A tragédia – é assim, ou com sinônimos como catástrofe, que os moradores se referem à gigantesca enchente que alterou a geografia da cidade de Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro, na madrugada de 12 de janeiro deste ano. “Depois da tragédia” e “antes da tragédia” são expressões que surgem com frequência em qualquer conversa, seja com sobreviventes que querem contar sua história, com familiares de vítimas ou com moradores que não foram afetados. É como se ali tivesse sido criada uma nova categoria definidora do tempo, a exemplo da que marca a era cristã: saem a.C. e d.C. e entram a.T. e d.T.
Nela morreram 428 pessoas, de acordo com as estatísticas divulgadas pela Defesa Civil do município no dia 23 de fevereiro. Pelo menos 85 pessoas ainda estavam desaparecidas até o início de março. O número de desabrigados e desalojados nos primeiros dias chegou a 8.324, dos quais 789 ainda estavam num dos 40 abrigos em funcionamento no final de fevereiro. Toneladas de terra, lama e pedras desceram violentamente dos morros. Em apenas um deslizamento, cerca de 1.000 toneladas de lama vieram abaixo, atingindo velocidade de 150km/h, o equivalente a uma avalanche. Centenas de casas simplesmente sumiram do mapa. Ao menos 80 casos de leptospirose foram confirmados na cidade, cuja população é de 182 mil habitantes.
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Entre os dias 28 de fevereiro e 5 de março de 2011, este repórter passou uma semana de suas férias trabalhando como voluntário na Comunidade de Nova Friburgo da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (Ieclb), em atividades como montar e entregar cestas básicas. A Comunidade, assim como muitas outras igrejas, ONGs e entidades de diversos tipos, envolveu-se desde o início na assistência aos atingidos. A impressão, aliás, é que a ajuda direta às vítimas da tragédia, depois do socorro na emergência, tem vindo justamente de fora da esfera estatal.
As autoridades, que no primeiro momento mobilizaram recursos para o atendimento de emergência – os moradores contam que era incessante o tráfego de helicópteros, ambulâncias, caminhões e viaturas de bombeiros de diversos estados e das Forças Armadas, que também montaram hospitais de campanha –, agora analisam como fazer as obras de infraestrutura para que as chuvas, presença garantida nos próximos verões, não resultem em tantas perdas humanas e materiais.
No domingo de carnaval, o vice-governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, designado desde a tragédia para estar à frente das operações na região serrana, anunciou que entregaria em poucos dias à presidenta Dilma Rousseff um levantamento com os custos de reconstrução de 195 pontes e das obras de contenção de 260 encostas nos sete municípios atingidos.
Os moradores temem que as prioridades não sejam claramente definidas; que os recursos se percam pelos descaminhos da burocracia e da corrupção; que muitas mortes tenham que ser choradas nos janeiros que virão.
Carros viraram passarela para pedestres depois da enchente (*) |
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O colombiano Gabriel García Márquez deu à sua autobiografia o título de Viver para contar porque, para ele, “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.
O relato a seguir não é fruto de um trabalho sistemático de percorrer as regiões atingidas, nem de entrevistas com autoridades a respeito da recuperação da cidade. Este blog apenas registra as histórias e os depoimentos de algumas pessoas com quem o autor conversou em momentos de intervalo das atividades na Comunidade, quando, guiado pelo pastor Adélcio Kronbauer ou por outros membros da Igreja, conheceu algumas das regiões atingidas em Nova Friburgo. Não se trata aqui, portanto, de apresentar uma cobertura jornalística formal. Este blog procura fazer não mais do que o exercício de dar voz a quem viveu para contar, e por isso, em respeito a essa voz, a palavra “tragédia” aqui aparecerá não poucas vezes.
Como estar na função de voluntário não “desliga” o repórter, em alguns casos as atividades de entrega de doações ou ajuda na organização de material – como a manhã de trabalho na Aldeia Kinderdorf – proporcionaram o encontro com pessoas que se dispuseram a narrar parte do que viveram. Outra parte, certamente a maior, deixou sua marca entranhada na carne e na alma desses friburguenses, e dificilmente poderá ser traduzida em palavras.
Eles viveram – e por isso contam.
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“Tia Nilda, eu vou morrer!”
Na sacada do segundo piso de uma casa grudada à encosta, o menino Felipe, de 11 anos, vê a enxurrada de lama que desce com violência junto à construção. Ele e outro garoto do bairro, Wellington, de apenas 3 anos, estão refugiados ali enquanto a água no meio da rua sobe a ponto de bater no peito de quem se arrisca a enfrentar a forte correnteza que o temporal formou.
Na casa da frente, do outro lado da rua, a tia de Felipe procura tranquilizar as crianças. É o sobrinho quem grita:
- Tia Nilda, eu vou morrer!
Dona Nilda também está no segundo piso. No andar térreo de sua casa, a lama bate no teto. O telhadinho do portão da frente, com mais de dois metros de altura, escapa por poucos centímetros de ser engolido pelo mar de lama.
- Calma, Felipe, eu já chamei os bombeiros. Eles já vão chegar pra te ajudar – grita ela para tentar ganhar tempo e acalmar os garotos. Mas Dona Nilda sabe que os bombeiros não virão. Primeiro, porque na verdade ela não ligou e, mesmo, os serviços telefônicos entraram em pane nessa madrugada; segundo, porque o acesso de qualquer veículo à parte baixa do bairro Solaris I, onde esse e outros dramas se desenrolam, é impossível.
