Primo Levi tinha 24 anos e integrava um grupo de guerrilheiros antifascistas quando foi preso pelas Milícias fascistas no final de 1943. Em 21 de fevereiro de 1944, ele e outros mais de 600 prisioneiros judeus – homens, mulheres, crianças, famílias inteiras – souberam que seriam deportados no dia seguinte para o campo de concentração de Auschwitz.
viajante do inverso
sábado, 29 de outubro de 2022
Primo Levi: "Cada época tem seu fascismo"
Rubem Braga, direto do front: "O fascismo é uma praga difícil de exterminar"
“O fascismo é uma praga difícil de exterminar. É o preço que os povos pagam pela própria desídia. É a defesa frenética dos privilegiados”, escreveu o grande Rubem Braga numa das crônicas que enviou da Itália como correspondente de guerra do Diário Carioca.
Rubem Braga em 1973 (Foto: Alécio de Andrade/IMS)
Em setembro de 1944, Braga embarcou com soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) que lutariam contra o nazismo na Europa. O Brasil enviou mais de 25 mil soldados à Itália, e mais de 450 deles perderam a vida no campo de batalha.
sexta-feira, 13 de maio de 2022
Astolfo Marques e as promessas irrealizadas da Abolição e da República
Paulo Hebmüller
viajantedoinverso.blogspot.com
O jornalista e escritor
Astolfo Marques nasceu em São Luís em 1876, filho caçula da cafuza livre
Delfina Maria da Conceição, lavadeira e engomadeira na capital maranhense. Teve
seis irmãos e irmãs, mas “não há qualquer referência ao seu pai nos poucos depoimentos
existentes sobre a vida do autor”, aponta Matheus Gato, pesquisador e professor
da Unicamp.
Marques frequentou, de forma irregular e
intermitente, o sistema público de educação e aos 20 anos ingressou como
servente na Biblioteca Pública de São Luís, onde conseguiu fazer carreira e
construir uma rede de sociabilidade e de contatos que lhe permitiu uma
trajetória “exitosa para os padrões regionais”, define Gato.
O pesquisador organizou o livro O 13 de Maio e
outras histórias do pós-Abolição (Editora Fósforo), coletânea de contos e
artigos publicados por Marques, que tinha 12 anos quando a escravidão foi
oficialmente extinta no Brasil e morreu em 1918, aos 42, de tuberculose.
Nos textos da coletânea do maranhense – a maioria publicada na primeira década do século passado, coisa de 15 a 20 anos depois da abolição –, fica clara a rápida reversão do sentido positivo atribuído à data. Nos primeiros aniversários do 13 de Maio, festas populares se juntavam às comemorações oficiais, mas em pouco tempo tanto umas quanto as outras foram rareando, e as pessoas que haviam saído da condição de escravizadas em 1888, chamadas de “treze”, tratavam de desmentir a alcunha e contar outras histórias sobre sua alforria.
Os escritos de Marques também atestam a desilusão com as esperanças despertadas pelas campanhas abolicionista e republicana, sepultadas logo nos primeiros anos da República. As promessas de igualdade, democracia e fim do poder das oligarquias não vingaram desde o nascimento do novo regime, e em mais de um texto aparece inclusive a figura do “tenente Queiroz” – apropriadíssimo nome –, “o delegado terrorista”, a simbolizar o autoritarismo da polícia e, por extensão, das instituições.
Um dos primeiros textos que li hoje, um 13 de maio 134 anos depois daquele, fala de uma mulher negra de 84 anos que por 72 deles trabalhou em condições análogas à escravidão para três gerações de uma mesma família no Rio de Janeiro.
Correm os séculos e os valores tradicionais da família brasileira seguem vigorando. Como se sabe, pesam consideravelmente na hora em que muitos rebanhos nestas terras levam suas escolhas políticas e ideológicas às urnas.
terça-feira, 15 de março de 2022
O ucraniano, a guerra e a palavra
Paulo Hebmüller, viajantedoinverso.blogspot.com
Boris Schnaiderman nasceu em 1917 perto de Odessa, na Ucrânia. Sua família migrou para o Brasil quando ele tinha oito anos de idade. Formou-se engenheiro agrônomo, exercendo a profissão por alguns anos antes de enveredar para o jornalismo, a tradução e o mundo editorial. Schnaiderman foi um dos primeiros a traduzir a literatura russa diretamente para o português. Até então, nas décadas de 1930-40, os textos que chegavam por aqui geralmente eram versões produzidas a partir das edições francesas.
