Waldir e Priscila com Francesco na formatura da pré-escola |
PRIMEIRO,
enquanto pôde falar; depois, quando passou a formar palavras com as letras que
indicava numa tabela que os pais fizeram; e, finalmente, quando a comunicação
ficou limitada ao único movimento que lhe restou do corpo – o do olho direito,
que indicando para o alto significava “sim”, e para baixo, “não” –; Francesco
sempre deixou claro que queria ir para casa, que não desejava ficar no
hospital, que esperava viver seus últimos momentos no seu próprio quarto e ao
lado dos seus familiares.
Ele sabia do que falava. Hospitais, UTIs, cirurgias,
tratamentos longos, pesados e complexos estiveram em sua rotina durante cerca
de nove anos de uma vida que se interrompeu pouco depois do décimo-primeiro
aniversário.
Francesco sabia também que sua vida seria curta; que seus
dias estavam contados.
Certa vez, os pais o levaram, na cadeira de rodas, para
conhecer a obra da casa nova que construíam para a família na cidade de Amparo,
interior de São Paulo. O menino deixara claro que não queria ir. Ao chegar,
abaixou a cabeça, fechou os olhos. Não quis ver nada. Não cedeu à insistência
dos pais para entrar e conhecer o que seria o seu quarto.
Porque nunca seria.
“Ele sabia que não iria morar lá, e não morou mesmo”, conta a
mãe, a psicóloga Priscila Beira, 39 anos.
Foi numa manhã de um domingo de fevereiro que o desejo que o
menino havia manifestado por tantas vezes se cumpriu. Francesco morreu em casa,
junto aos seus brinquedos, suas lembranças e seus amados.
Partia o filho; nascia a semente de um projeto destinado a
amparar pais e mães que também terão que enfrentar a entrega de uma criança ao
fim provocado pelo câncer, mas que não têm os mesmos recursos médicos e
financeiros com que a família Beira pôde contar ao longo de sua própria luta.
Uma criança feliz
Francesco faz pose numa loja de esportes antes de escolher um novo par de tênis |
FRANCESCO
Leonardo Beira era o segundo filho de Priscila e do empresário Waldir Beira
Junior, 48 anos, vice-presidente da Química Amparo, fabricante dos produtos Ypê.
Quando o menino estava com cerca de um ano e cinco meses, os pais notaram que
ele passou a ficar com o pescoço torto. O médico consultado recomendou que os
pais prestassem atenção no que aconteceria nos dias seguintes para verificar se
não se tratava de um torcicolo ou algo do gênero. Mas, logo a seguir, Francesco
começou a ter episódios de vômito e também já não andava mais em linha reta.
De volta ao médico, uma ressonância constatou um grande tumor
– do tamanho aproximado de um quarto do cérebro –, muito próximo ao cerebelo.
Encaminhados a um neurocirurgião, os pais ouviram que não havia o que fazer: o
tumor era grande demais e não se tratava de um caso cirúrgico. “O médico nos
disse que voltássemos para casa e procurássemos outro tipo de serviço, porque o
Francesco iria caminhar muito rapidamente a óbito”, conta o pai.
Waldir e Priscila procuraram a indicação de um amigo médico e
chegaram a outro neurocirurgião, que, após analisar os exames, decidiu pela
operação. A primeira das sete cirurgias encefálicas pelas quais Francesco
passou ao longo da vida – houve ainda muitas outras intervenções para atacar
diferentes problemas – durou mais de catorze horas, inaugurou suas estadias em
UTI e teve um pós-cirúrgico complexo. Foram cerca de trinta dias no hospital.
Francesco precisou de traqueostomia e gastrostomia, ficou com dificuldades
respiratórias, sem conseguir falar e deglutir. A massa tumoral foi removida e,
apesar de tudo, a criança conseguiu se recuperar.
Três meses depois, uma nova ressonância detectou que o tumor
havia voltado, quase do mesmo tamanho. Ao contrário da primeira vez, agora
havia infiltração da doença no próprio tronco encefálico.
Uma segunda cirurgia só pôde remover parte do tumor. Francesco
saiu dela sem movimentar o lado direito do corpo e teve um problema de desvio
do olho. Começou então a passar por sessões de quimio e radioterapia, enquanto
também era atendido por fonoaudiólogas e fisioterapeutas para recuperar os
movimentos e a fala e reaprender a deglutir.