De seu refúgio, Felipe vê uma barreira ao lado da construção desabar com a enxurrada. O garoto grita para a tia que vai se jogar na correnteza para chegar nadando à casa dela.
- Não, Felipe, fica quietinho aí! Abraça o Wellington e fica aí! – ela responde.
- Mas eu vou morrer, tia Nilda! Tá caindo barreira, passou uma pedra enorme aqui! – retruca ele em desespero.
No verão, enchentes “normais” ocorrem com frequência no bairro, relatam os moradores. O pai de Wellington fora chamado à casa de um vizinho exatamente para “dar uma força” quando a chuva havia começado. O rapaz tem uma bomba para puxar água e por isso estava ajudando o conhecido. Nesse dia, a bomba demorou a pegar. Quando o serviço terminou, não houve nem tempo de tomar o traguinho oferecido em agradecimento pelo vizinho. Os estrondos anunciaram o dilúvio e a queda de barreiras. O pai do garoto saiu correndo para a rua, mas a água já subia a uma velocidade impressionante. Ele viu os dois meninos na laje, porém não era mais possível chegar até lá.
- Em 32 anos que estou aqui, esta é a segunda vez que dá uma enchente grande. Mas na primeira a água bateu embaixo daquela janela – conta Zildete de Deus Araújo, moradora do Solaris I, apontando para o térreo da casa de dona Nilda. – Desta vez foi o dobro. Foi algo realmente sobrenatural.
Enquanto a chuva era “normal”, dona Nilda estava na rua, com água e lama na altura da canela, e avisou Felipe que iria apenas trocar de calça para ir até a casa do vizinho pegá-lo. Estava mudando de roupa quando o dilúvio chegou. Ela percebeu que não conseguiria atravessar a rua e refugiou-se no piso superior de sua casa.
Da laje, os garotos veem a chuva aumentar, as horas passarem, o desespero crescer junto com a escuridão e a intensidade dos barulhos – trovões, gritos, pedidos de socorro e estrondos indicando deslizamentos, quedas de barreiras, pedras rolando, construções vindo abaixo.
Quando finalmente o dia clareia, o pai de Wellington resolve enfrentar a correnteza para resgatar os meninos. Já não os encontra lá. Felizmente, outro vizinho havia conseguido chegar ao local por cima e retirá-los sãos e salvos.
Na parte baixa do Solaris I, cenário de devastação |
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“Ninguém esperava essa catástrofe”, diz Luciléia Brunhol Cardinot, a moradora que, ao lado de Zildete, conta a história. Há vinte anos na região, dona Lúcia, como é conhecida, perdeu muitos amigos na vizinhança. Sua casa fica numa parte mais alta do bairro. Por ali a tragédia passou em forma de correntezas, enxurradas e deslizamentos que carregaram casas e vidas. A perda foi sentida na própria família. Seu sobrinho, também chamado Wellington, havia completado 25 anos na véspera da enchente. Casado há dez meses, estava feliz com a suspeita da gravidez anunciada pela esposa. Nenhum dos dois teve tempo para confirmar a notícia ou comemorá-la.
Foi outra sobrinha, Silvana, moradora de uma rua mais acima, que chegou à residência de dona Lúcia no começo da madrugada. “Ela disse: ‘tia, está tudo bem aqui?’ E eu respondi que sim. Então ela falou que a casa dela estava cheia de água e lama”, conta dona Lúcia. Enquanto conversavam, as duas ouviram um grande estrondo. Era a casa de Wellington, próxima à da tia, que desabava.
“Saímos correndo, começou aquela gritalhada, todo mundo gritando socorro, e relâmpagos e trovões. Tinha casas descendo rio abaixo, corpos sendo levados, bebês, tudo. No meio da madrugada, mais ou menos dez para as quatro, ouvimos um trovão que ficou muito tempo fazendo barulho, mas na verdade eram pedras rolando do alto dos morros. Foi a noite mais longa, porque às 6h10 nos outros dias já estava claro. Nesse dia não. Quando eram mais ou menos 7h eu olhei para a pedra. Era um aguaceiro de barro e a gente percebia a falta de algumas coisas, via que o morro estava diferente, mas a gente não tinha ainda a dimensão da coisa”, lembra.
Quando o dia amanheceu, vizinhos, amigos e parentes começaram a dar e receber notícias: bairros como Córrego Dantas e Floresta haviam sido quase devastados, muita gente havia morrido. Na voz de quem sobrevivera ao pior, a tragédia ganhava seus reais contornos. Restavam tarefas duras como liberar os caminhos do entulho e acompanhar o resgate de corpos. Dona Lúcia viu quando o sobrinho e a esposa foram retirados sem vida da lama. “Foi uma catástrofe mesmo. Quando a gente começa a comentar, ver as fotos, as filmagens, a gente não pode nem pensar muito. Eu fico muito abalada”, diz, desviando o olhar marejado.
Uma menina de 14 anos passou a madrugada ilhada num monte de entulho perto da casa de dona Nilda. A garota se salvou, mas perdeu os pais, cujos corpos nunca foram encontrados. No dia seguinte, um irmão que estava no Rio de Janeiro chegou ao bairro procurando por ela. Perto dali, um homem de cerca de 60 anos estava quase soterrado e foi resgatado com vida. Ele perdeu a esposa, a filha, também não encontrada, e o neto de 5 anos.