O professor e tradutor Boris Schnaiderman (Foto: Cecília Bastos/Jornal da USP) |
Doutorou-se em Letras pela USP, em 1971, sob orientação de Antonio Candido, e como docente no curso de Letras Russas da universidade formou muitos tradutores e professores. Por considerar a tradução um trabalho sempre inconcluso, seguiu revisando os textos que havia vertido ao português até praticamente o final de sua longa vida. Morreu em maio de 2016, um dia depois de completar 99 anos.
Schnaiderman naturalizou-se brasileiro no início da década de 1940. Tinha a certeza de que o Brasil acabaria por aderir aos Aliados na Segunda Guerra Mundial e queria se alistar para combater o nazifascismo na Europa. “Pode parecer estranho que um pacifista convicto como eu tivesse essa preocupação. No entanto, estava convencido de que este era o caminho certo, o único em vista”, escreveu em Caderno Italiano, livro que reúne vários textos sobre sua experiência na guerra, onde lutou na Força Expedicionária Brasileira (FEB) entre 1944-45.
Em 1964, publicou Guerra em Surdina, ficção baseada nas suas vivências de soldado, do treinamento até o retorno ao Brasil, cuja quarta e última edição saiu em 2004. No livro, relata como os scugnizzi de Nápoles – garotos de sete a 14 anos, “com olhos de adulto, de quem já conhece todas as misérias” – abordavam os soldados aliados de várias nacionalidades para levá-los aos becos e ladeiras em que encontrariam mulheres.
Schnaiderman com o uniforme da FEB, em foto tirada na Itália dois dias após o fim da guerra |
Em outra passagem, narra: “Por ocasião das refeições, quando nos agrupamos em torno da cozinha fumegante, uma verdadeira multidão esquálida e murcha vem assistir ao nosso repasto. Velhos, moças, crianças, todos têm um olhar de cão faminto para as nossas marmitas. Não é possível comer com tanto sofrimento em volta. Geralmente, belisca-se um pouco e vai-se entregar a marmita a alguém na multidão. Vi companheiros chorando depois de uma cena dessas. Mas não há dúvida: temos que nos calejar e aceitar tudo”.
Num texto chamado “No limiar da palavra”, no Caderno Italiano, este ucraniano que quis ser brasileiro e dedicou a vida a polir a palavra reflete exatamente sobre os limites dessa criação humana. Schnaiderman registra sua perplexidade com uma foto, encontrada por um companheiro nos escombros de uma cidadezinha que o exército invasor havia abandonado às pressas, na qual algumas dezenas de soldados alemães posam para a câmera, vários deles sorridentes.
“Até hoje, a alegria no rosto daqueles jovens só me causa mal-estar. Era a alegria dos que estavam pisando territórios invadidos. Como verbalizar aquilo? Como encontrar uma tradução? Pois esta exige, certamente, um mínimo de linguagem comum. E não estaria aí o limite do traduzível, o limar da palavra?”, pergunta. “Como não lembrar, por trás destes sorrisos, os fornos crematórios, a abjeção e a ignomínia daqueles anos? Realmente, a palavra humana tem o seu limite intransponível, sua barreira final.”
"Como encontrar uma tradução"? (Fotos: reproduções do livro Caderno Italiano) |
domingo, 5 de setembro de 2021
Neil Peart e sua alma de bebê na estrada
Neil Peart num show do Rush no Canadá em 2010 (Wikimedia Commons) |
Paulo Hebmüller
viajantedoinverso.blogspot.com
Em agosto de 1997, Neil Peart, o baterista do Rush, perdeu sua única filha, Selena, de 19 anos, num acidente de carro em Ontário, Canadá. Dez meses mais tarde, sua mulher, Jackie, que nunca se recuperou do baque e havia lhe confessado que essa era a única dor que sabia que não conseguiria suportar, morreu vitimada por um câncer diagnosticado pouco antes.