Mais uma vez, recuperou-se.
Nos anos seguintes, passou rotineiramente por quimio e
radioterapia, exames de controle, eventualmente novas cirurgias. Mas ainda
assim o menino ia à escola, viajava com a família, tinha aulas de tênis e de
desenho – e desenhava bem, contam os pais.
“Francesco era uma criança feliz e não tinha nenhum
sentimento de que fosse vítima com relação a essa questão”, diz Waldir. “Se
tinha algum mal-estar por causa da quimioterapia, era uma coisa momentânea.
Passado o mal-estar, ele levava uma vida normal. Conhecia todo mundo nas
clínicas, era amigo de todo mundo.”
A imagem do tumor no tronco encefálico seguia aparecendo nos
exames de ressonância. Enquanto não contrastasse, porém, ela era como um vulcão
adormecido: o perigo existe, mas só se houver uma erupção.
Quando Francesco estava com cerca de nove anos de idade, o
contraste reapareceu num exame. O vulcão voltara à atividade.
Um alívio
O menino na formatura da pré-escola, aos seis anos |
NEM
as novas drogas usadas na quimioterapia na tentativa de combater o tumor surtiram
efeito. Em poucos meses, Francesco piorou muito. Já não conseguia deglutir nem
articular a língua. Se levantava à noite para ir ao banheiro, caía. Passou a
não poder mais dormir sozinho, perdeu o controle das funções fisiológicas e
teve que ir para a cadeira de rodas.
“Tudo o que uma enfermeira fazia eu sabia fazer”, conta
Priscila. Isso significava, entre outras coisas, aspirar a traqueostomia,
manipular a gastrostomia e até passar a sonda de alívio, para que o menino
pudesse fazer xixi.
Os pais levaram novamente os exames a um neurocirurgião. O
médico propôs uma intervenção para trazer algumas melhoras pontuais, porque o
tumor estava como que emaranhado nos feixes do tronco cerebral e era impossível
retirá-lo. “Não era a cura, e ele deixou isso bem claro para a gente”, diz a
mãe. “Mas o Francesco estava muito mal. Então, se isso trouxesse uma melhor
qualidade de vida para ele, era superimportante”, acrescenta o pai.
Em janeiro de 2010, o menino enfrentou mais uma cirurgia
encefálica. Outra vez, melhorou. Ainda na UTI, por exemplo, voltou a conseguir
fazer xixi normalmente.
Sua rotina no retorno para casa passou a incluir a presença
de muitos profissionais: fisioterapia para respiração e coordenação motora;
fonoaudiologia para a fala e para a deglutição; psicóloga etc. Francesco voltou
a falar, a comer, a controlar as funções fisiológicas. Sua cadeira de rodas não
precisava mais do encosto para a cabeça. Com ajuda, conseguia caminhar.
“Isso foi uma alegria para a gente”, revela Priscila.
A situação mudaria novamente em abril. O menino teve um
sangramento no cérebro e tudo o que havia progredido desde a cirurgia de
janeiro regrediu.
Das conversas com os médicos veio a certeza de que novas
melhoras não seriam mais possíveis. Os pais então mudaram de estratégia.
Promessa de Natal
Francesco prestes a fazer uma descida de tirolesa |
ERA
às quartas-feiras: Priscila escolhia programas para fazer com o filho em
diversos locais de São Paulo: museus, centros culturais, parques, eventos.
“Com o filho”, bem entendido, significava um pouco mais do
que mãe e menino de mãos dadas. Somava-se à cadeira de rodas um grande aparato:
respirador, aspirador para a traqueostomia, enfermeira, cuidadora.
Os passeios incluíram o movimentadíssimo Salão do Automóvel –
Francesco adorava carros – e apertadíssimas galerias do bairro da Liberdade
para procurar games ou bonecos dos personagens de que o menino gostava.
Sua agenda de tratamento restringiu-se ao indispensável – por
exemplo, fisioterapia respiratória e fonoaudiologia para a deglutição, que lhe
dava o prazer de sentir o sabor da comida. Os demais profissionais foram
“cortados”, e a quarta-feira foi vetada para atendimentos. Era o dia para mãe e
filho passearem juntos e desfrutarem de momentos de alegria.