Dona Lúcia (à esq.) com dona Zildete: casa virou ponto de distribuição de doações |
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Oração e ação
Enquanto no Solaris II, localizado numa região mais alta, praticamente não houve danos, as duas pontes de acesso à parte baixa do Solaris I foram destruídas, assim como uma grande quantidade de casas. Até agora motocicletas retorcidas se misturam à lama no que era uma oficina à beira do rio. Destroços, veículos semidestruídos, troncos, pedras e entulho estão por toda parte. Barro endurecido, mofo e musgo tomam conta do estofamento de um Ford Ka que o dono estava a poucas prestações de quitar.
Como ocorre em muitos dos lugares mais atingidos pela enchente em Nova Friburgo , algumas áreas da parte baixa do Solaris I parecem uma cidade-fantasma. Ainda há casas tomadas por lama e ninguém mais mora nelas. O templo da Igreja Assembleia de Deus que dona Lúcia frequenta também ficou com lama até o teto. Os membros da congregação se uniram para recuperá-lo.
Muito abalada, dona Lúcia passou cerca de quinze dias na casa de uma irmã. Quando voltou, foi levada por um vizinho para a parte baixa, onde ainda não havia ido depois da tragédia. “Isso aqui estava tudo parado. O pessoal estava abandonado, não tinha alimento, nada. Eu falei: não aceito isso”, conta. Ela e dona Zildete fizeram contatos e procuraram ajuda para montar uma estrutura própria, mesmo que mínima e precária, para atender as pessoas necessitadas da região. A varanda de sua casa foi transformada em depósito de alimentos, roupas, colchões, água e material de higiene e limpeza. As primeiras doações vieram da Igreja Ceifa, uma comunidade evangélica que também se transformou numa espécie de central de doações para as áreas atingidas.
“Muita gente tem vindo aqui buscando ajuda, alimento, leite, principalmente para as crianças. Tem família que vem aqui com quatro ou cinco crianças. Você vê que necessitam mesmo”, diz a moradora. No dia em que conversou com dona Lúcia, o repórter ajudou a descarregar em sua casa uma kombi com doações vindas da Igreja Luterana – entre elas, cerca de 100 quilos de feijão, além de colchonetes, fraldas, leite, artigos de higiene e até uma caixa com dezenas de pacotes de bolachas recheadas para ser distribuídos às crianças.
“Mesmo se a gente viver mais cem anos não vai esquecer disso”, diz dona Zildete. “Quando vem a lembrança do meu sobrinho, da esposa dele, das pessoas conhecidas que foram embora, dá um pavor na gente, uma coisa muito ruim. Aí começo a meditar e é só a oração mesmo”, completa dona Lúcia. Da ponte que liga a oração à ação em prol das pessoas atingidas é que ela tem trilhado o caminho para reencontrar sentido e mitigar a dor da tragédia.
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Uma vez Flamengo, sempre Flamengo
“Já muita coisa foi vista neste mundo. Mas nunca se encontrou nada mais triste que caixão pequenino”, escreve o moçambicano Mia Couto num de seus contos. Há poucos dias, um vizinho do aposentado Adão Carvalho Souza sentiu na carne essa dor ao enfrentar o enterro de seu filho de 8 anos. O corpo só foi encontrado, mais de 40 dias depois da tragédia, porque novas chuvas fortes fizeram com que barro e lama deslizassem para os rios da região, deixando cadáveres e escombros à mostra. Outros dois corpos que estavam nas proximidades também foram resgatados e levados para identificação. O pai do garoto, morador do bairro do Barracão dos Mendes, já havia perdido a família inteira na enchente.
Seu Adão vive no Barracão há 16 anos e está entre os que não tiveram perdas na tragédia. Tem trabalhado com a Associação dos Moradores no levantamento de famílias atingidas e ajuda a distribuir cestas com a caminhonete da entidade. O recolhimento e a organização das doações estão centralizados na Aldeia da Criança Kinderdorf Rio, no vizinho bairro Centenário, encravado na região de produtores rurais de Nova Friburgo.
A Aldeia possui vários programas e recebe crianças e adolescentes em situação de risco em casas-lares. Em cada uma delas, um casal social cuida de no máximo 12 crianças. Na sede do bairro Centenário, o atendimento às famílias atingidas pela enchente integra o projeto Rural Legal, parceria da Kinderdorf com a Associação Comercial de Nova Friburgo (Acianf). “As doações vêm de várias fontes: governo municipal, entidades, empresas e até vizinhos, anônimos e solidários”, explica Dalva Brust, vice-presidente de Serviços, Turismo e Cultura da Acianf.
Cerca de 130 famílias dos bairros das redondezas, como Salinas e Santa Cruz, estão cadastradas para receber as cestas básicas, que contêm principalmente alimentos e artigos de limpeza e higiene pessoal. Famílias com grande número de crianças recebem mais de uma cesta, o que faz com que cerca de 300 conjuntos sejam entregues por mês.
