos e livros, publicados anualmente em todo o mundo. Como todo personagem histórico dessa envergadura, sua imagem já foi pintada das mais diversas maneiras. Na antiga Alemanha Oriental comunista, o filho da terra (nascera em território do Leste) inicialmente foi retratado como “o conservador”, enquanto Thomas Müntzer, o líder dos camponeses revoltosos do século 16, era “o revolucionário”. Na década de 1970, quando o regime frustrava as promessas de democracia e hegemonia popular, o governo começou a temer insurgências e tratou de reabilitar Lutero como “o grande reformador” e um modelo de avanço com estabilidade. Incentivar o espírito revolucionário à Müntzer poderia ser marcar um gol contra.
Helmar Junghans, professor de História da Igreja da Universidade alemã de Leipzig, escreve que, para compreender Lutero, é fundamental ter em mente que na visão medieval a história é um campo em que se digladiam o reino de Deus e o reino de Satanás. Boa parte do que o reformador produziu foi em função das demandas de seu tempo: polêmicas com os adversários – não raro recheadas, de parte a parte, de expressões e caricaturas que parecem extremamente virulentas aos olhos de hoje – ou orientações práticas para as comunidades que aderiam à Reforma, sobre como ordenar sacerdotes, como proceder com batismos ou casamentos e como dar formação cristã às crianças, por exemplo. Às vezes, suas opiniões são extremadas. Em relação aos judeus, por exemplo, teve duas posturas. Em 1523, escreveu um texto defendendo-os e afirmando que era preciso respeitá-los, entre outras razões, porque Jesus era judeu. No final da vida, publicou um texto raivoso, incitando à discriminação.
Como também era visto como uma espécie de “herói da nação alemã”, o “alemão por excelência”, Lutero foi usado por alguns nazistas como referência para a perseguição aos judeus no Reich de Hitler. “Existem lados mais controvertidos da sua atuação, e esses às vezes têm sido destacados quase que com exclusividade, negligenciando outros aspectos. O que é característico de Lutero é que ele não se omitiu, e esse é o dado positivo”, diz Altmann. Para o pastor, é ilegítima a apropriação nazista do discurso de Lutero para justificar a morte de judeus. “Ele jamais exortou ao extermínio. De qualquer forma, uma comunidade luterana deve se sentir perpetuamente em dívida para com a comunidade judaica em função desse comportamento tardio de Lutero.”
Dependendo do ângulo do observador, o reformador é “um dos pais do espírito emancipatório moderno” ou “uma catástrofe na história da civilização ocidental”. Para ficar apenas nas definições da seara cristã, pode ser “o pai na fé para a cristandade” ou o “javali selvagem” que destruía as videiras plantadas pela Igreja, como disse o papa Leão X, que o excomungou em janeiro de 1521. Um exemplo de biografia que lhe faz um juízo negativo é a do francês Lucien Febvre, autor de Martinho Lutero: um destino. Para Roberto Romano, o livro é “injusto, preconceituoso e sobretudo chauvinista”, e seu autor ainda hoje “comanda muitas leituras enviesadas do Renascimento”.