Chegou dezembro, e Francesco se mostrava nervoso, não dormia
e, quando deitava com a mãe, cutucava seu braço e não a deixava dormir também.
Como ele já não falava, os pais tentavam fazer com que respondesse apontando as
letras na tabela. Até que o menino esclareceu que estava com medo de passar
mais um Natal no hospital, como havia acontecido nos três anos anteriores.
Waldir ligou então para o oncologista Sidnei Epelman,
responsável pelo tratamento. O médico falou com Francesco ao telefone e
explicou que o quadro era sério, mas estável, e que tudo indicava que ele
poderia passar o Natal em casa, junto da família. Dias depois, numa consulta,
Epelman repetiu a avaliação. O menino já estava mais calmo.
Na madrugada do dia 19 de dezembro, Francesco sofreu uma
grande convulsão. Um novo sangramento levou a outra internação. A situação era considerada
gravíssima.
“Eu disse: doutor Sidnei, nós prometemos que ele iria passar
o Natal em casa. Vamos montar um esquema e levá-lo para casa. O senhor acha que
dá?”, lembra o pai. Dá, respondeu o médico. O problema era a doença de base – o
câncer –, mas Francesco poderia ser mantido clinicamente estável.
A família “movimentou o mundo” e conseguiu montar uma
verdadeira UTI em casa para recebê-lo. Na manhã do dia 25, Francesco foi
transferido para o apartamento da família em São Paulo. Ficou feliz ao perceber
que no dia do Natal estava em casa, ao lado dos pais, das irmãs e de outros
parentes.
No dia 27, seu aniversário de onze anos, ele teve nova
hemorragia e voltou ao hospital. A família sabia que o final da vida de
Francesco estava chegando. Era o momento de preparar as condições para cumprir
a vontade do filho de passar seus últimos dias em casa.
“Durante esse percurso todo, esses nove anos de cirurgias,
quimioterapia, radioterapia e todas as demais terapias auxiliares, ele nunca
reclamou de nada. A única coisa de que ele não gostava era de ficar no
hospital, especialmente na UTI, porque ali é aquela rotina pesada: luz acesa o
tempo todo, uma parafernália, o paciente nunca fica mais de uma hora sem uma
intervenção. Nisso o Francesco não dormia, não descansava. O seu desejo sempre
era ir para casa”, relata Waldir. “Nós tivemos muitas internações, muito tempo
de UTI, mas sempre com uma perspectiva de que estávamos investindo tudo para
ter uma melhora ali na frente. Aí valia a pena. Mas, naquele momento, o que
víamos? Em vez de ser a tábua de salvação, a UTI era um fardo. Agora era muito
mais importante ter qualidade de vida, tranquilidade, sossego e presença dos
familiares do que aquela rotina pesada.”
Um pé aqui, outro ali
Francesco onde queria estar: em casa |
COM
OS dois pés na realidade, você não aguenta. Mas, com os dois na esperança,
talvez não veja o que precisa ser visto. Manter um pé na esperança e outro na
realidade – eis o difícil equilíbrio, define a médica Ana Cláudia Quintana
Arantes, à época coordenadora de Cuidados Paliativos do Hospital Israelita
Albert Einstein, onde Francesco se tratava.
“A grande arte é conseguir caminhar junto com a família no
momento da esperança, mas ajudá-la a também colocar um pé para encarar a
realidade. Ela é um pântano, mas há momentos muito bonitos e doces para ser
vividos nesse final”, acredita a médica.
Para Ana Cláudia, o período da última internação de Francesco
foi o de preparar a família para dar conta de respeitar a vontade do filho. Seu
papel, considera, foi intermediar pais, equipe e infraestrutura hospitalar e
doméstica para dar aval ao desejo de Francesco e à decisão de Waldir e Priscila
de que o menino ficasse em casa, sem ter dúvidas quanto ao acerto e à segurança
da escolha.