O cadastro e o levantamento dessas e de outras necessidades dos atingidos, como colchões, móveis ou eletrodomésticos, são feitos pelos adolescentes da própria Aldeia. Animada, esperta e demonstrando uma maturidade que os 12 anos de idade não fariam supor, Amanda Schwenke de Paula é uma das que mais têm se ocupado entrevistando as pessoas que vão fazer o cadastro. Ela é filha biológica de uma das mães sociais que trabalham na Aldeia e já está mais do que familiarizada com as fichas que preenche e as histórias que elas revelam. A alegre convicção com que recusa a hipótese de trocar, ainda que só de brincadeira, a sua camiseta do Flamengo pela de outro time é um sopro de juventude e esperança renovando um cenário marcado pela tristeza.
Aos 12 anos, Amanda ajuda famílias atingidas |
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A kombi dos 1.000km
Passava da meia-noite quando a secretária da Comunidade Luterana telefonou para a zeladora, Cláudia Francisco Hille. Cláudia e o marido, Tone, moram com o filho Toninho no andar de cima do salão paroquial da Igreja. Márcia, a secretária, estava preocupada com a possibilidade de a água atingir as instalações da Comunidade, como já havia acontecido outras vezes, nas enchentes “normais” – um córrego que costuma transbordar divide a avenida em que fica a Igreja.
Cláudia e Tone desceram ao pátio para verificar e, de fato, já ficaram com água batendo nos tornozelos. “Veio com lama, com esgoto, tudo o que tinha direito”, conta Cláudia. O casal tratou de retirar os equipamentos das tomadas e colocá-los, junto a outros materiais, em cima de bancos e mesas. Uma preocupação especial foi salvar os arquivos e os documentos históricos: Nova Friburgo tem a comunidade luterana mais antiga do Brasil, fundada em maio de 1824.
Depois da “operação salvação”, os dois passaram a madrugada no altar do templo para monitorar a situação – o que, no caso, significava basicamente assistir. “É um desespero ver a água subindo e não poder fazer nada”, diz Tone. A lama tomou todo o piso do templo e chegou até o segundo degrau do altar. O piano e um amplificador foram danificados. O freezer que estava junto à churrasqueira, na área externa, saiu boiando. A lama invadiu o salão paroquial e não fez cerimônia para entrar no carro utilizado pelo pastor, que estava estacionado no pátio.
Por causa da falta d’água, do racionamento determinado pela prefeitura e da lama que havia chegado à cisterna, a limpeza da Igreja só pôde começar no quarto dia depois da tragédia. Juntaram-se ao casal no mutirão o pastor Adélcio e sua esposa, Uiara, e outros membros da Comunidade. A limpeza total consumiu quinze dias. Os tacos do piso agora começam a envergar por conta de terem ficado “mergulhados” por tanto tempo e provavelmente terão que ser trocados. Os jardins da área externa ainda estão sendo refeitos.
Os prejuízos, felizmente, foram apenas materiais. Até onde o pastor e a diretoria sabem, nenhum membro da Comunidade perdeu a vida na tragédia. Algumas famílias sofreram perdas de bens ou danos na moradia. Em pelo menos um caso o prejuízo foi enorme: a família estava viajando e a casa foi invadida pela lama. Praticamente nada do que havia dentro pôde ser recuperado.
... enquanto, dentro, praticamente tudo foi perdido (*) |
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“Até hoje minha ficha não caiu. Eu ainda estou no embalo”, diz Tone Hille, que faz obras e construções e presta serviço como motorista da kombi da Comunidade. Desde a tragédia ele passou a circular com o carro para ver de perto os estragos da enchente. Tone e o pastor se ofereceram como voluntários no Corpo de Bombeiros e fizeram várias tarefas, como carregar mantimentos, água e colchões e ajudar a limpar um hospital. “Voavam muitos helicópteros e passavam viaturas, ambulâncias, caminhões, era sirene o tempo todo”, lembra Tone. Utilitários e caminhonetes carregados de corpos que vinham das áreas mais atingidas eram outra visão constante. Os testemunhos de quem trabalhava nos resgates davam conta de que muitos adultos haviam morrido abraçados a seus filhos.
Nova Friburgo está cercada por morros cujos vales e encostas são bastante povoados. O acesso a muitas áreas tornou-se impossível por causa da lama e das quedas de barreiras – foram 430 em toda a cidade, de acordo com a Defesa Civil. Voluntários com motos eram recrutados para levar na garupa um bombeiro de cada vez a locais onde carros não chegavam. Em outros, apenas veículos tracionados ou de grande porte conseguiam passar. Numa dessas incursões, quando estavam num caminhão da Marinha no Morro dos Maias, Tone e o pastor Adélcio foram abordados por uma senhora. Ela pedia desesperadamente que fossem enviados bombeiros para resgatar a irmã e os dois filhos soterrados.
A kombi rodou mais de 1000 quilômetros desde o dia da tragédia, levando para os mais diferentes lugares voluntários e doações, principalmente de água e comida. Foi numa dessas saídas que Tone conheceu dona Lúcia, do Solaris I, e passou a entregar regularmente mantimentos e roupas em sua casa. “Íamos onde havia condição de ir”, conta ele. “Vivemos muitas histórias nessa tragédia.”
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Depois de limpas, as instalações da Igreja passaram a funcionar também como central de doações vindas de membros da Comunidade e recolhidas de locais como a Fábrica Ypu e a Igreja Ceifa. Voluntários ajudam a montar as cestas básicas, que incluem produtos de limpeza e higiene pessoal, e são levadas a outros pontos de distribuição ou entregues a pessoas que se dirigem à Comunidade.