Como costumava fazer nos intervalos das turnês do Rush – ou mesmo durante elas, quando cumpria o roteiro de cidades de moto enquanto os colegas de banda e toda a equipe técnica seguiam com os ônibus e vans da trupe –, Neil subiu em sua moto e partiu numa viagem sem muita clareza sobre para onde ou para que seguiria.
Ele sabia apenas que era preciso estar em movimento.
E que dentro de si havia uma “alma de bebê” que precisava de cuidados:
“Um pouco antes naquele verão, ao contemplar as ruínas da minha vida, eu tinha decidido que minha missão agora seria proteger certa essência que havia dentro de mim, uma força vital que brotava, um espírito frágil, como se eu envolvesse com as mãos uma vela bruxuleante. Nas cartas, passei a denominar essa chama remanescente de ‘minha alma de bebê’; decidi que, a partir daquele instante, a minha tarefa seria cuidar daquele espírito da melhor forma que eu pudesse”, escreve Neil em Ghost Rider - A Estrada da Cura.
O livro – ou melhor, livraço –, que saiu em 2002 e foi traduzido por aqui em 2014, é o relato da longa jornada de crescimento dessa alma de bebê e da construção de um novo ser depois dos 45 anos de idade. Sua vida anterior, ao lado da esposa e da filha e de todo o universo de interesses que até então lhe dizia respeito, era vista por ele como pertencendo “a um outro cara”, com o qual ele partilhava apenas umas poucas lembranças distantes: “É uma tarefa e tanto que eu tenho pela frente: construir um mundo, uma pessoa e uma vida”.
Quem conhece as letras do Rush, sempre de Neil, sabe que elas são poemas refinados, arquitetados e burilados por uma mente de talento e sensibilidade raras. Não deveria ser surpresa que o cara fosse capaz de escrever tão bem em prosa – mas ainda assim A Estrada da Cura, com suas mais de 500 páginas, surpreende pela qualidade da escrita, pela profundidade das reflexões, pela emoção e verdade que brotam de seus relatos, pela descrição sempre inteligente e afiada dos lugares e das pessoas com quem cruzou nas viagens, pelo tanto de conhecimento e curiosidade em temas como história, literatura e natureza que saltam das páginas, pela capacidade de fazer graça da própria tragédia e de se reconhecer incapaz de lidar com a realidade sem a ajuda e o amparo da família e dos amigos.
O baterista numa de suas motos (Holly Carlyle/American Motorcyclist Association) |
Ao fim da primeira viagem (houve outras), na qual percorreu 46 mil quilômetros em quatro meses, Neil voltou para a casa em que costumava passar parte do ano com Jackie e Selena. Sua sensação ao reencontrar aquele espaço dominado pelas fotos e lembranças delas foi dizer: “Eu sei”. “Acho que isso é o suficiente para lidar com o que ficou para trás, mas apenas espero que seja o suficiente para o que estiver à frente de mim”, reflete.
E a certa altura, ao escrever para o cunhado, também sofrendo com a perda da irmã e da sobrinha, Neil resume o que aprendera até ali. A palavra-chave era “adaptação”:
“Descobri que não faz sentido falar em ‘lidar com isso’ ou ‘trabalhar aquilo’. Não. ‘Isso’, especificamente, é algo com que não se pode lidar ou trabalhar. É o tipo de ‘Isso’ que simplesmente muda tudo, e não há como chegar a uma conciliação com ele.
(...) Aqui e agora é onde tudo começa de novo, a partir do zero, da mesma forma como acontece com os organismos darwinianos: espera-se que se adaptem às novas circunstâncias. Adaptem-se ou morram. Não podemos mudar o jeito que as coisas são, nem os seus efeitos sobre nós e sobre nossa visão do mundo. Tudo já está feito. Se realmente quisermos tentar sair dessa encruzilhada escura, só o que podemos fazer é tentar assumir nós mesmos as rédeas dessas mudanças inevitáveis. Não seríamos quem somos se isso fosse algo que pudéssemos ‘superar’, ou se apenas continuássemos nossas vidas de onde paramos. Uma vez falei assim sobre a forma como vejo meu futuro: ‘Sei que estou marcado por essas experiências, mas não quero ficar aleijado demais por causa delas’.