Com a equipe, os pais fizeram o levantamento do que seria
necessário: respirador, monitor, aspirador, oxímetro, tubos de oxigênio,
gerador de eletricidade para o caso de falta de luz (a família preencheu um
cadastro na Eletropaulo que comprometia a empresa a avisar com antecedência
sobre qualquer corte no condomínio ou na região por conta dos equipamentos que
não podem ser desligados), no-breaks,
profissionais 24 horas, apoio de ambulância e médicos em caso de urgência.
No
início de janeiro de 2011, consciente, Francesco saiu de sua última internação
hospitalar e foi para casa.
“Nós sabíamos que ele iria falecer, fosse em casa ou no
hospital”, diz a mãe. “Ele foi com toda a segurança. Em nenhum momento deixou
de ter em casa alguma coisa que teria no hospital.”
A chama da vela
Os atores Fernando Sampaio e Domingos Montagner participam de espetáculo da série Tucca Aprendiz de Maestro. Montagner é embaixador da Tucca. Foto: Gustavo Scatena/Imagem Paulista |
“O
QUE você espera de mim?”, perguntou a enfermeira inglesa Cicely Saunders a
David Tasma, um paciente que chegou com câncer avançado ao hospital em que ela
trabalhava. “De você eu quero o que tiver de melhor na sua mente junto com o
que tiver de melhor no seu coração”, respondeu Tasma. A resposta marcou muito a
enfermeira, que viveu entre 1918 e 2005 e é considerada a criadora dos cuidados
paliativos modernos.
“Isso é o que resume o nosso trabalho. Não se pode pensar num profissional
de cuidados paliativos que não seja uma pessoa muito boa no que faz. Tem que
buscar o melhor em termos de formação, de conhecimento técnico e de
atualização, mas tem que ter o coração envolvido”, resume a médica Ana Cláudia.
Ainda pouco difundida e compreendida no Brasil, a prática dos
cuidados paliativos é muito disseminada em vários países da Europa e em lugares
como Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Japão.
Os cuidados paliativos, de acordo com a Organização Mundial
da Saúde, consistem na assistência integral oferecida a pacientes e familiares
quando diante de uma doença grave que ameace a continuidade da vida. Em outras palavras, os cuidados paliativos priorizam o
conforto e o bem-estar do paciente e dos familiares nas dimensões
física, social, emocional e espiritual quando se sabe
que a doença não responde mais aos tratamentos convencionais e que o desfecho se
aproxima.
É o contrário da obstinação terapêutica, quando
todos os recursos tecnológicos são utilizados para manter a sobrevida – que,
não raro, se traduz numa pessoa inconsciente cujas funções orgânicas só se
sustentam porque ligadas a aparelhos. Para muitos profissionais, a obstinação
terapêutica – ou distanásia – nada tem a ver com prolongamento da vida, mas sim
com adiamento artificial da morte, aumentando o sofrimento do paciente e da
família.
Os cuidados paliativos estão ligados ao conceito
de ortotanásia, ou a morte no tempo certo. O fim da vida não é adiado
artificialmente pelos aparelhos, mas também não é antecipado deliberadamente.
A ortotanásia pode ser associada à chama de uma
vela, que se extingue naturalmente.
“A gente nunca sabe quando vai ser o final. Enquanto a pessoa
está viva, tem que estar bem cuidada”, diz a psicanalista Claudia Epelman,
vice-presidente da Tucca - Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer.
“Até o momento em que a equipe acredita que há uma chance de cura, por menor
que seja, vai atrás. Mas quando o paciente estiver sofrendo mais do que
qualquer outra coisa, é hora de parar com o tratamento e começar com os
cuidados paliativos.”
Criada há quinze anos com foco em tumor cerebral em crianças
e adolescentes (daí a sigla), a Tucca ampliou sua atuação para atender todos os
tipos de câncer nessas faixas etárias. Em 2001, firmou uma parceria com o
Hospital Santa Marcelina, na zona leste de São Paulo – a de maior densidade
populacional da cidade, mas até então praticamente desassistida em termos de
centros de referência para tratamento de câncer.
No Ambulatório de Oncologia Pediátrica do hospital,
construído em 2007 com financiamento da Tucca, as crianças passam por consultas
e recebem todo o tratamento, enquanto mães e familiares também têm a atenção de
uma equipe multidisciplinar. Não há fila de espera, e a Tucca cobre tudo o que
o Sistema Único de Saúde (SUS) não consegue oferecer. Os recursos são obtidos
por doações e por meio de projetos culturais, via Lei Rouanet, com a promoção
de espetáculos e concertos na Sala São Paulo (clique aqui para saber mais).