Como a procura é muito grande e não é possível ter certeza de que todas as pessoas que pedem cestas realmente precisam delas, a Comunidade está organizando outra forma de trabalhar. A comissão criada para esse fim, coordenada por Anna Lúcia Sant’Anna Kriebel, a Aninha, vai fazer um levantamento da situação num bairro determinado. A intenção é ter um trabalho mais direcionado e de longo prazo com as famílias na região escolhida. Outra ideia é encaminhar os desempregados que procuram a Igreja para cursos profissionalizantes, além de tentar montar uma espécie de banco de vagas.
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“As toras pareciam de isopor”
A Comunidade também tem recebido verbas das instâncias regional e nacional da Igreja e destina os recursos por meio de projetos específicos. Mesmo procurando criar um trabalho de longo prazo, os voluntários sabem que as necessidades emergenciais de quem perdeu tudo não podem ser negligenciadas. Uma das iniciativas da Comunidade com a verba recebida foi encomendar cinquenta camas. Elas serão entregues a famílias cuja necessidade for realmente comprovada por meio de visitas.
Da mesma fonte vieram os recursos para a compra de uma geladeira, doada a uma senhora, e para a recuperação de três salões de beleza na região central da cidade. Com isso, justifica o pastor Adélcio, devolve-se não só a atividade econômica das proprietárias, mas também o emprego de outras pessoas que trabalhavam nesses locais.
A Comunidade dá preferência a atender casos que chegam por indicação dos membros. Assim foi com o casal Márcio e Susana e a filha Letícia. A família teve a casa e os bens levados pela enchente — inclusive duas máquinas de costura que eram uma das fontes de seu sustento. Márcio é funcionário da prefeitura, mas também trabalhava em casa com Susana costurando peças para uma confecção. As máquinas valiam cerca de R$ 6 mil. Eles conseguiram salvar apenas uma terceira, no valor de R$ 8 mil.
Além das perdas materiais, a tragédia deixou traumas e um acidente vascular cerebral que ainda limita as atividades de Márcio, atualmente licenciado da prefeitura. Na primeira semana de março, a família resolveu deixar a casa em que passara a morar com aluguel social. A moradia era invadida por esgoto a cada chuva mais forte, e até as doações recebidas depois da tragédia começaram a se perder. A Comunidade iria ceder um guarda-roupa e um armário de cozinha para ajudar na montagem da casa nova.
Quem levou o pastor até a família foi um membro da Comunidade, Evaristo Ivan, proprietário de uma oficina mecânica cuja maior atividade tem sido a limpeza e a recuperação de carros que ficaram submersos pela enchente. Na maior parte dos casos, os veículos precisam ser completamente desmontados para que cada peça seja limpa separadamente e a lataria fique livre para a remoção da lama.
Evaristo mostrou onde ficava a casa de Márcio e Susana, no Vale dos Pinheiros. Não há nem sinal da residência. Outras casas também sumiram. Na de seu Hugo, a varanda não existe mais, assim como a garagem. A saída do carro dava para a rua de paralelepípedos, mas ali agora é caminho das águas. Um córrego que havia sido canalizado para outro local simplesmente arrebentou as fronteiras do desvio imposto pelas mãos humanas e retomou o antigo curso.
“Era uma enxurrada e as toras enormes, pedaços de construções, janelas inteiras com batentes, móveis, tudo vinha descendo com a água como se fosse de isopor”, conta Evaristo. Pedras gigantescas também deslizaram do morro e, agora estacionadas, dão seu mudo testemunho da intensidade da devastação. O mesmo córrego arrancou a calçada de quarteirões inteiros no Jardim Amélia, alguns quilômetros à frente. Ali pode-se ver uma cena corriqueira na cidade: operários trabalhando na reconstrução.
Mais à frente, o mesmo córrego rompeu a canalização e arrebentou o calçamento de quarteirões inteiros |
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Numa tarde de plantão para atendimento de pessoas que vinham pedir cestas básicas, chega à Igreja Luterana uma senhora educada e bem-vestida, acompanhada do filho, um jovem de cerca de 20 anos com as mesmas características. A verdade é seu cartão de apresentação: ela conta que não foi atingida e não teve perdas com a enchente. Porém, é funcionária de uma fábrica de confecções que não está operando. O patrão não consegue produzir nem entregar, e consequentemente não recebe dos clientes. O círculo vicioso se completa com a impossibilidade de pagar os funcionários. O trabalho e a renda se foram, enquanto a necessidade bateu na porta.
Nova Friburgo é conhecida como polo de produção de lingerie e roupas íntimas. Muitas fábricas foram total ou parcialmente destruídas na enchente. A Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) estima prejuízos de R$ 200 milhões no ramo de confecções na cidade. De acordo com a entidade, cerca de 70% das indústrias de Teresópolis e de Nova Friburgo foram prejudicadas na tragédia.
Além de enfrentar as dificuldades do sustento diário, esses trabalhadores também precisam lidar com o preconceito e a incompreensão de seus credores: é como se, por não terem sofrido perdas pessoais na tragédia, não tivessem o direito de pedir auxílio ou solidariedade.