Se existe algum motivo para seguir em frente, esse motivo não é apenas continuar a existir para entulhar o mundo com mais um velho amargo e desagradável, com um ermitão sem alegria ou com um mártir que sofre eternamente porque vive no passado e pune as outras pessoas pelo que a vida fez com ele – comigo.
(...) Se é verdade que apenas o Tempo é capaz de curar as grandes feridas, é necessário nos adaptarmos a esta realidade. Isso é o mais crucial para que consigamos ‘aguentar firme’ e sobreviver, de tal modo que os supostos poderes mágicos da passagem do Tempo tenham a chance de fazer seu trabalho. (...) Se o Tempo vai nos servir como um agente de cura, então temos que estar aí para que isso aconteça, entende?”
O que aconteceu com ele? Bom, sem querer lançar um spoiler, fui ver o Rush no Morumbi nas duas únicas vezes em que eles tocaram por aqui: no fim de 2002 (ano em que saiu o livro) e em 2010.
E Neil Peart continua sendo the best drummer ever.
(Texto publicado no Facebook em 4 de janeiro de 2016. Em 7 de janeiro de 2020, Neil partiu para sua última viagem.)
segunda-feira, 26 de abril de 2021
Neli Aparecida de Mello-Théry (1955 - 2021)
Conheci Neli Aparecida de Mello-Théry quando fui designado pelo Jornal da USP para cobrir uma expedição de professores e estudantes brasileiros e franceses à Amazônia, em 2009. Tivemos uma ou duas conversas preparatórias antes da viagem, mas foi durante aqueles dias inesquecíveis em campo que tive a oportunidade de – entre tantos privilégios que a expedição me concedeu – conviver mais com ela e aprender de seu imenso conhecimento e generosidade.
Nos anos seguintes, encontrei-a em algumas poucas ocasiões – eventos ou entrevistas nas quais a “explorava” como fonte para reportagens. Sempre foram situações agradáveis e de mais aprendizado para mim.
Na convivência com alunos de graduação e pós, o que facilmente percebi naqueles dias na Amazônia, Neli era a professora que não abria mão do rigor acadêmico e profissional, e ao mesmo tempo era também uma presença amorosa, companheira, genuinamente interessada nas pessoas e no que elas tinham a dizer.
Nunca encontrei quem a conhecesse que não se referisse a ela como uma professora exigente, que não “aliviava” para ninguém e que possuía uma enorme capacidade de trabalho – e como essa mulher que entregava o melhor de sua humanidade aos seres humanos com quem cruzava.
Algumas semanas antes de se iniciar esta desalentadora e interminável quarentena, soube que Neli enfrentava um câncer agressivo em Paris, onde vivia com seu marido, Hervé.
Na triste terça-feira 6/4 soube da sua partida.
O que ela ensinou, semeou, criou e cativou em cada um de seus alunos e alunas está frutificando em muitos lugares por aí, e assim continuará.
E certamente nenhum deles deixará de guardar imagens como as feitas pela Cecilia Bastos na viagem, das quais escolhi duas que simbolizam o sorriso e o trabalho da professora.
(As reportagens sobre a expedição podem ser lidas aqui.)
quarta-feira, 7 de abril de 2021
Alfredo Bosi (1936 - 2021)
Em 2015, tive a honra de entrevistar o professor Alfredo Bosi, falecido nesta quarta-feira (7/4), vítima da Covid-19.
A entrevista foi publicada pela Revista Adusp.
Reproduzo a seguir o texto de abertura, no qual vale atualizar que seu livro História concisa da literatura brasileira já está na 52ª edição, e a resposta de Bosi à primeira pergunta. O link para a íntegra da entrevista está na sequência.