Consciência

Goethe escreveu que depois de Lutero e da Reforma foi possível “voltar às fontes e compreender o cristianismo em sua pureza”. Para Hegel, Lutero rejeitou a autoridade da Igreja “e a substituiu pela Bíblia e pelo testemunho do espírito humano”. Marx afirmou que Lutero “venceu a servidão por devoção, substituindo-a, no entanto, pela servidão por convicção. Destruiu a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da fé”.
Em abril de 1521, já declarado herege e excomungado, o monge foi instado a se retratar de seus escritos perante o imperador Carlos V na Dieta (assembleia que reunia representantes do Império e da Igreja) de Worms. Lutero se negou, dizendo que sua convicção vinha das sagradas escrituras, às quais sua consciência “estava presa”: “Nada consigo nem quero retratar, porque é difícil, maléfico e perigoso agir contra a consciência. Aqui eu fico e que Deus me ajude. Amém”, respondeu.
Lutero na Dieta de Worms, em quadro de Anton von Werner
No século 19, o historiador inglês Thomas Carlyle afirmou que esse discurso em Worms “pode ser considerado a maior cena da história europeia moderna”, e que nele está o germe do puritanismo inglês, da Inglaterra e seus Parlamentos, das Américas e da Revolução Francesa. Exagero? Não para o professor Roberto Romano, da Unicamp. “Se seguirmos os traços de todas as revoluções democráticas modernas, chega-se a Lutero”, diz. “É possível ser moderno e antidemocrático, como Hobbes. O marco do nascimento do moderno e democrático é Lutero.”
Em 1967, numa reportagem sobre os 450 anos da Reforma – intitulada “Rebelde obediente” –, a revista Time qualificou Lutero como um “inovador religioso”, porém “conservador político”. O pastor Walter Altmann não concorda. “No século 16 não havia essa separação entre Estado e Igreja, ou entre secular e religioso, da forma como a conhecemos”, diz ele, que é também moderador (cargo equivalente a presidente) do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas (CMI). Com sede em Genebra, o organismo congrega quase 350 igrejas e entidades de mais de 120 países. “Na medida em que alguém advoga uma mudança tão radical no âmbito religioso, num regime que na época tinha uma forte tutela do religioso sobre o secular, inevitavelmente há repercussões de renovação também no âmbito secular.”
Entre as renovações que propôs, Lutero advogou pela alfabetização maciça e indistinta: cabia aos pais levar os filhos – e as filhas, novidade radical – para as escolas, além de tratar também da alfabetização dos empregados. “Lutero propõe mudanças tanto na organização do sistema escolar, tratando de questões sobre currículo, métodos, formação de professores e financiamento, como defende novos princípios e fundamentos para essa educação”, diz Luciane Muniz Ribeiro Barbosa, que apresentou na semana passada, na Faculdade de Educação da USP, a dissertação de mestrado Igreja, Estado e Educação em Martinho Lutero: uma análise das origens do direito à educação. Segundo Luciane, o reformador ressaltava que o ensino deveria ser para todos – incluindo, como se disse, as meninas –, ter frequência obrigatória e apresentar utilidade social.
Outro ponto fundamental, para Luciane – cujo trabalho foi orientado pelo professor Romualdo Portela de Oliveira –, é que o reformador procurou emancipar a escola do monopólio da Igreja. “Ainda que sua proposta de educação escolar seja baseada na ideia de uma educação cristã, com a Bíblia sugerida como o cerne do currículo, Lutero propõe que ela não seja mais uma tarefa da Igreja, mas sim uma responsabilidade das autoridades seculares”, diz. Essa ação pode ter contribuído para a ideia de separação entre Estado e Igreja, realidade que a época não conhecia.

Graça

Lutero casou-se em 1525 com a ex-freira Katharina von Bora, quinze anos mais nova que ele. Influenciada pelos escritos do reformador, ela fugiu do convento ao lado de outras companheiras. Todas rumaram para Wittenberg e várias se casaram com líderes do movimento. O casal teve três filhos e três filhas, duas das quais morreram ainda na infância. Desde que começou a lecionar, em 1512, até a morte, em 1546, o reformador traduziu, escreveu, deu aulas, pregou e viajou intensamente, num ritmo impressionante e ininterrupto. Nesses mais de 30 anos, produziu em média um escrito novo a cada duas semanas. A edição alemã de suas obras, incluindo os livros, pregações, cartas, prefácios e estudos bíblicos, já soma mais de cem tomos – e ainda não foi terminada.

Interior da Igreja do Castelo de Wittenberg (foto: Paulo Hebmüller)
Como incompleta ainda está, para muitos, a obra fundamental da Reforma, do ponto de vista cristão. “Ainda estamos cercados por propostas que tentam de certo modo comercializar ou quantificar as bênçãos divinas. Ser libertado desses traços de comercialização por uma mensagem que diz que, nesse particular, Deus a concede gratuitamente, e então nos convoca ao serviço ao próximo, me parece uma mensagem que continua relevante para a sociedade e para as igrejas”, considera Walter Altmann.
Para Roberto Romano, “se Lutero vivesse hoje no Brasil, estaria preso por invadir a TV Record e pregar suas teses na porta da Igreja Universal”. O professor lamenta que “uma porção muito grande de setores confessionais originários da Reforma e também do catolicismo tenha entrado por essa via da redução da graça divina à pura ascensão do capital financeiro”. Católico e admirador de Lutero, o professor diz que essa situação é pior do que uma infidelidade – “é uma traição à essência da Reforma”. “Na atualidade, é necessário haver o retorno à pregação do essencial da graça de Deus contra essa imersão plena no mercado em que está virada toda a cultura contemporânea”, conclui Romano.

(*) Reforma – O cristianismo e o mundo: 1500-2000, de Felipe Fernández-Armesto e Derek Wilson. Record, 1997
(**) Reforma, de Patrick Collinson. Objetiva, 2006

(Publicado no Jornal da USP, ed. 814, 5 a 11 de novembro de 2007, aos 490 anos da Reforma Protestante)