A mãe que, talvez pela primeira vez na vida, teve que pedir alimentos a estranhos não deixa o fato rebaixar sua dignidade. “Nessa situação, toda ajuda é bem-vinda”, diz ela, enquanto levanta-se para cumprimentar os voluntários, agradece as doações que recebe e se despede com o olhar de quem sabe que, mais dia, menos dia, o suor de seu trabalho há de ser novamente seu sustento.
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A salvação num pedaço de madeira
Já era quase hora de Alan Tuler se levantar para encarar mais uma viagem em busca de mercadorias para revender em Nova Friburgo. Por volta das 3h da madrugada, o sacoleiro de 32 anos acordou com o barulho de um estrondo. “Senti um cheiro forte de terra molhada. Pensei: isso não está normal”, lembra. Quando olhou para fora, viu que realmente a situação estava muito longe da normalidade.
A chuva caía com intensidade impressionante e, mesmo com a escuridão – praticamente toda a cidade ficou sem luz –, era possível perceber que pedras, árvores e lama caíam dos morros e encostas do bairro Floresta. Alan, vizinhos e familiares saíram correndo para uma parte alta da rua que corta o bairro e dali viram e ouviram os gritos, o desespero e o medo que tomavam conta da comunidade.
Quando clareou o dia, ele e dois amigos perceberam, ao longe no morro, o que parecia ser uma vara de bambu sendo agitada num monte de lama. Correram para lá e descobriram que era uma mãe quase totalmente soterrada que encontrara num pedaço de pau a “bandeira” que sinalizou sua posição e sua salvação. Ela e a filha foram retiradas, mas o marido morreu no deslizamento. Outras seis pessoas também perderam a vida daquele lado do morro.
Na outra face, no local conhecido como Alto do Floresta, a tragédia significou a morte de 42 pessoas. Ali, a Defesa Civil interditou 50 casas, 40 das quais já haviam sido demolidas até meados de fevereiro. No Floresta, também eram poucas as casas marcadas para demolição, sinalizadas pela Defesa Civil por números pintados nas paredes, que ainda permaneciam de pé. Algumas, de fato, já haviam sido semidestruídas pela tragédia. Nos locais das residências removidas e onde houve deslizamentos, não serão permitidas novas construções.
Como acontece em outras localidades de Nova Friburgo, nos morros do Floresta é possível observar áreas inteiras em que toda a cobertura vegetal e o terreno simplesmente desapareceram. Foi a força devastadora dessa enxurrada de troncos e lama que arrastou consigo casas, vidas e o que mais houvesse no caminho. Ficaram os novos cenários de pedra a descoberto.
Alan Tuler, no local onde os moradores se refugiaram e viram o temporal cair. Ao fundo, na encosta, a marca dos deslizamentos que mataram sete pessoas |
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A caminho da Aldeia Kinderdorf, já na região rural da cidade, o pastor Adélcio mostra um morro em que a própria pedra parece ter sido cortada com uma lâmina. Lá embaixo, o desabamento matou a família de um meeiro e arrasou boa parte da lavoura do proprietário das terras.
Ao passar por outro local que visitou logo após a enchente, o pastor conta a história que ouviu de um pai. Durante a madrugada, ele tentava segurar pela mão o filho adolescente, que gritava: “Eu não quero morrer, pai! Eu não quero morrer!” O garoto acabou não resistindo.
O outro filho, de 13 anos, estava na casa do tio e também morreu. De toda a família, apenas aquele pai e seu irmão sobreviveram à tragédia.
Capela de Santo Antônio, na Praça do Suspiro, logo após a enchente: patrimônio histórico atingido (*) |
Destruição fica visível na parte de trás do do templo |
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“Isso aqui hoje está bonito”
De acordo com pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma série de fatores contribuiu para desenhar a catástrofe: primeiro, uma chuva longa e não muito forte que deixou o solo encharcado e instável, seguida de outra, proveniente de uma frente fria, que incidiu sobre a serra, e ao mesmo tempo um forte temporal em pontos localizados. Esse temporal começou na terça-feira 11 e invadiu a madrugada do dia 12.
“Foi como se tivessem caído 18 tempestades seguidamente, com um enorme poder de destruição”, disse o professor Paulo Canedo ao jornal A Voz da Região. A situação foi agravada pela formação de barragens naturais nos rios com o material que deslizou das encostas e foi arrastado pela tromba d’água. No temporal do dia 12, choveu 182,8 milímetros , quando o volume projetado para o mês inteiro era de 227,2.
Vários moradores relataram que, atualmente, qualquer chuva, por mais fraca que seja, os deixa nervosos e com dificuldade de dormir. Na semana que passou em Nova Friburgo , o repórter presenciou chuvas intermitentes entre a quarta-feira e o sábado. Na maior parte do tempo, apenas garoa, mas em alguns momentos realmente choveu forte. Perigo para um solo já encharcado e mais medo para quem ainda está sob o trauma do último janeiro.
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Visitar bairros em ruínas quase dois meses depois da tragédia dá apenas uma pálida ideia do que devem ter passado as pessoas que enfrentaram o dilúvio daquela madrugada. Quem não estava lá no dia da enchente se impressiona com o resultado, mas não tem como conceber o que de fato aconteceu em janeiro.
“Isso aqui hoje está bonito”, diz dona Lúcia, do Solaris I. Como pôde ter estado pior?