Alfredo Bosi na cerimônia em que recebeu o título de Professor Emérito da USP, em 2009 (USP Imagens) |
* * *
Poesia como resistência à ideologia dominante
Por Paulo Hebmüller, Revista Adusp, dezembro de 2015
Não são poucas as áreas em que atua e intervém Alfredo Bosi: história, política, Igreja e militância contra usinas atômicas estão entre elas. Mas é a literatura, que lecionou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) durante praticamente meio século — entre 1959 e 2006, quando se aposentou — que talvez mais mobilize o professor. “A literatura tem uma função muito rica, humanizadora, e dá uma grande abertura para qualquer tipo de profissional — mas a escola de alguma maneira diminuiu muito a sua dosagem, talvez até por causa dos vestibulares”, lamenta.
Nascido em São Paulo em agosto de 1936, Bosi iniciou sua trajetória na USP com o ingresso na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1954. Graduado em Letras Neolatinas, fez especialização em Filologia Românica e, entre 1961 e 62, especialização em Literatura Italiana, em Florença, na Itália. Seu doutorado (1964) e a livre docência (1970) também versaram sobre literatura italiana. Contudo, as letras da terra natal são um dos focos principais de sua produção acadêmica e da carreira docente.
Seu livro História concisa da literatura brasileira, publicado pela primeira vez em 1970, já alcançou 49 edições. Bosi é autor também de O conto brasileiro contemporâneo, O ser e o tempo da poesia, Dialética da colonização, Literatura e resistência, Ideologia e contraideologia e outros títulos. Muitos dos temas dos quais o professor se ocupa são abordados nos ensaios reunidos em seu livro mais recente, Entre a literatura e a história (2013), alguns dos quais citados nesta entrevista.
Casado com a psicóloga social e escritora Ecléa Bosi, professora do Instituto de Psicologia da USP, e pai de José Alfredo e Viviana, Bosi é membro da Academia Brasileira de Letras desde 2003 e recebeu o título de Professor Emérito da USP em 2009. Continua ligado à Universidade principalmente pelas atividades no Instituto de Estudos Avançados (IEA), do qual já foi diretor e onde edita desde o primeiro número, em 1987, a revista Estudos Avançados.
Sobre muitas das questões que o ocupam, Alfredo Bosi concedeu na sede do IEA, na Cidade Universitária, a entrevista a seguir.
Revista Adusp. O escritor Mia Couto, numa entrevista que me concedeu no ano passado, disse o seguinte: “Não há outra maneira de reconquistar um sentido de felicidade que seja pleno que não vá pelo caminho de nos restituir um olhar poético”. O senhor diz que “a poesia exprime a subjetividade mais radical do ser humano”. A poesia pode fazer a ponte entre essa felicidade e essa subjetividade?
ALFREDO BOSI. A poesia tem mais de um horizonte. Essa frase do Mia Couto, que eu endosso, realmente é o caminho mais feliz da poesia, não só para quem a produz — o artista que conhece aquele momento de iluminação — como sobretudo para os seus leitores. Um adolescente numa crise existencial de repente abre um livro de poemas da Cecília Meireles e sente que há coisas belas na existência. Ou então abre um Carlos Drummond de Andrade e tem contato com uma concepção mais irônica ou crítica, ou mesmo de grande resistência moral. A observação do Mia Couto vale principalmente para esses momentos em que a poesia liberta o leitor das suas preocupações do cotidiano e dá um sentido à existência. A minha experiência de leitor de poesia começou muito cedo. Eu tinha meus 13, 14 anos, já ia à Biblioteca Mário de Andrade e lia tudo o que me caía sob os olhos. Nem tudo eu entendia, como em textos de poetas difíceis como Jorge de Lima ou Murilo Mendes, mas mesmo não entendida a poesia transmite um sentimento básico da existência através das imagens, menos do que pelos conceitos. A leitura de poesia alimentou muito a minha vocação de professor. Agora, além dessa visão digamos mais feliz e mais eufórica, que conduz a uma expansão da alma, há uma forma de poesia que me atraiu desde cedo e sobre a qual escrevi bastante: a chamada forma de resistência. Essa ideia de literatura como resistência foi amadurecendo para mim desde principalmente os anos da Ditadura Militar — não que eu faça uma relação determinista de causa e efeito, porque