Claudia e seu marido Sidnei Epelman – o oncologista que
tratou de Francesco – dividem tarefas na Tucca e no Hospital Santa Marcelina:
ela coordena a equipe multidisciplinar do Serviço de Oncologia Pediátrica,
enquanto ele é o diretor do serviço; ela é vice-presidente da Tucca, ele é o
presidente. A Tucca já tratou mais de 2 mil crianças e adolescentes, alcançando
até 80% de cura, padrão dos melhores centros internacionais.
“Nossa meta é oferecer o melhor, do diagnóstico até a
reabilitação”, diz a psicanalista. “As pesquisas, os avanços, a alta
complexidade dos tratamentos, tudo é feito para curar os pacientes. Mas temos
que encarar aqueles que não se curam. Isso é um fato, é uma realidade, e eles
precisam ser assistidos.”
De mãos dadas
Os carros eram uma paixão de Francesco |
“CARROS”,
da Disney – Francesco adorava os personagens do filme. Uma de suas diversões
era colecionar os carrinhos. Às vezes, modelos novos apareciam, mas nem sempre
estavam disponíveis no Brasil. O menino e o pai entravam em leilões on line para arrematar novidades. Feita
a compra, ficava a expectativa da chegada do novo item da coleção pelo correio.
A ideia de retomar os leilões pela internet foi desestimulada
por um dos médicos na fase final de Francesco em casa. O menino criava uma
ansiedade por conta de brinquedos dos quais – ele sabia – não poderia usufruir.
Àquela altura, o único movimento preservado em seu corpo era o do olho direito,
para cima ou para baixo.
Era hora de lembrar das coisas boas que a família havia
vivido.
E foram muitas: viagens no Brasil e no exterior,
comemorações, vitórias, alegrias, conquistas.
Hora de estar em família, abraçar-se e ouvir música juntos.
A irmã mais velha, Giovanna, então com 13 anos, pedia para
ficar sozinha no quarto com Francesco. Dizia aos pais que às vezes lembrava de
alguma briga com o irmão e queria pedir desculpas.
A pequena Chiara, então com três anos, também ficava no
quarto. O menino sempre se divertiu muito com a irmãzinha.
“Nós conversávamos com elas para prepará-las e dizer que o
Francesco iria partir”, conta Waldir.
Numa terça-feira, Francesco não acordou. Com a experiência de
um curso não formal de medicina trilhado ao longo de nove anos de prática,
Priscila constatou o coma. Ligou para uma médica que foi à casa da família e
confirmou o quadro.
No sábado seguinte, foi também a mãe que detectou a morte
cerebral do filho. Novamente a médica foi chamada para a confirmação.
Na manhã de domingo, os aparelhos davam o alarme de que os
batimentos cardíacos estavam caindo.
Priscila, grávida de seis para sete meses, não quis ficar no
quarto.
Waldir chamou a filha Giovanna. Cada um segurou uma das mãos
de Francesco e, ao longo de cerca de duas horas, pai e filha acompanharam a
queda gradativa do ritmo dos batimentos.
Era a manhã do domingo 13 de fevereiro de 2011. Em casa, aos
onze anos, Francesco partia.
Sem lugar
Tucca Hospice foi inaugurado no dia 1º de outubro Foto: Saul Nahmias |
COMO
acontece com as outras crianças?, perguntavam os pais de Francesco ao doutor
Sidnei Epelman ao longo do tratamento. Família e médico conversavam muito sobre
as atividades da Tucca, e os Beira sabiam que dispunham de recursos dos quais
muitos outros brasileiros não podem lançar mão.
Para muitas famílias, a luta é travada até o fim em meio à
parafernália das UTIs. Para outras, a marca são as internações intercaladas com
períodos em casa, mas em condições precárias e muito distantes das ideais.
“Imagine essa criança, em estado terminal, numa UTI. No
momento em que ela mais precisa de alguém para apertar a sua mão, a mãe só tem
meia hora de visita e fica as outras vinte e três horas e meia do dia sentada
num banquinho esperando por esse momento”, diz Priscila.