No bairro Duas Pedras, casas ainda têm lama quase na altura do teto. Na Prainha, objetos que testemunham a vida que ali existia na simplicidade cotidiana – brinquedos, travesseiros, roupas, bicicletas, cadeiras, pratos, estantes... – ainda jazem espalhados, sujos e retorcidos em frente a algumas casas. De outras, sobrou pouco mais do que os alicerces. No Condomínio do Lago, a caminho da área rural, 19 casas permanecem soterradas sob a lama. No Centro, cerca de 40 casas de algumas ruas mais atingidas também deixaram de existir ou estão semidestruídas. Ali, três bombeiros morreram soterrados enquanto tentavam resgatar vítimas do primeiro desabamento da noite. Em pleno trabalho de socorro, foram engolidos pelo segundo. Na Praça do Suspiro, que antes da tragédia abrigava o teleférico, uma das atrações turísticos da cidade, outro marco histórico sofreu com a enchente: a Capela de Santo Antônio, inaugurada em 1884, teve parte de suas paredes destruída. Já há um convênio com uma fundação privada para sua reconstrução.
Em toda a cidade, de acordo com a Defesa Civil, há 425 imóveis interditados. Cerca de 70 já foram demolidos. Famílias que perderam sua casa podem recorrer ao aluguel social – 2.036 estão cadastradas. Mas o programa enfrenta problemas. Um deles é que obter o benefício depende de laudo de vistoria da Defesa Civil, e há mais de 4 mil solicitações de vistorias pendentes.
O valor de R$ 500,00 é considerado baixo por muitas famílias que tinham imóveis mais valorizados. Uma das características da tragédia é que foram afetadas moradias não apenas de bairros mais pobres, mas também de alto padrão. Até um ex-prefeito de Nova Friburgo morreu soterrado. Com a destruição e a alta procura, há escassez de imóveis para alugar.
Casas e edifícios do Centro foram abalados |
Nesta parte da região central da cidade, dezenas de casas desapareceram |
À frente, o que restou de um carro; ao fundo, marcas de um deslizamento |
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“Eu tenho vizinhos desesperados, dizendo que a Defesa Civil interditou as casas e eles têm que sair. O laboratório onde um casal trabalhava era deles mesmo e também está na mesma situação. Quer dizer, eles nem trabalham e nem moram. Com duas crianças, vão fazer o quê?”, pergunta dona Zildete Araújo, do Solaris I. Ela continua: “A própria prefeitura ou o estado dizem que vão fazer muro de contenção. Será que vão fazer mesmo? Eu sei que está vindo verba, mas até que ponto será usado para aquilo que é necessário? Realmente vai acontecer aquilo que o povo precisa? Será que vai passar a época da chuva e vai acontecer alguma coisa ou vamos esperar vir a outra época de chuva e o povo vai ficar desesperado novamente?”
No Condomínio do Lago, 19 casas permanecem soterradas pelo deslizamento |
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O bom, o mau e o feio
Talvez seja nas grandes catástrofes, como a guerra e os desastres naturais, que os extremos da natureza humana se apresentem de forma plena. Na região serrana do Rio, há aproveitadores que, não atingidos pela enchente, correm atrás de cestas básicas para estocar comida ou mesmo vendê-la. Gênero de primeiríssima necessidade, a água mineral também é alvo desses indivíduos para lucrar com doações desviadas.
Em muitos lugares, moradores dizem que a água ainda sai das torneiras com cor e cheiro de barro, e por isso parte da população só usa água de garrafas para beber e cozinhar. Nos primeiros dias após a tragédia, galões de 20 litros chegaram a ser vendidos por R$ 50,00, enquanto botijões de gás valiam mais de R$ 100,00. Alguns comerciantes foram ameaçados de agressão ou de depredação de suas lojas por moradores revoltados. Boa parte do comércio do Centro ficou fechada por duas semanas até que a lama fosse retirada das ruas.
Numa escola que ainda abriga 12 famílias, a diretora revela que várias delas já poderiam ter retornado para suas casas, mas não o fazem porque assim continuam recebendo e estocando cestas básicas, que repassam a familiares ou conhecidos da vizinhança. As aulas em várias escolas da rede pública ainda não começaram porque as salas estão servindo de abrigo. Outras vão atrasar o início do ano letivo porque estão passando por obras de reconstrução.
A seleção e entrega das doações que têm chegado de todo o Brasil e do exterior – até o final de fevereiro, eram cerca de 500 toneladas – é outro capítulo que mereceu até uma Ação Civil Pública do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. O MP exige que o município faça a prestação adequada dos serviços de recebimento, triagem, armazenamento e distribuição das doações e que a prefeitura utilize, no mínimo, 50 trabalhadores e 8 caminhões na organização dos centros de armazenamento, além de garantir a entrega dos donativos aos abrigos e polos de distribuição.
Para promotores que realizaram inspeção na Fábrica Ypu, onde o município montou a central de distribuição de alimentos, não existe estrutura adequada para o trabalho. Menos de 10 pessoas atuavam recolhendo e descarregando os donativos, além de montar as cestas básicas. De acordo com os promotores, havia apenas um funcionário público no local, enquanto a maior parte da equipe era formada por voluntários.