a literatura tem uma riqueza de possibilidades que felizmente transcende o momento político. Mas nesse caso, como se tratava do longo período de vinte e um anos de ditadura, os intelectuais mais sensíveis à luta social e aqueles que tinham depositado muitas esperanças no governo deposto de João Goulart, e tinham passado por um momento muito construtivo no começo dos anos 1960, de repente se viram confrontados com um baque. Aqueles projetos que estavam amadurecendo foram cortados violentamente. Então me pareceu que a concepção de poesia apenas como expressão da subjetividade, sem dúvida uma visão básica que está na maioria dos autores de estética, poderia ser pensada também como uma forma de resistência à ideologia dominante. Ao lado da prosa pragmática que predominava na época e das ciências naturais e sociais, os poetas também vivem uma tensão entre o seu universo subjetivo, que é múltiplo, e as forças hegemônicas, sejam do capital ou do Estado. Essa tensão seria a matriz de uma poesia de resistência. Quando escrevi O ser e o tempo da poesia (1977), destinei um capítulo inteiro ao conceito de poesia resistência e verifiquei que há mais de uma forma de resistência. A forma mais evidente é a poesia de crítica social, de ataque, de sátira. Mas não é a única. Às vezes o poeta entra muito dentro de si mesmo e sua forte carga subjetiva involuntariamente se opõe àquilo que é a prosa do mundo, a prosa ideológica. Não que ele faça uma proposta formal de ataque à sociedade, mas a sua linguagem é tão estranha e tão diferenciada em relação àquilo que é a linguagem ideologizada, ou a do senso comum, que ela se transforma em resistência. Isso foi muito bem estudado por Theodor Adorno, filósofo marxista que via essa característica em certos poetas surrealistas e simbolistas acusados pelos marxistas ortodoxos de alienados, porque aparentemente estavam voltados apenas para si próprios. Mas Adorno fez estudos minuciosos de poetas alemães desse período e verificou que havia um potencial de resistência em seu trabalho. Há um ensaio dele que é paradigmático nessa questão, chamado “Discurso sobre lírica e sociedade”, que sempre recomendo aos meus alunos. E há ainda as formas extremas, místicas, em que o poeta vai atrás do transcendente, uma forma de superar a imanência. Esse viés das várias formas de resistência me pareceu fecundo. Como faço basicamente história da literatura — naquela época trabalhava com literatura italiana — olhando para trás vi que essa tendência poderia ser encontrada em vários poetas. Particularmente um, Giacomo Leopardi (1798-1837), que foi objeto da minha tese de livre docência. Leopardi era profundamente pessimista, por várias razões, inclusive autobiográficas, mas no final de sua curta vida creio que encontrou uma imagem para a resistência. É uma imagem muito bela e que me persegue, no sentido de que eu a persigo também: a de uma flor que nasce nas encostas do Vesúvio. Leopardi não suportava bem o frio e resolveu viver em Nápoles, onde passou os últimos anos de sua vida. Pompeia [devastada por uma erupção do vulcão Vesúvio em 79 d.C.] já havia sido descoberta pelos arqueólogos alemães, então Leopardi viu o que era o passado. Olhando para o Vesúvio, observou que, apesar da lava que descia pelas encostas, uma flor resistia. Essa flor em italiano se chama ginestra — em português, giesta. Seu último poema é “A giesta, ou a flor do deserto”. É um poema belíssimo e difícil — ele é um poeta com reminiscências clássicas muito fortes e não é fácil de ler. Quando fiz a minha tese, me debrucei sobre o poema e colhi dessa experiência de Leopardi a ideia de poesia como resistência. Nos anos em que morei na Granja Viana, senti falta dessa flor, tão bonita e tão rara. Mas eu não sabia se ela existia no Brasil. Um dia minha esposa e eu estávamos comprando mudas na chácara de floristas japoneses na Raposo Tavares e resolvi perguntar se o dono conhecia a giesta. Estava certo de que ele não conheceria, mas quando pedi uma muda de giesta ele pegou o carrinho, entrou nos seus labirintos e voltou com ela. Plantei, mudei de casa e, nesses anos todos, ela continua lá. É uma flor perene, que desaparece, mas volta de novo. Essa imagem é uma espécie de símbolo da poesia resistência.
(Leia aqui a íntegra da entrevista)