“A gente percebe que toda a orientação é voltada para a cura.
No momento em que alguém diagnostica que não há cura, parece que essa situação
não tem mais lugar. Na fase final do Francesco, vimos que ele precisava de
profissionais mais cuidadosos e mais sensibilizados do que quando estava bem”,
ressalta Waldir.
“Parece que, quando o paciente chega nessa fase final, ele é
meio que abandonado, e só resta esperar. Mas, enquanto está vivo, os
sentimentos existem, e existe a necessidade de alguém do lado, de carinho, de
conversa”, completa Priscila.
As perguntas de Waldir e Priscila encontraram parte da
resposta no sonho acalentado pela Tucca de construção de um hospice pediátrico,
exatamente para receber crianças sem possibilidade de cura e suas famílias.
A prática de um hospice também é novidade no Brasil, embora
difundida em outras partes do mundo. De fato, é um lugar – um local para
acolher pacientes a quem os tratamentos não dão mais resultado. Mas é muito
mais do que isso: é um conceito. Baseados nos cuidados paliativos, os hospices
preparam pacientes e familiares para viver da melhor maneira possível o tempo
que terão antes da morte do doente.
Boa parte da construção do Tucca Hospice Francesco Leonardo
Beira, o primeiro do gênero no Brasil, inaugurado no dia 1º de outubro, foi garantida
pela família Beira, com o dinheiro que estava destinado para a conta e o futuro
do menino. O atendimento integra os serviços do Hospital Santa Marcelina e será
mantido pela sua equipe.
Para Waldir, de alguma forma o projeto representa um sentido
a toda a luta que Francesco travou pela vida.
O hospice tem três quartos para acomodar as crianças e seus familiares.
É um espaço claro, colorido e cheio de luz.
Por sugestão de Waldir e Priscila, os quartos têm grandes janelas que,
quando totalmente abertas, permitem ver o céu. Outro componente importante é
uma banheira, inspiração que veio da experiência da família.
“Eu entrava com ele na banheira em casa, o que não era fácil.
Uma enfermeira tinha que me ajudar, porque ele era pesado, e não podia passar
uma gota d’água pela traqueostomia”, conta a mãe. “Eu ficava com ele,
conversando, contando histórias, ou ficava só abraçada. Fazíamos isso todo
domingo. Ele adorava ficar na banheira e esperava a semana toda por isso.”
(O “só”, de “só abraçada”, claro, fica aqui justamente
destacado.)
Dois meses depois da perda do filho, Priscila daria à luz
mais uma menina: Ana Francesca, que carrega no nome a homenagem ao irmão que
não chegou a conhecer.
Libertação
Francesco com a irmã mais velha, Giovanna |
“NAQUELE
momento da partida com o Francesco, em que os aparelhos apontavam para a parada
e estávamos ao lado dele, já começava a nascer a saudade do filho que esteve
conosco por tanto tempo. Mas, ao mesmo tempo, pelo amor que eu sentia por ele,
tinha que deixá-lo partir. Era a libertação daquele estado em que ele se
encontrava. É muito mais digno e demonstra muito mais amor você libertar do que
tentar prender um ser humano naquela condição”, ensina Waldir – que, como
Priscila, é espírita. “Nascia também uma paz de espírito muito grande pelo
senso de dever cumprido e de ter feito tudo o que podia ser feito. Mas você tem
que se dobrar às leis da natureza, porque elas são superiores.”
Já muita coisa foi
vista neste mundo. Mas nunca se encontrou nada mais triste que caixão pequenino, escreveu numa de suas histórias o moçambicano Mia Couto. Há, porém, uma serenidade e uma
grandeza no olhar dos pais de Francesco que parece derrubar qualquer grande tristeza
incontida em caixão pequenino, e que não deixa indiferente quem o mira.
Francesco, é certo, não está mais aqui – mas, como diz a
médica Ana Cláudia Quintana Arantes, sua vida seguirá existindo, porque atravessará
a vida de muitas crianças e famílias a quem o menino feito memória acolherá no
Tucca Hospice Francesco Leonardo Beira.
por Paulo Hebmüller, jornalista, São
Paulo - SP
pauloeh@uol.com.br