Separando e embalando doações na Igreja Luterana, o repórter encontrou muitos alimentos com data de validade vencida (em alguns casos, em novembro e dezembro, ou seja, antes da tragédia) que tiveram que ser descartados. Quem trabalhou na separação de roupas testemunhou o estado lamentável em que algumas peças chegaram: rasgadas, imundas, sem a mínima condição de serem entregues para que uma pessoa as vestisse com dignidade. “Teve gente que aproveitou para fazer uma limpeza nos armários”, comentou uma voluntária. Houve ainda boatos alarmistas apregoando que represas ao redor de Nova Friburgo haviam sido rompidas e que ondas gigantes chegariam à cidade, o que só serviu para aumentar o pânico e o desespero da população.
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Voluntários trabalharam no recolhimento e entrega de doações com seus próprios carros (*) |
"Andar com fé eu vou, que a fé não costuma falhar..." |
A lua cresce no céu
No extremo oposto estão os que, atingidos ou não pela tragédia, deixaram de lado sua rotina, seus interesses, seus familiares, e se dispuseram a trabalhar desde as primeiras horas em prol das vítimas, às vezes colocando a própria vida em risco para socorrer pessoas que talvez sequer conhecessem. O pastor da Igreja Batista Central, por exemplo, relatou que, desde janeiro, equipes formadas em congregações de diversas cidades do Rio, São Paulo e Minas Gerais têm se deslocado para Nova Friburgo para trabalhar voluntariamente na limpeza e reconstrução de casas. No carnaval, chegaria uma turma de São José dos Campos.
As pequenas amostras que aparecem neste relato obviamente representam pouco para traduzir o tanto de nobreza, dignidade e solidariedade de que os seres humanos são capazes. São incontáveis as manifestações dessa grandeza ao longo de todo esse episódio – cujas consequências, aliás, estão muito longe de ser superadas, por mais que a mídia já não se ocupe da tragédia. Oxalá a grandeza sobrepuje sempre a mesquinharia.
Encerro com uma voz da terra. Reproduzo a seguir trechos do texto “A lua cresce no céu de Friburgo”, do educador friburguense Tião Guerra, publicado na edição de março do jornal Século XXI. É um testemunho de quem viveu a tragédia em sua própria cidade, mas cuja reflexão me parece válida para viventes de qualquer latitude.
Pensemos, pois, e saibamos agir.
“Nos últimos dias, algumas pessoas e a mídia em geral têm usado, em nome do desejo de criar uma onda positiva, otimista, uma frase que me dói: ‘Estamos finalmente voltando ao normal’. Como assim, voltando ao normal? Se o normal é como era antes, não posso aceitar que voltemos a ele. O normal de antes era feito de muitos interesses separados (...). O normal de antes tinha muito pouco tempo para a solidariedade, para servir ao outro acima de tudo (...). O normal de antes não tinha tempo para longas, gostosas, profundas e preguiçosas conversas ao redor da mesa de refeições ou na calçada de casa (...).
Nestes dias vivemos fora do normal. Ah, com certeza vivemos.
Nestes dias que passamos sem eletricidade, pude reaprender sobre o silêncio de nenhum motor funcionando, de nenhuma rede virtual ativa, de nenhum aparelho audiovisual emitindo estímulos; pude sentar com minha família, amigos e desconhecidos, na penumbra da luz de raras velas, e suspirar sob o sentimento humilde do tamanho dos meus braços, de minha força real de transformação e de ser ajuda. A eletricidade amplia nossa força de atuação e também nos ilude sobre nosso tamanho.
Nestes muitos dias que passamos sem água encanada e potável, pude reaprender sobre tudo o que se lava com dois litros d’água (medida das muitas garrafas pet que me chegaram). Pude conviver com os meus dejetos (urina e fezes) e os de minha grande família, guardados dentro de nossos belos vasos sanitários sem água, e sentir a fragilidade e insanidade de nossa civilização que sequer sabe lidar com as fezes a não ser dando descarga e se esquecendo delas. Pela falta d’água pude aprender os nomes de meus vizinhos, que comigo partilharam a água que tinham.
Nestes dias, no meio da lama fedida, buscando corpos, lavando corpos, enterrando corpos de pessoas amadas, pude aprender sobre o amor. Amor como cuidado; amor como honra ao que vive no outro, seja isto fato presente ou memória. A crueza inesperada das situações que vivemos não poderá ser expressa por palavras jamais, está muito além delas. O sentimento do que vivemos está buscando seus caminhos de expressão (...).
Nunca mais voltarmos ao normal que era antes é o mínimo de honradez devida aos nossos queridos que se foram. Nunca mais voltarmos ao que era antes é o mínimo de responsabilidade frente a nós mesmos e a todas as crianças que sobreviveram, sobreviveram para o novo.
Nestes dias em que a lua volta a estar no mesmo lugar de um mês atrás, onde estamos nós? O que temos aprendido? Será possível caminharmos sem ingenuidades frente ao modelo de civilização que temos adotado: ele é brilhante, ilusório, desumano, inodoro, definitivamente inodoro. Nosso modelo de civilização não suporta o cheiro libertador de lama de enchente.”
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P.S.: As fotos marcadas com (*) são dos dias imediatamente posteriores à tragédia e foram feitas por membros da Comunidade Luterana. As demais foram tiradas pelo blogueiro nos primeiros dias de março de 2011.
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P.S.: As fotos marcadas com (*) são dos dias imediatamente posteriores à tragédia e foram feitas por membros da Comunidade Luterana. As demais foram tiradas pelo blogueiro nos primeiros dias de março de 2011.